domingo, 19 de agosto de 2012

O ofício e seu esqueleto




Carta a Nelson Akito Imagure  



Nelson,


Houve um ano em que parávamos todo sábado no posto da saída de São José dos Campos em direção a São Paulo. Éramos seis: Carlão, Robinson, Tião, Tomita, você e eu. As conversas variavam de acordo com o humor do grupo e dos casos da semana. Uma vez, depois de uma certa dose de álcool (os tempos eram outros...), começamos a dar palpite sobre o teorema da incompletude de Gödel. Acho que foi o Tião que puxou o assunto,  nem sei mais a propósito do que. Pouco importa. Vinte minutos depois, nós, os professores da área de Humanas - Carlão, Robinson e eu - tivemos que explicar que as matérias que lecionamos não se reduzem a uma série de interpretações subjetivas e arbitrárias. 

Apelei para a distinção, formulada por Edmund Husserl, entre rigor e exatidão nas ciências e, no calor da discussão e da euforia que o chopp traz, tomei a liberdade de parafraseá-la, incorporando inevitavelmente algumas das minhas obsessões sobre o assunto. O que eu disse foi mais ou menos isso:

As ciências exatas partem de um número relativamente pequeno de axiomas ou de parâmetros previamente definidos. Os problemas podem ser resolvidos através de algoritmos simples ou de procedimentos mais complexos. Alguns problemas podem ser difíceis e outros podem ser declarados insolúveis, mas quando se obtém um resultado, trata-se sempre de um resultado calculado, não um resultado adivinhado. 

As ciências humanas trabalham com um número maior de parâmetros, em geral não definidos previamente. O procedimento axiomático, embora não impossível, é pouco útil  para a maioria das pesquisas na área. O trabalho é em grande parte interpretativo, mas há regras gerais para uma boa interpretação. Ser objetivo nas ciências humanas não significa ser impessoal ou exato, mas sim aceitar as regras consensuais: buscar as fontes diretas, não forjar citações, comparar fontes diferentes, não aceitar uma única autoridade, justificar a discrepância da sua interpretação com as interpretações propostas por intérpretes reconhecidos etc. 

Agora ocorreu-me que tudo poderia ser resumido com uma analogia: os homens das ciências exatas são como construtores que trabalham com blocos regulares de tamanho padrão e sabem, de antemão, quantos deles serão necessários para levantar uma parede de certa altura e comprimento. Já os homens das ciências humanas são como construtores que vão erguer um muro rústico com pedras irregulares de vários tamanhos. Por isso, eles são incapazes de dizer de antemão quantas e quais pedras serão necessárias. A escolha de cada pedra depende de uma avaliação em que conta mais a experiência acumulada do que a definição explicita de parâmetros. Isso não impede, porém, que o muro seja sólido. Ele não foi construído com exatidão, mas com rigor, de maneira que, uma vez erguido, ele pode durar muito tempo. O construtor é capaz de explicar a posteriori as razões e motivos que o levaram a escolher esta ou aquela pedra, mas a verdade é que ele nem sabia que iria usá-las antes de começar a obra.

É por causa disso que, nas ciências humanas, especialmente aquelas que estudam a linguagem, fala-se tanto de analisar o “peso” das palavras: sua origem, seu uso, suas implicações. Pois é do “peso” de certas palavras que eu queria falar com você;  por exemplo, do “peso” da palavra que denomina o nosso principal local de trabalho: o cursinho. Não posso ter exatidão no que vou dizer, mas vou tentar ser rigoroso. 

Sempre me incomodou essa zona de sombras em que se encontram os cursinhos, do ponto de vista da sua posição no quadro educacional. Não há estatísticas oficiais sobre o número de alunos matriculados nos cursinhos pré-vestibulares do Brasil e de seu perfil sócio-econômico. Os poderes públicos fingem que os cursinhos não existem, o que é curioso porque muitos professores das universidades públicas tiveram suas temporadas nos cursinhos, como alunos ou como professores. Lembro também que José Atilio Vanin, quando era diretor da Fuvest, fazia palestras a convite dos cursinhos. Então, como se explica a falta de informações estatísticas?

A desculpa de que os cursinhos são “cursos livres” não me convence. As aulas acontecem em prédios que são fiscalizados; a relação contratual com os professores é regulamentada pelas leis trabalhistas; os lucros obtidos com o serviço prestado são taxados pela Receita Federal;  o consumo de água e luz é cobrado pelos órgãos responsáveis. Em São Paulo, a escadaria do Objetivo na Paulista é um local referencial na paisagem urbana. Como é que os cursinhos poderiam ser invisíveis?

