Girona
"Cada manhã nos ensina sobre as atualidades do globo terrestre.
E, no entanto, somos pobres em histórias notáveis.
Como se dá isso? Isso se dá porque mais nenhum evento nos chega
sem estar impregnado de explicações. Em outras palavras:
quase nada mais do que acontece beneficia o relato;
quase tudo beneficia a informação.
Ou seja, já é metade da arte narrativa manter
livre de explicações uma história quando é transmitida".
Walter Benjamin, Imagens do Pensamento, "Pequenos trechos sobre a arte"
Onde aparecem um abade, um
arcebispo e um livro
Aos pés dos Picos de Europa, na Cantábria, fica o
vale de Covadonga, onde os nobres visigodos, à frente dos quais estava o duque
Pelayo, venceram os muçulmanos em batalha no ano de 722. Para os leitores de
língua portuguesa, o rincão com sua gruta e o duque belicoso são familiares por
causa do romance de Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero. A uns
sessenta quilômetros adiante pela estrada que contorna o maciço nevado, fica o
mosteiro de San Toríbio de Liébana. Na segunda metade do século VIII, a
comunidade era consagrada a São Martinho de Tours e seu abade era Beato de
Liébana, um teólogo eminente e respeitado pela coroa de Astúrias, único reino
cristão da Península que não havia caído sob o domínio islâmico.
Toledo, a antiga capital dos visigodos, estava nas
mãos dos muçulmanos, mas o arcebispo da cidade ainda era o metropolita de toda
a Espanha. Em 783, esse homem era Elipando. Na época, um certo Migécio defendia
a curiosa doutrina segundo a qual, na Santíssima Trindade, o Pai era o rei
Davi, o filho era Jesus e o Espírito Santo, Paulo Apóstolo. No concílio de
Sevilha, convocado pelo arcebispo de Toledo, essas ideias foram condenadas e
Elipando escreveu uma carta de reprimenda a Migécio, que foi conservada nas
atas do concílio. No entanto, ao rejeitar a estranha concepção trinitária de Migécio, o
próprio Elipando se afastou da ortodoxia e endossou o adocionismo, que ensinava
que Jesus enquanto homem era apenas filho “adotivo” de Deus.
Ao tomar conhecimento das atas do concílio e da
carta do arcebispo, Beato de Liébana escreveu a Elipando,
chamando-lhe a atenção para a imprecisão e incorreção teológica de suas
palavras. Em declarada oposição ao abade asturiano, Elipando tratou de ganhar aliados e recebeu o apoio de Félix, bispo
de Urgell, nos Pirineus. Também enviou uma carta ao rei Carlos Magno,
acusando o abade de Liébana de ser um lascivo que infectara com seu veneno
vários líderes da Igreja. Eram acusações graves que expunham, talvez, a divisão
entre a Espanha “ocupada” e a Espanha “livre”. Uns dizem que Elipando, ao
depreciar a divindade de Jesus, desejava ficar em bons termos com os
dominadores muçulmanos, especialmente o poderoso emir de Córdoba, Abd
el-Rahman; outros julgam que Elipando só fazia retomar o arrianismo ao qual
os visigodos teriam abjurado, sem terem esquecido de fato. A verdade só
Alá pode saber, mas Carlos Magno, há muito tempo desejoso de levar o poder do
reino franco para além dos Pirineus, convocou um concílio em Frankfurt, que
condenou o adocionismo e solicitou que Elipando voltasse à doutrina tradicional
da Igreja.
