Cenas da Revolução de 17
cena XI
A tomada do poder
A tomada do poder
[O que John Reed perdeu enquanto dormia]
Na quarta-feira, dia 7 de novembro, levantei-me muito tarde. A Fortaleza
de Pedro e Paulo dava o tiro do meio-dia quando eu descia pela Avenida Niévski.
Fazia um frio úmido e irritante. As portas do Banco do Estado estavam fechadas
e guardadas por soldados com baionetas caladas.
- De que lado estão vocês? – perguntei. – Do governo?
- Já não mais mais governo, Slava Bogu! (graças a Deus) – respondeu um
deles, com uma risada.
Foi tudo o que consegui saber. Os bondes passavam correndo pela Avenida
Niévski, com homens, mulheres e crianças pendurados nos balaústres. As lojas
estavam abertas e a multidão na rua parecia menos alarmada do que no dia
anterior.
[Uma
página perdida de Kafka]
Dirigi-me, então, para o
Palácio de Inverno, seguindo a avenida Admiralteiski. Todas as entradas do
Praça do Palácio estavam guardadas por sentinelas. A oeste, a não ser alguns
soldados transportando pedaços de madeira, do pátio para a porta principal, tudo
o mais permanecia tranquilo. Impossível saber se as sentinelas eram a favor do
governo ou dos sovietes. Os papéis que obtivera no Smólni não serviam para
nada. Resolvi, então, dar um golpe de audácia. Avancei com ar importante até a
fileira de guardas e, exibindo meu passaporte norte-americano, disse em tom
enérgico: "Serviço Oficial", e consegui passar. No saguão do palácio,
estavam os mesmos porteiros de sempre, que gentilmente me desembaraçaram do
chapéu e do capote. Subi. No corredor, sombrio e lúgubre, despojado de seus
tapetes, passavam criados sem saber o que fazer. Diante da porta de Kerenski,
estava um oficial ainda jovem, mordendo o bigode nervosamente. Indaguei se era
possível entrevistar o presidente do conselho. Juntou os calcanhares, inclinou-se
e respondeu-me em francês:
- Sinto muito, mas não é
possível. Aleksandr Fiódorovitch está muito ocupado neste momento...
Depois, examinando-me,
acrescentou:
- Na verdade, agora não
está aqui.
- Onde poderei
encontrá-lo?
- Partiu para a frente de
combate... E, como seu automóvel estava sem gasolina, fomos obrigados a pedi-la
emprestada no Hospital Inglês...
- E os ministros?
- Estão reunidos em
sessão, mas não sei exatamente em que sala.
- Saberá dizer-me se é
verdade que os bolcheviques vêm para cá?
- Sem dúvida. Não devem
tardar. Espero, de um momento para outro, um telefonema anunciando sua chegada.
Mas estamos preparados. Os junkers estão no palácio. Ali atrás daquela porta.
- Pode-se entrar?
- Não, impossível. É
proibido.
Chegamos ao Smólni, cuja fachada maciça estava toda iluminada. Das ruas mergulhadas na escuridão chegavam sombras de forma imprecisa, movendo-se com precipitação. Passavam automóveis e motocicletas. Um enorme carro blindado, cor de elefante, avançava, buzinando, com duas bandeiras vermelhas nas portinholas. Fazia frio. Os soldados vermelhos tinham acendido uma fogueira ao lado da grade. Na parte de dentro, à luz do fogo, as sentinelas decifraram com dificuldade nossos passaportes e nos examinaram. (...)
[É uma loucura, uma loucura!]
Chegamos ao Smólni, cuja fachada maciça estava toda iluminada. Das ruas mergulhadas na escuridão chegavam sombras de forma imprecisa, movendo-se com precipitação. Passavam automóveis e motocicletas. Um enorme carro blindado, cor de elefante, avançava, buzinando, com duas bandeiras vermelhas nas portinholas. Fazia frio. Os soldados vermelhos tinham acendido uma fogueira ao lado da grade. Na parte de dentro, à luz do fogo, as sentinelas decifraram com dificuldade nossos passaportes e nos examinaram. (...)
Fiz
Kamenev parar. Pequeno, movimentos vivos, rosto largo e expressivo, quase sem
pescoço, Kamenev traduziu-me rapidamente para o francês a resolução que acabava
de ser aprovada:
“O
Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado apela a todos os operários
de todos as partes da Rússia para que se coloquem com toda energia e com a
maior abnegação a serviço da revolução operária e camponesa. O soviete declara
ter certeza de que os operários das cidades, aliados aos camponeses pobres,
saberão forjar uma disciplina inflexível e assegurar a ordem revolucionária mais
perfeita, sem a qual será impossível fazer triunfar o socialismo. O soviete
igualmente está seguro de que o proletariado dos países da Europa Ocidental
auxiliará o proletariado russo na transformação socialista da Rússia, até a
vitória completa e definitiva do socialismo em todo o mundo”.
-
Então vocês acham que a partida está ganha? perguntei. Kamenev encolheu os
ombros.
-
Ainda há muita coisa por fazer, muita coisa mesmo. Estamos apenas começando.
Encontrei
Riazanov no vestíbulo. Era vice-presidente do Conselho dos Sindicatos. Estava
taciturno e mordia a todo instante o bigode grisalho:
-
É uma loucura, uma loucura! – gritava. – Os trabalhadores da Europa não vão se
mover. Toda a Rússia...