Por que só o Ministério da Educação e Cultura  parece não se interessar pelos cursinhos? Definitivamente o estatuto de “curso livre” não é a resposta. Basta pensar que há algum tempo, os grandes cursinhos passaram a exportar seu modelo, através dos chamados “sistemas de ensino” em que a “competência e experiência” acumuladas  ganham a forma de material didático apostilado, escrito basicamente por seus professores, para uso na rede privada de ensino médio. Isso por si mesmo seria  suficiente para colocar os cursinhos, fonte desta experiência educacional,  no horizonte do MEC. Claro que não penso em fiscalização do ensino oferecido nesses estabelecimentos, mas no levantamento de informações sobre quão efetivos eles são nas tarefas a que se propõem: habilitar os alunos como competidores válidos nos grandes concursos vestibulares no Brasil. E principalmente entender as relações dos cursinhos com o ensino médio, público e privado, e com o ensino superior. 

Ser professor de literatura me leva a ficar “pernilongado” com as palavras (essa expressão excelente é do Robinson). A posição incerta dos cursos pré-vestibulares no âmbito educacional brasileiro é bem representada pelo uso do diminutivo “cursinho”. Diminutivo carinhoso, do ponto de vista dos alunos e professores envolvidos, mas claramente pejorativo do ponto de vista das instituições de ensino oficialmente reconhecidas, como os grandes colégios e as universidades, para quem os “cursinhos” são excrescências geradas pela grande demanda por um ensino superior carente de vagas (refiro-me, é claro, ao ensino superior de qualidade). 

Na palavra “cursinho”, o diminutivo também marca uma situação que os norte-americanos chamam de “shadow education”: “Shadow education is defined as activities outside of school that mimic (shadow) activities performed in school. For example, activities such as cram schools, private tutoring (for profit), and test prep services”.

O nome “shadow education” alude ao fato de que esse tipo de ensino segue, como uma sombra, os parâmetros curriculares definidos pelas instituições oficialmente reconhecidas (como aquele imposto pelo programa dos exames vestibulares), mas também evidencia a zona de sombra em que se encontram esses cursos, cuja existência é a prova do fiasco das políticas educacionais que não conseguem universalizar o ensino de qualidade, nem atender a demanda por ensino superior nem resolver o hiato entre um ensino médio sem identidade definida e o ensino superior.

Pela sua condição de mera “sombra” do sistema educacional oficial,  os cursinhos não tem autonomia para fazer mudanças ou adaptações curriculares, o que condena os professores a um exercício de repetição ilimitada ao longo dos anos. Devido à necessidade de preparar o aluno num prazo curto, a solução foi sempre encontrar recursos que tornassem as aulas “divertidas” e eficazes, uma vez que elas precisam superar o tédio da repetição e a quantidade  vertiginosa de “matérias” a serem assimiladas pelos alunos. Basicamente a qualificação para ser um bom professor de cursinho é encontrar uma fórmula pessoal de equilíbrio entre essas exigências. As chamadas “aulas-show”, tão famosas nas décadas passadas e hoje um tanto esquecidas, sempre foram apenas uma das muitas maneiras de lidar com o problema do tédio e da sobrecarga de informações. E, fiquem sabendo os pedagogos que, mesmo entre os professores  mais antigos, elas nunca foram consenso.

Os cursinhos são apenas um dos vários tipos de “shadow education”, que também compreende as aulas particulares, as escolas juku no Japão, os pequenos cursos de apoio a alunos com dificuldades escolares, os cursos que preparam para a prova do exame de ordem da OAB etc.

Mas há uma outra palavra, bastante pesada, que é usada internacionalmente para caracterizar o tipo de instituição que conhecemos como “cursinho”. Trata-se da expressão “cram school”. O nome é francamente pejorativo. Segundo o Dicionário Webster-Merriam, o verbo “to cram” vem de um antigo verbo escandinavo para apertar e esmagar. “To cram” significa atulhar (como quem enfia roupas demais numa mala pequena), comer com gulodice (como fazem aqueles sujeitos que devoram hot-dogs em concursos bizarros). O verbo também é usado para rachar de estudar, devorando rapidamente grande quantidade de matéria num tempo curto tendo em vista uma prova.  Numa “cram school” muitos alunos são enfiados numa sala de aula para assimilarem, numa corrida contra o tempo, todo o conteúdo exigido por um concurso.  Esse tipo de escola é comum na Turquia, no Egito, na Índia, na Malásia, na Coreia do Sul e no Brasil. Em todos esses países, as “cram schools” funcionam, paralelamente ao sistema oficial, com o objetivo de explorar economicamente as brechas geradas pela incoerência e incompetência das políticas educacionais públicas. Em toda parte, o aspecto atulhado da sala de aula e a luta contra o tempo são características de uma experiência com a qual nós convivemos diariamente há mais de vinte anos.

É fácil entender a desconfiança e a hostilidade que a maioria dos pedagogos nutrem pelas “cram schools”.  O pensamento pedagógico  parte da pressuposição e idealização de uma relação dual entre professor e aluno, segundo o modelo dos antigos tutores dos jovens da nobreza, e do Emílio, de Rousseau. Já os professores de cursinho costumam se referir a seus alunos como “minhas turmas”, colocando ênfase no coletivo.  A comunicação interpessoal professor-aluno é substituída pelas técnicas de comunicação de massa, as únicas eficazes em salas de cem alunos ou mais. Há um arsenal para isso: retórica, teatro, repetição, recursos multimidiáticos, todos eles apoiados na forte dose de carisma que todo professor de cursinho precisa dispor para desencadear e sustentar a atenção das “turmas” no aprendizado. A respeito do nível e profundidade desse aprendizado, só podemos fazer conjeturas, dada a ausência de pesquisas sobre o assunto no Brasil, o que lamento muito.