Durante esse enfrentamento teológico e político, Beato
compôs um comentário sobre o Apocalipse de S. João a partir de excertos
dos Padres da Igreja, especialmente Gregório, Agostinho, Ticônio e Isidoro de
Sevilha. A obra recebeu grande acolhida entre os eclesiásticos, e não apenas na Espanha. Dos Comentários restam trinta e quatro manuscritos datáveis do século IX
e XII, dos quais vinte e seis são iluminados com tal riqueza que o nome do Beato passou a designar, por antomásia, esses códices. Nas ilustrações são notáveis os traços
mouriscos seja nas portas em forma de ferradura, seja na policromia brilhante. As
figuras são desenhadas de maneira linear, estereotipada e bastante
simplificada, ordenadas sobre faixas de cores vivas, segundo uma disposição
que, apesar das diferenças estilísticas entre os vários códices, parecem
remontar a um arquétipo perdido, que talvez tenha sido feito em Liébana, sob a
orientação do Beato ou de seus auxiliares imediatos.
Vários mosteiros produziram cópias do Beato, entre
eles o de San Salvador de Távara, perto de Zamora. Do scriptorium da
torre do mosteiro saíram alguns dos códices mais célebres, entre os quais o Beato copiado e ilustrado pelo monge Emetério e
pela monja Ende em 975, que passou para a Catedral de Gerona um século mais tarde, no reinado do conde Ramón
Berenguer II.
Beato de Gerona |
Beato de Gerona |
Onde aparecem um emir, um rei, um
conde e um tapete
Entre 748 e 750, uma revolução derrubou os
omíadas que detinham o califado em Damasco. O único sobrevivente da família foi
Abd el-Rahman, que fugiu para a Espanha, enquanto Abu Abas, que tomou o poder,
transferia a sede do califado para Bagdá. Em Al-Andalus, Abd el-Rahman regrou
as desavenças entre os chefes berberes, instalou a capital do emirado em
Córdoba e começou um jogo de alianças para fazer frente aos califas abássidas
de Badgá e avançar em direção ao reino dos francos, governado por Carlos Magno. As ambições do emir de Córdoba se voltaram, assim, ao nordeste da
Península, mas no seu caminho estava a importante cidade de Saragoça, cujo governador Husayn se proclamara leal ao califa de Bagdá. Para sustentar a rebelião contra o emir de Córdoba,
Sulayman, aliado de Husayn que governava Barcelona e Girona, viajou até Paderborn para convencer Carlos Magno a intervir em seu apoio em troca da promessa de lealdade e submissão dos governadores.
A expedição franca de 778 foi desastrosa. Carlos
Magno não conseguiu entrar em Saragoça, pois Husayn tinha sido derrubado
entrementes, e, na volta para a França, a retaguarda das tropas francas foram
atacadas pelos bascos num desfiladeiro dos Pirineus, episódio que, mais tarde,
viria a ser lembrado na Canção de Rolando. Carlos Magno não pisará mais
na Península, mas não desistiu do empenho de estender o domínio dos francos
pelo território que ia de Girona até a foz do rio Ebro.
No ano mesmo da malfadada incursão, o rei institui o condado de Toulouse,
para lutar contra os bascos, e o reino de Aquitânia, cujo soberano seria Luís,
filho de Carlos Magno.
Sob as ordens do conde de Toulouse, as tropas
francas fizeram nova incursão além da cordilheira. A entrada em Gerona em 785 foi
o início do processo tumultuado e cheio de reveses da reconquista franca,
que se concluiu em 803, quando Barcelona foi submetida. Todavia, Carlos Magno, já coroado imperador do Ocidente, morreu sem ter realizado o sonho de alcançar o rio Ebro. Dentro da recortada e confusa divisão
administrativa carolíngia, a faixa espremida entre os Pirineus e o Mediterrâneo
até o rio Llobregat se tornaria a Marca Hispânica. Para governá-la, os francos
escolheram nobres godos que haviam tomado parte na conquista, por isso, a região foi chamada Gothaland, nome do qual se originou "Catalunya".
Ao longos de décadas de luta contra o emirado - depois califado -
de Córdoba, os pequenos condados catalães foram passando para as mãos de uma
única família, a dos condes de Barcelona e Gerona que, à medida que iam
consolidando a sua autoridade, não se viam mais como dependentes da proteção e
da intervenção das forças do Norte agora que se esboroava o império carolíngio.
