Carta a Ismael Fernandes de Andrade
Ismael,
Não se ofenda com a pergunta, mas quando é o momento de reconhecer que a velhice chegou?
Parece que a velhice só existe aos olhos dos outros. Dizemos que alguém está velho, que alguém parece velho. A consciência da nossa própria velhice só nos vem em momentos de depressão, como se contemplássemos – entre o espanto e a piedade - a ruína do que fomos. Hora em que se torna doloroso recordar das capacidades (reais ou imaginárias) que tínhamos. A velhice, vivida assim, é o recolhimento que se segue a uma grande derrota e tem pouco a ver com a idade. Há velhos prematuros, como há bebês prematuros.
Alguém poderia dizer que o envelhecimento é um processo natural que pode ser vivido com dignidade. A isso eu respondo que não é do envelhecimento que estou falando, mas da velhice: não da sucessão de pequenas perdas e mudanças às quais todos estamos sujeitos se temos uma vida longa, mas do estado de irreversibilidade: o estar definitivamente velho aos olhos de todos. Você consegue imaginar Ulysses Guimarães com 30 anos? E Papai Noel? Como ele era quando adolescente? A velhice congela a si mesma numa máscara eterna, como ensaio da máscara mortuária.
Até aceito que se possa enfrentar dignamente o processo de envelhecimento que começa. Acredito que é o que você e eu estamos fazendo. É possível até retardar o processo, prolongando uma aparência juvenil e apetecível, como Paula Toller, que fez 50 anos na semana que passou.
O que não me convence é que haja alguma dignidade em estar velho, em sentir-se velho, em ser visto como velho. A dignidade na
velhice é normalmente associada a uma situação de saúde, posse de bens e
reconhecimento público: ou seja, tudo o que afasta a pobreza, o
esquecimento e a dependência vexatória. Fernanda Montenegro, Morgan Freeman e Oscar Niemeyer
tem uma velhice “digna” nesse sentido burguês. Porém, quando aplicada aos velhos anônimos, dignidade é somente
um eufemismo para o autocontrole fatalista diante da perda da
“eficiência” do corpo e da mente. Dignidade na velhice é saber não
resmungar diante do acúmulo de doenças e do ranger do organismo.
Dignidade na velhice é o conformismo da carcaça.
A dignidade é totalmente dispensável quando temos atributos melhores. Para que a dignidade quando se é vigoroso, ágil, atraente, pleno de esperanças de realização? Onde já se ouviu falar de dignidade na juventude? Toda essa bobagem melosa sobre a dignidade na velhice é, quando muito, o prêmio de consolação que os mais jovens oferecem aos idosos, como se dissessem: Velho, você já trabalhou bastante, agora viva os dias que lhe restam em paz, pare de reclamar e deixe-me continuar minha vida.
A velhice é áspera e atroz. Aos 97 anos, minha avó sofre por causa de dores em todo corpo; sofre por não mais conseguir enfrentar um degrau de escada; sofre com a visão turva; sofre devido aos lapsos de sua memória que foi, outrora, proverbial na família. Ela sabia de cor o dia em que nasceu cada filho, cada neto e cada bisneto. Sabia o dia em que eu comecei a estudar na universidade! Mas ela não se esqueceu do trabalho duro na roça, do choro doído de cada um dos filhos que morreu na infância, de todas as angústias da pobreza, de todas as humilhações sofridas e das ingratidões inesperadas. E, mesmo assim, ela luta por cada pedaço de vida a que julga ter direito. Quase centenária, sua vida se reduziu a um poço estreito em que se pode apenas ouvir o ruído da água, quando uma pedra desaba e sobe o som cavo do fundo estagnado de tantos sofrimentos antigos. Há dignidade nisso? Se há, não vem da velhice, mas sim da mulher que existe ali. Minha avó é digna a despeito da velhice. Diferentemente das garrafas de vinho, as pessoas não ganham valor ao envelhecer, elas apenas acumulam depósitos de mosto.
Quando se trata da velhice, assim como do câncer, ficamos delicados e cheios de dedos. Dizemos, a meia voz, que fulano – que não víamos há algum tempo – parece “envelhecido”. Quer dizer que percebemos os sinais da ferrugem que avança. O cantor Neil Young, de quem sou admirador antigo, sempre refletiu sobre o peso crescente da idade. Há muito tempo, ele já era o “velho” e sabia bem: rust never sleeps. Confesso que o assunto me interessa há muito tempo, refiro-me à gênese da ruína: a maneira como, antes de morrermos, temos várias mortes parciais: a das células que não se repõem, das memórias que se perdem, dos amigos que se vão, da consideração e do respeito alheio que se dissipam, do sentimento da nossa independência que se esfacela diante da necessidade de auxílio.
