Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Seção I – Burgueses e Proletários
6. A fenomenologia do proletariado
Na sequência do Manifesto, Marx escreve:
A burguesia, porém, não se limitou a forjar as armas que lhe trarão a morte: produziu também os homens que empunharão essas armas – os operários modernos, os proletários.
Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, os quais só vivem enquanto tem trabalho e só tem trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital. Esses operários, constrangidos a vender-se a retalho, são mercadorias, artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.
O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho despojaram a atividade do operário de seu caráter autônomo, tirando-lhe todo o atrativo. O operário torna-se um simples apêndice da máquina e dele só se requer o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de subsistência que lhe são necessários para viver e perpetuar sua espécie. Ora, o preço do trabalho, como de toda mercadoria, é igual ao seu custo de produção. Portanto, à medida que aumenta o caráter enfadonho do trabalho, decrescem os salários. Mais ainda, na mesma medida em que aumenta a maquinaria e a divisão do trabalho, sobe também a quantidade de trabalho, quer pelo aumento das horas de trabalho, quer pelo aumento do trabalho exigido num determinado tempo, quer pela aceleração do movimento das máquinas etc.
A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista. Massas de operários, amontoadas nas fábricas, são organizadas militarmente. Como soldados rasos da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são apenas servos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também dia a dia, hora a hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, mais odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo.
Quanto menos habilidade e força o trabalho manual exige, isto é, quanto mais a indústria moderna progride, tanto mais o trabalho dos homens é suplantado pelo de mulheres e crianças. As diferenças de idade e de sexo não tem mais importância social para a classe operária. Não há senão instrumentos de trabalho, cujo preço varia segundo a idade e o sexo.
Depois de sofrer a exploração do fabricante e de receber seu salário em dinheiro, o operário torna-se presa de outros membros da burguesia: o senhorio, o varejista, o penhorista etc.
As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes, os que vivem de rendas, artesãos e camponeses, caem nas fileiras do proletariado; uns porque seu pequeno capital não permite empregar os processos da grande indústria e sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção. Assim, o proletariado é recrutado em todas as classes da população.
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Esta é uma das grandes páginas sociológicas de Marx.
De maneira sucinta, e distante de qualquer sentimentalismo dickensiano quanto às penúrias dos pobres, o Manifesto esboça uma fenomenologia do trabalho na grande indústria da primeira metade do século XIX, ou seja, num sistema de extração de mais-valia absoluta.
Em suas linhas gerais, o processo, do qual Marx mostra os efeitos e a lógica subjacente, pode ser resumido assim:
a. O capital se reproduz e aumenta através da extração do valor produzido pelo trabalho (Marx levará cerca de vinte anos para justificar teoricamente essa noção basilar da análise econômica e social marxista).
b. A grande indústria, baseada na divisão do trabalho e no maquinário, era o sistema mais eficiente de extração do valor produzido pelo trabalho.
c. O trabalho na grande indústria é decomposto em operações simples e repetitivas. Não há necessidade de qualificação artesanal, nem de grande força muscular, por isso as tarefas podem ser executadas por homens, mulheres ou crianças. Os trabalhadores são meras unidades intercambiáveis.
d. O trabalhador se torna proletário quando é constrangido a vender a sua força de trabalho à grande indústria como unidade intercambiável. A força de trabalho em si mesma, independente de qualquer qualificação, torna-se uma mercadoria.
e. Todavia, essa mercadoria somente pode ser comprada pelo capital, que precisa dela para sua reprodução, assim como o proletário precisa do emprego. O trabalho proletário e a expansão do capital estão mutuamente imbricados.
f. O trabalho do proletário na grande indústria se caracteriza pela:
- desprofissionalização e indiferenciação do trabalho (a divisão do trabalho industrial não corresponde à divisão das aptidões individuais).
- perda da autonomia, porquanto o trabalhador é apenas um apêndice da máquina.
- falta de atrativo e monotonia (o trabalho tem base na repetição e não na invenção).
- submissão a uma organização militar disciplinadora
- longa extensão da jornada de trabalho
- aceleração do ritmo de trabalho
g. Como toda mercadoria, o preço do trabalho é medido pelo custo de sua produção. Portanto, os salários tendem a ser comprimidos ao mero limite da recomposição física do trabalhador.
h. À medida que a grande indústria se expande, as pequenas oficinas são destruídas pela concorrência. Assim como os artesãos, os pequenos comerciantes, os camponeses e os pequenos rentistas são obrigados a vender sua força de trabalho para a grande indústria para poderem sobreviver. O proletariado tem uma composição social heterogênea. São os deserdados da grande indústria.
i. Depois de ser explorado no trabalho, o proletário também é explorado pelo varejista, pelo senhorio, pelo penhorista. Com isso, completa-se o circuito da exploração do trabalhador pela burguesia.
Como em outros momentos do Manifesto, Marx parece mais percuciente na compreensão dos efeitos e da lógica do processo do que na sua reconstituição histórica. Um exemplo disso é a referência rápida e casual ao recrutamento dos camponeses como força proletária. Talvez Marx considerasse benéfico o fato de que a burguesia tirasse o homem do campo da idiotia da vida rural (como declara numa passagem anterior do Manifesto). De qualquer modo, o Manifesto parece ignorar ou minimizar o papel do êxodo rural na formação do proletariado. Marx parece mais preocupado com a transformação do sistema de trabalho urbano:
A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista.