O sucesso dos “sistemas de ensino” liderados por grandes cursinhos, que vendem material didático para escolas privadas, fez surgir a tendência de considerar que o número de aprovações nos vestibulares (medida atual do êxito de uma escola) depende do suporte dado pelos livros de apoio e apostilas mais do que do talento pessoal dos professores. A mística em torno dos professores insubstituíveis está morrendo, por isso, dentro dos cursinhos, os professores procuram defender sua posição de força, ressaltando que um corpo docente experiente e selecionado é o que garante bons resultados.  Tudo isso, acaba ocultando o fato de que numa “cram school”, o fator determinante é o esforço dos estudantes em não deixar o fluxo de matérias se transformar na avalanche que irá sufocá-los. É aprovado aquele que tiver disciplina para estudar assuntos díspares e desconexos por tempo prolongado. Os professores das “cram schools” podem se esforçar para garantir um pouco de sentido ao que ensinam, mas o efeito geral – para o estudante -  será sempre o de uma cacofonia de mitoses, metáforas, números complexos e soluções molares. Enfrentar a falta de sentido de uma massa volumosa e fragmentada de informações será sempre o maior desafio do estudante de uma “cram school” seriamente empenhado em ter êxito.  

Do ponto de vista do professor, trabalhar numa “cram school”, como os cursinhos que conhecemos, significa estar sujeito a muitas pressões. Veja se você concorda com algumas das que eu me lembrei:

- garantir as metas de aprovação da escola, que concorre com as demais, num mercado disputadíssimo; 

- satisfazer a massa de alunos durante o processo, o que é aferido pelas pesquisas de opinião conhecidas nos cursinhos como “ibopes”; 

- descobrir meios de superar o hiato crescente entre o nível educacional dos alunos e os programas exigentes dos vestibulares mais concorridos. Nesse ponto, o suposto milagre que o cursinho poderia fazer esbarra com a crise de identidade e de qualidade do ensino médio, que ninguém sabe resolver; 

- enfrentar as críticas que são dirigidas pelos pedagogos e acadêmicos que questionam algumas das técnicas de transposição didática usadas nas “cram schools” e que teriam a consequência de baratear e banalizar assuntos complexos de maneira irrefletida;

- buscar meios de superar as difíceis condições de trabalho, em que as salas apinhadas, o nervosismo dos alunos, o stress, a repetição e o sedentarismo conduzem os professores à depressão, às doenças ocupacionais e ao burn-out.

Fico preocupado com o fato de que nos cursinhos em que trabalhei, sempre encontrei um grande número de professores dispostos a negar ou minimizar a existência dessas pressões e a idealizar uma situação sem atritos nem desgastes. Os valores pagos como remuneração aos professores de cursinho contam entre os fatores compensatórios, mas isso explica apenas em parte a atitude defensiva que usualmente os professores tem quando ouvem críticas ao cursinho como instituição. Conta muito aí um certo espírito corporativista, que liga os professores numa pequena comunidade que se conhece de rosto ou de nome e, ao longo dos anos, circula entre os vários cursinhos, como clérigos que faziam o tour pelas universidades da Europa medieval. Depois de alguns anos, todo mundo se conhece e se encontra, confirmando a sensação de “mundo pequeno” que os professores de cursinho costumam ter. Por fim, o narcisismo, tão notável em tantos professores de cursinho, torna-os avessos a ouvir suas estratégias de aula serem questionadas por teóricos da educação que, supostamente, nunca entraram numa sala de aula. Essa é a resposta padrão dos professores de cursinho aos pedagogos e ao mundo acadêmico. 

O que me entristece é que, agindo assim, nós, professores de cursinho, estamos contribuindo para normalizar o caráter excepcional e estranho do tipo de atividade que exercemos. É a situação do chamado professor “puta velha”.  Identificamos os alunos com um tipo de plateia e começamos a gostar de ser comunicadores de massa, mais próximos de figuras como Datena do que da dedicada professorinha que nos ensinou a ler. 

Quanto à morte do cursinho por causa de uma democratização do ensino superior, vou ficar à espera, de preferência dando aula, porque tenho família para sustentar e preciso ajudar os jovens a ingressar na universidade excelente que cursei.  

Se não me engano, você vai fazer a mesma coisa. 

O próximo jantar será na minha casa.

Um grande abraço para Denise e para as meninas.



Um comentário:

  1. Excelente Veronezi!

    com certeza vc foi no cerne da questão!
    professores de cursinho formam um grupo à parte. E estranho rsrs

    Adorei a analogia do muro produzido pelo pessoal de exatas e humanidades.

    Parabéns pelo blog!

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