quinta-feira, 7 de março de 2019

Dos livros (parte II)








Dos livros (parte II)



Primeira questão: “Você já os leu todos?”

Inúmeras vezes alguém que passeava os olhos pelos títulos e lombadas da minha biblioteca me fez essa pergunta. Um certo invejoso despeitado, querendo ser original, advertiu-me que possuir tantos livros equivaleria a fugir da obrigação de lê-los. Nem sempre a verdade está com os invejosos despeitados. Acredito que, quando se tem uma biblioteca, os livros ainda não lidos clamam contra a nossa negligência. Eles nos exortam a vencer a selva de papel e palavras. Eruditos, ratos de sebo, quixotes e leitores míopes temos todos nós epopeias secretas. Conhecemos os riscos das estantes abarrotadas, travamos batalhas épicas nos in-folio alcantilados e disputamos escaramuças rápidas nas brochuras sem relevo. Do picaresco ao heroico, em Garamond, Bodoni ou Helvética, nada nos é estranho na galáxia de Gutenberg. Nenhum tigre de papel nos põe medo. A beleza das extensas fileiras de livros que ainda não conhecemos é a promessa de que o prazer da descoberta, que vivíamos tão intensamente quanto os amores adolescentes, será mantido mesmo quando já avançarmos muito nos anos.

Segunda questão: “Qual o seu livro preferido?”

Essa pergunta vem de gente feliz, que associa a leitura apenas ao prazer e não àquilo que ela é amiúde: um suplício de Tântalo muito familiar aos naturalistas que se põem a catalogar a infinita natureza. Para a gente feliz que faz listas de "livros preferidos", explico que os livros são incomensuráveis porque inseparáveis das circunstâncias de leitura. Uma obra lida de uma sentada, movida pelo prazer e pela curiosidade, não pode ser medida pela régua das obras lida de maneira reflexiva e lenta, às vezes, ao longo de quase toda uma vida, ou de obras estudadas de maneira técnica e com anotações, ou das que se prestam apenas a consultas breves. Há os livros de cabeceira e os que viajam na mochila, há livros de mesa e os há de escrivaninha, de rede e de banheiro.

No sentimento que temos por um livro, os meios de aquisição não são indiferentes, seja o furto, o empréstimo nunca devolvido, a compra impulsiva, a aquisição longamente acalentada ou o achado surpreendente. Há livros que entraram em minha casa menos pela importância intrínseca da obra do que pela alegria de conhecer certa livraria em certa cidade.

Enfim, importa a hora e o momento em que lemos. Há livros solares, que nos acordam da modorra dogmática. Outros exigem a solidão da madrugada. Há obras para se ler na juventude, como O Apanhador no Campo de Centeio, que me dói ter lido tão tarde, trintão e professor; outras, pelo contrário, li antes do tempo, sem poder entendê-las.  Verdes que fossem ou serôdias, dessas leituras saí triste ou perplexo, mas nunca de mãos abanando. 



PS - Houve um ruído excessivo, à direita e à esquerda, em torno do vídeo tuitado por Bolsonaro. Por que essa surpresa e consternação? O capo é fiel a si mesmo na forma, no conteúdo e nos meios. Na falta de outras virtudes, elogiemos ao menos a sua coerência e obstinação no picadeiro.









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