Levantou
desesperadamente os braços para o céu e afastou-se rapidamente. Riazanov e
Kamenev opunham-se à insurreição e tinham sido, por isso, severamente
criticados por Lenin.
A
sessão foi decisiva. Em nome do Comitê Militar Revolucionário, Trotsky declarou
que o Governo Provisório não existia mais.
-
Todos os governos burgueses – dizia ele – têm a característica de sempre
enganar o povo. Nós, o Soviete dos Deputados Operários, Soldados e Camponeses,
vamos fazer uma experiência sem precedentes na história. Vamos criar um governo
cuja finalidade única será satisfazer as necessidades dos operários, dos
soldados e dos camponeses.
Lenin
foi recebido com imensa ovação. Profetizou a revolução social no mundo inteiro.
E Zinoviev gritou:
-
Hoje pagamos uma dívida ao proletariado internacional. Assestamos terrível
golpe na guerra. Desferimos terrível golpe em todos os imperialismos,
particularmente no imperialismo alemão, em Guilherme II, o Carrasco...
Logo
depois, Trotsky anunciou que haviam sido enviados telegramas comunicando a
vitória a todas as frentes do Exército. Mas até aquele momento nenhuma resposta
chegara. Falava-se que tropas marchavam sobre Petrogrado. Era preciso enviar
uma delegação ao seu encontro para fazê-las conhecer a verdade.
Alguém
gritou:
-Vocês
não esperaram que o Congresso Pan-Russo dos Sovietes manifestasse sua vontade!
Trotski
respondeu friamente:
-
A vontade do Congresso Pan-Russo dos Sovietes foi precedida pela sublevação dos
operários e soldados de Petrogrado.
[Não fumem, camaradas!]
Era
sufocante a temperatura da sala, apenas aquecida pelo calor de centenas de
corpos suados. Espessa nuvem azulada elevava-se dessa multidão, tornando o ar
irrespirável. De vez em quando, um dos presentes subia à tribuna e pedia aos
camaradas que não fumassem. Então toda a sala, inclusive os fumantes, começava
a gritar: - Não fumem, camaradas! – E todos continuavam fumando.
[O nascimento de uma nação]
Mas,
de repente, ouviu-se uma nova voz, mais profunda, dominando o tumulto da
assembleia. Era a voz surda do canhão! Todos os olhares voltaram-se
ansiosamente para as janelas. Uma espécie de febre ardente dominou a
assembleia.
Martov
pediu a palavra. E, com voz rouca, disse:
-
Camaradas! A guerra civil já começou. É necessário discutir em primeiro lugar a
solução pacífica da crise. Tanto por questões de princípios, como por motivos
políticos, devemos começar a sessão de hoje discutindo com a maior urgência os
meios de fazer cessar a guerra civil. Nossos irmãos estão morrendo nas ruas...
neste momento em que se procura resolver a questão do poder, antes da abertura
do Congresso dos Sovietes, por meio de uma conspiração militar organizada por
um único dos partidos revolucionários – (Durante alguns instantes o trovejar da
artilharia abafou-lhe as palavras) - ... Todos os partidos devem encarar este
problema de frente. A primeira questão que o Congresso vai discutir é a do
poder. Mas ela já está sendo resolvida nas ruas, pela força das armas... Temos
a missão de criar um poder que toda democracia possa reconhecer. Se este
congresso quer ser o porta-voz da democracia revolucionária, não deve ficar de
braços cruzados ante a guerra civil que ameaça fazer explodir uma perigosa
contra-revolução. Só há uma solução pacífica para a crise atual: a formação de
um poder com a participação de todas as organizações democráticas num bloco
unido... Proponho que se eleja uma delegação para negociar com todos os
partidos e organizações socialistas.
O
surdo rimbombar do canhão continuava a fazer estremecer os vidros das janelas,
com intermitências regulares, enquanto os deputados discutiam e se insultavam.
Foi
assim, sob o troar da artilharia, na obscuridade, no meio de ódios, de medo e
da mais temerária das audácias, que nasceu a nova Rússia.
(John Reed, Os dez dias que
abalaram o mundo, capítulo IV, Círculo do Livro, s/d pp. 98, 101-102, 107-110)
25 октября
Na terça-feira, dia 7 de
novembro de 2017, levantei-me cedo. A estação Vila Madalena havia aberto há pouco quando eu desci a avenida Heitor Penteado. Fazia um frio
úmido e irritante. As portas do Banco do Brasil estavam fechadas.
Na esquina havia alguns
policiais.
- De que lado estão vocês - perguntei - Do governo?
- Já não mais governo,
graças a Deus - respondeu um deles, com uma risada.
Foi tudo o que eu
consegui saber. Entrei no metrô e me dirigi ao local onde diariamente dispenso
um pouco do meu sangue, do meu tempo e da minha vida para pagar minhas contas. Coloquei
os auriculares e ouvi a Internacional cantada pelo coro do Exército Vermelho.
Os meus camaradas de transporte público estavam taciturnos.
Em frente ao SESC
Pompeia, manifestantes do Movimento Brasil Livre iriam se reunir à tarde para
apontar crucifixos e rosários contra a efígie da filósofa Judith Butler. No
Palácio do Planalto, o Governo Provisório continuaria a sua luta desesperada
para se manter no poder.
A Revolução Russa
completa cem anos hoje.
Cem anos.
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abertura: Eugêne Laermans, A bandeira Vermelha, 1893
Musée Fin-de-Siecle, Bruxelas
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