Um dos descendentes dessa dinastia de condes foi Ramón Berenguer II, cujo sepulcro
está na catedral de Girona. Talvez tenha sido a sua viúva, Mafalda de Apúlia,
quem patrocinou a elaboração da monumental Tapeçaria da Criação
para a mesma catedral. A enorme alfombra traz, no centro, a criação do mundo.
Na moldura ao redor, representam-se os meses do ano e as atividades campesinas.
Figuras da mitologia clássica e das Sagradas Escrituras se combinam numa
iconografia com matrizes bizantinas e carolíngia. O conjunto evidentemente expõe uma cosmologia
teocêntrica, porém seu propósito político imediato é incerto, pois havia muito em
jogo: o papa convocara a primeira cruzada, Girona sediava um concílio
para resolver questões da Igreja na Catalunha e era preciso sustentar a linha
sucessória do conde Ramón Berenguer II, que fora assassinado pouco antes do
nascimento do seu herdeiro. O futuro Ramón Berenguer III viria a se casar com
uma das filhas de El Cid antes de tornar-se ele mesmo um dos maiores caudilhos da Hispânia medieval. Em
Barcelona, uma estátua equestre do conde, iluminada dramaticamente, projeta à
noite sua enorme sombra nos prédios da via Laietana.
A Tapeçaria da Criação |
Onde aparecemos nós em busca do
livro e do tapete
O mês de janeiro estava perto de terminar quando chegamos para visitar a Catedral e seu museu,
onde estão expostos a Tapeçaria da Criação, recentemente restaurada, e o Beato
de Girona - na verdade uma réplica perfeita com a chancela do editor M.
Moleiro, com quem tivemos o prazer de conversar no escritório da sua editora em
Barcelona. (O Beato original está, espero eu, muito bem guardado nos cofres da
catedral).
Andamos pela cidade velha, entramos em becos, subimos várias "pujadas". Talvez fosse bom encerrar com o entusiasmo trazido pelo Empordá, que acompanhou as botifarras do almoço, e derramar algum lirismo sobre os prédios coloridos à beira do rio Onyar, a gentileza do rapaz que nos atendeu em català na bilheteria da basílica de São Felix ou o crepúsculo sobre os Pirineus Ocidentais que vimos desde as antigas muralhas de Girona, enquanto os sinos da catedral de Santa Maria nos apressavam para pegar o trem... mas é tarde - sempre é tarde - e a viagem tem de prosseguir.
Andamos pela cidade velha, entramos em becos, subimos várias "pujadas". Talvez fosse bom encerrar com o entusiasmo trazido pelo Empordá, que acompanhou as botifarras do almoço, e derramar algum lirismo sobre os prédios coloridos à beira do rio Onyar, a gentileza do rapaz que nos atendeu em català na bilheteria da basílica de São Felix ou o crepúsculo sobre os Pirineus Ocidentais que vimos desde as antigas muralhas de Girona, enquanto os sinos da catedral de Santa Maria nos apressavam para pegar o trem... mas é tarde - sempre é tarde - e a viagem tem de prosseguir.
A catedral de Santa Maria |
Lateral da catedral de Santa Maria |
Terraço da entrada da catedral de Santa Maria. Ao centro, a torre da basílica de São Félix. |
Praça da Catedral vista do terraço da entrada. |
Claustro românico da catedral de Santa Maria |
Claustro românico da catedral de Santa Maria. Detalhe de capitel. |
Porta com torreões ao fim da Pujada del Rei Martí |
Pujada de San Feliu, com a basílica de São Félix ao fundo |
Carrer de les Ballesteries |
Carrer dels Alemanys |
Jardin dels Alamanys |
Igreja de São Domingos vista da muralha |
Os becos, passagens e ladeiras do Bairro Judeu |
Os becos, passagens e ladeira do Bairro Judeu |
A torre da catedral de Santa Maria. Ao fundo, os Pirineus. |
O centro histórico de Girona visto da Ponte de Pedra |
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