Dos livros (parte II)
Primeira questão: “Você já os leu
todos?”
Inúmeras vezes alguém que passeava os olhos pelos títulos e lombadas da minha biblioteca me fez essa pergunta. Um
certo invejoso despeitado, querendo ser original, advertiu-me que possuir tantos
livros equivaleria a fugir da obrigação de lê-los. Nem sempre a verdade está com os
invejosos despeitados. Acredito que, quando se tem uma biblioteca, os livros
ainda não lidos clamam contra a nossa negligência. Eles nos exortam a vencer a selva
de papel e palavras. Eruditos, ratos de sebo, quixotes e leitores míopes temos
todos nós epopeias secretas. Conhecemos os riscos das estantes abarrotadas,
travamos batalhas épicas nos in-folio alcantilados e disputamos escaramuças
rápidas nas brochuras sem relevo. Do picaresco ao heroico, em Garamond, Bodoni
ou Helvética, nada nos é estranho na galáxia de Gutenberg. Nenhum tigre de papel nos põe medo. A beleza das
extensas fileiras de livros que ainda não conhecemos é a promessa de que o prazer da descoberta, que vivíamos tão intensamente quanto os amores
adolescentes, será mantido mesmo quando já avançarmos muito nos anos.
Segunda questão: “Qual o seu livro
preferido?”
Essa pergunta vem de gente feliz, que
associa a leitura apenas ao prazer e não àquilo que ela é amiúde: um suplício de Tântalo muito familiar aos naturalistas que se põem a catalogar a infinita natureza. Para a gente feliz que faz listas de "livros preferidos", explico que os livros são incomensuráveis porque inseparáveis das circunstâncias de leitura. Uma obra
lida de uma sentada, movida pelo prazer e pela curiosidade, não pode ser medida
pela régua das obras lida de maneira reflexiva e lenta, às vezes, ao longo de
quase toda uma vida, ou de obras estudadas de maneira técnica e com anotações,
ou das que se prestam apenas a consultas breves. Há os livros de cabeceira e os que viajam na mochila, há livros de mesa e os há de escrivaninha, de rede e de banheiro.
No sentimento que temos por um livro, os meios de aquisição não são indiferentes, seja o furto, o empréstimo nunca devolvido, a
compra impulsiva, a aquisição longamente acalentada ou o achado surpreendente. Há
livros que entraram em minha casa menos pela importância intrínseca da obra do que pela
alegria de conhecer certa livraria em certa cidade.
Enfim, importa a hora e o momento em que lemos. Há livros solares, que nos acordam da modorra
dogmática. Outros exigem a solidão da madrugada. Há obras para se ler na juventude, como O
Apanhador no Campo de Centeio, que me dói ter lido tão tarde, trintão
e professor; outras, pelo contrário, li antes do tempo, sem poder entendê-las. Verdes que fossem ou serôdias, dessas leituras saí triste ou perplexo, mas nunca de mãos abanando.
PS - Houve um ruído excessivo, à direita e à esquerda, em torno
do vídeo tuitado por Bolsonaro. Por que essa surpresa e consternação? O capo é
fiel a si mesmo na forma, no conteúdo e nos meios. Na falta de outras virtudes, elogiemos ao menos a sua coerência e obstinação no picadeiro.
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