O trabalhador que perde a autonomia e o atrativo do seu trabalho é aquele que está empregado nas oficinas mantidas por mestres de ofício. Esse sistema de trabalho, de origem medieval, ainda era bastante ativo na Europa continental no século XIX, mas era ameaçado pelo sistema da grande indústria, que havia se implantado na Inglaterra. A liga de trabalhadores que solicitou a redação do Manifesto Comunista era formada por artesãos, não pelos proletários descritos por Marx. Essa falta de contato com os verdadeiros proletários talvez explique o pequeno papel dado aos camponeses migrados na composição do proletariado.
De qualquer modo, Marx chegou a conclusões que serão o núcleo de suas análises posteriores sobre a relação entre o capital e o trabalho:
1. O capital obriga o trabalhador individual e, por vezes, qualificado a vender sua força de trabalho de maneira genérica, num sistema em que ele se torna uma unidade intercambiável. O trabalho se torna uma mercadoria e o trabalhador, um proletário.
2. O trabalho, ao tornar-se mercadoria como trabalho genérico, desvaloriza-se. Essa desvalorização se manifesta nos salários comprimidos e nas condições de trabalho aviltantes.
3. A reprodução do capital exige a desvalorização do trabalho (isto é, a existência do proletariado).
4. A emancipação do trabalho genérico do proletariado interromperá o ciclo de reprodução do capital.
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As linhas em que Marx esboça a lógica e os efeitos da grande indústria sobre o trabalho são carregadas de um clamor de indignação contra a humanidade espezinhada do trabalhador:
Esses operários, constrangidos a vender-se a retalho, são mercadorias, artigo de comércio como qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.
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O operário torna-se um simples apêndice da máquina e dele só se requer o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender.
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Massas de operários, amontoadas nas fábricas, são organizadas militarmente. Como soldados rasos da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são apenas servos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também dia a dia, hora a hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, mais odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo exclusivo.
(...)
As diferenças de idade e de sexo não tem mais importância social para a classe operária. Não há senão instrumentos de trabalho, cujo preço varia segundo a idade e o sexo.
Certas correntes cientificistas do marxismo (como o bolchevismo das cartilhas do Comintern ou o althusserianismo) sempre desprezaram o clamor moral que exala dessas linhas como simples resmungos do subjetivismo inconformista, resíduos do romantismo juvenil de Marx. Essas correntes marxistas preferiam ignorar todos aqueles textos vigorosos em que Marx não separa a verdade e o valor moral na análise social, nem dissocia esse valor científico-moral da riqueza estilística da palavra. Essa unidade “artística” de pertinência analítica, avaliação moral e realização verbal é o que torna certas páginas de Marx infinitamente superiores àqueles arremedos aritméticos elementares que preenchem certos capítulos de O Capital, os quais se assemelham tristemente aos modelos matemáticos sofisticados com os quais os economistas se iludem cotidianamente, quando brincam de fazer ciência.
Marx teve êxito em mostrar que a proletarização dos trabalhadores não é um resultado da crueldade de alguns patrões, mas do desenvolvimento histórico do capital em sua relação com o trabalho.
Todos os que se preocupam com a transformação das relações sociais são herdeiros de Marx na medida em que aceitam que há uma relação entre o sistema de trabalho e o ciclo de reprodução do capital, embora muito mais complexa do que a que era possível pensar no século XIX. O problema é escapar das valorações moralistas convencionais a respeito da importância do trabalho e da dignidade do trabalhador, endossadas por várias tendências marxistas que davam uma interpretação conformista ao ideal revolucionário de emancipação do trabalho. É esse conformismo que podemos ver no depoimento do trabalhador alemão Otto Krille que, na virada do século XIX para o século XX se tornou militante do SPD, então o maior e mais ativo partido marxista do mundo:
E o mais estranho era (...) que eu, que desprezava a disciplina militar incondicional, me submeti de boa vontade à disciplina do partido. Por mais contraditório que pareça, a ideologia socialista me reconciliou em certa medida com minha existência proletária e me ensinou a respeitar o trabalho manual. Eu já não me sentia mais incomodado pelo termo “trabalhador”.
(“Diary of Otto Krille”, in The German Worker, citado por David Priestland em A Bandeira Vermelha: uma história do comunismo)
Neste momento em que a cegueira conformista domina o trabalho, incentivada pelo medo do desemprego, pelas palestras de psicologia motivacional e pelas metas de produção propostas por subchefes igualmente acovardados; nesse momento em que até mesmo as profissões tidas como “de classe média” (no setor da saúde, da educação, dos serviços, de projeto e engenharia etc) correm o risco de cair numa espécie de proletarização (salários comprimidos, jornadas de trabalho excessivas, falta de segurança no emprego), neste momento em que os trabalhadores em geral "estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado", é preciso ter coragem para pensar novamente a emancipação do trabalho, fora dos esquemas reconciliatórios tão cediços na fala dos políticos de esquerda, mais preocupados com a manutenção de suas cadeiras parlamentares ou executivas do que com a transformação das condições sociais.
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Vale a pena dar uma chance para os críticos do trabalho assalariado, como o coletivo que mantém a página RienFoutre.
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