Meu amigo Roberto Pimentel, quando chegava aos setenta anos, costumava dizer que sabemos que estamos velhos quando ninguém mais se lembra de nossos pais. O mundo que amamos começa a morrer muito antes de nós. Há um ano, fiquei sabendo que meu melhor amigo da adolescência tinha morrido por causa de um tumor cerebral. Ao perdermos um amigo, deixamos de compartilhar uma área inteira de nossas memórias. O amigo que sobrevive é agora o portador solitário de uma experiência que morrerá com ele, como acontece com o último exemplar de uma espécie em extinção. É essa experiência de solidão do sobrevivente, que não pode mais compartilhar as suas memórias, que faz de alguém um velho. O velho pode contar a sua vida quantas vezes quiser, mas ninguém comunga mais suas experiências porque o mundo em que elas faziam sentido se foi. Fica apenas a loquela que os mais jovens escutam por caridade ou por curiosidade histórica: as histórias do vovô expostas como peças do pequeno museu familiar.
Mesmo os amigos começam a sumir antes de morrerem de fato. Um amigo nosso está doente. Da última vez que lhe telefonei, ouvi uma voz fria e débil vinda de alguém que atravessa sozinho um longo corredor cinzento e não espera mais sair dele. Tomara que eu esteja enganado, mas parece que a velhice chegou para nosso amigo. Desabou bruta e forte como um temporal. A depressão poderá ser remediada, mas não o sentir-se obsoleto, na constante ruminação das doçuras perdidas da vida. É a situação de segregação em que vive a maioria dos velhos, mesmo quando cercados por uma família amorosa. E ninguém me venha com o argumento de que muitos idosos são ativos e brilhantes. Eles são exceções assim como as crianças-prodígio e, na sua condição excepcional, não valem como modelos. Só acentuam, por contraste, a precariedade da velhice comum.
A velhice é particularmente cruel nas profissões que exigem o carisma de comunicador, como é o caso do nosso ofício de professores de cursinho pré-vestibular. À medida em que envelhece, o professor ganha experiência e compreensão, mas também se enrijece e fica intolerante com os hábitos dos jovens, que não compartilham mais o seu mundo, não importa quanto esforço ele faça para manter-se atual. Nós vimos muitas vezes o que acontece em seguida: o professor velho e experiente, grande sucesso nos tempos idos, arrasta agora o seu carisma declinante, tentando animar os jovens alunos com piadas anacrônicas. Alguns fazem pior: tentam restaurar sua juventude pelo arremedo de gírias adolescentes colhidas aqui e ali e assumem o triste papel de teenagers caricatos, mas Machado de Assis tinha razão: o cabelo admite tintura, o coração não.
De qualquer maneira, o momento de parar chegará. Os professores de cursinho, em geral, lidam mal com a aposentadoria porque as salas de aula não são apenas meio de trabalho, mas instrumentos para a satisfação narcísica. Ninguém se torna professor de cursinho sem doses cavalares de narcisismo. Tanto o narcisismo no sentido comum de vaidade ou autopromoção, quanto o narcisismo no sentido dado por alguns psicanalistas: o narcisista só ama os outros na medida em que os outros confirmam e alimentam o amor que ele sente que merece ter. Os outros são apenas instrumentos para reforçar uma autoestima hesitante e sempre necessitada de homenagens e da atenção alheia. Para obter esse amor, o narcisista – como vampiro de almas - está disposto a tudo: manipular, seduzir, trapacear, mimetizar os gostos daqueles que ele quer conquistar, inventar uma vida e uma cultura que ele não tem a fim de ser mais “interessante”. Quantos desses talentosos Ripleys dividem conosco as salas de aulas dos cursinhos do Brasil?
Sem chegar a esses extremos, todos os professores de cursinho, como narcisistas que são, sofrem demais com o momento da aposentadoria. Eu imagino as almas desses velhos saudosistas, mesmo as almas dos que ainda estão de corpo presente, visitando à noite as salas de aulas vazias e escuras para “passar” os macetes e as dicas, enquanto esperam pela ovação barulhenta da turma, dando piscadelas para a menina bonita de saia curta, sentada na primeira fileira. E como eles gostam de repassar a crônica de suas conquistas, inclusive as amorosas, como aquele velho libertino, Giacomo Casanova.
Nosso amigo não era assim e gostava muito de rir disso. Um riso irônico e cínico, do qual eu tenho saudade e que procuro evocar e imitar para não deixá-lo desaparecer da minha memória.
Ainda não estamos velhos, mas meu mundo não é mais o dos meus alunos. Alguns de meus amigos já morreram, alguns de meus colegas mais queridos se afastam doentes. Quanto tempo se passará até que ninguém mais saiba o nome de meus pais? Como é que vai ser quando a velhice bater na minha porta (ou na aorta)?
Pois é. O nosso amigo está doente. E fico triste por nós, que não podemos mais rir com ele, quando ainda há tanto do que rir.
Um abraço triste do seu velho amigo