Dos
livros (parte I)
Os
livros vieram todos abaixo, alguns cobertos pela espessa poeira que se
acumulou desde o verão passado, quando fiz faxina na biblioteca pela última
vez. Um país se faz com homens e livros e ambos, por razões não apenas de
higiene, precisam de alguma limpeza. Nas vezes em que estive em Milão, passava
diante do prédio em que morava Umberto Eco, ainda vivo naquele tempo, e pensava
nos muitos milhares de livros que ele tinha. E ali, de costas para o castelo
Sforzesco, na névoa gelada que desce dos Alpes quando o dia termina, eu
imaginava com inveja e horror o trabalho que dá limpar todo aquele armazém erudito que se acumulou durante uma vida de colecionador entregue ao amor pela página impressa ou manuscrita. É claro que o mandarim Umberto Eco não se rebaixaria à tarefa
servil de sentar-se com uns trapos para remover o pó dos alfarrábios, mas um tipo como eu, anônimo e sem prestígio, não pode se furtar à obrigação de descer os
volumes, espaná-los um a um, escoimá-los das traças e, antes de devolvê-los ao nicho,
abrir as folhas de guarda à procura de uma data, de uma dedicatória, da assinatura do falecido dono, de um autógrafo, de um antigo bilhete de metrô que foi usado como
marca-página. Depois, vadiar um pouco pelas páginas, pescar uma frase e fechar
abruptamente o livro para retomar a faina interrompida pela digressão. O livro
volta à estante, alinhado como um índice, mas a frase recém-pescada ressoa na
memória como se buscasse a contra-senha escondida noutro livro. A faxina é
interrompida mais uma vez. É urgente caçar, na massa nunca bem ordenada da
biblioteca, o verbete, a nota-de-rodapé, o colofão ou o posfácio que
completa o circuito da ideia que, encolhida e tremebunda, faz sinais de
que quer dizer algo importante. Mas ela é excessivamente tímida e não
desembucha logo. Na confusão dos livros que esperam sua vez espalhados no chão,
outras ideiazinhas se levantam, murmuram e agitam as mãozinhas, mas
nenhuma se impõe. Em dias de faxina da biblioteca, conceitos e versos querem saltar das páginas e têm ganas de ver a luz, todos ao mesmo tempo. Nessas ocasiões, o fundo lodoso do pensamento se agita com o tumulto das
formas conhecidas e com o sentimento de culpa pelos livros não lidos. Nesses dias, ao invés de arquitetura e harmonia, há apenas dissonância e desconcerto. A lógica perde o norte e o gume, e a cabeça, atordoada
pelo ruído das vozes roucas, fica imprestável como o piano quebrado que o vizinho abandonou no pátio.
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