Carta a Antonio Carlos Biasse
Biasse,
No momento em que escrevo esta
carta, o julgamento do “Mensalão” no Supremo Tribunal Federal chega ao sétimo
dia. Confesso que não estou prestando muita atenção e nem me interessam as
chicanas dos advogados. Jamais votei em nenhum dos envolvidos e meu voto deixou
de ser petista muito tempo antes que me tornasse absenteísta. Faço parte dos
indignados que não acreditam que estamos vivendo um processo de consolidação
das instituições democráticas, o que não me exime de acompanhar o noticiário
político com algo mais do que curiosidade perversa.
Uma grande lição que você me
ensinou é duvidar que a vida política seja um embate direto de posições
ideológicas. Com você, eu aprendi a observar a costura dos acordos e o conteúdo
das barganhas. Como historiador, você sempre teve interesse na construção de
pactos naqueles momentos em que as classes sociais ou frações de classe tentam
resolver politicamente suas diferenças para vencer o desafio suscitado pela
eclosão de novas reivindicações. Você tem gosto de estudar os “conchavos” (é a
palavra que você usa) produzidos nos bunkers das elites políticas e
empresariais, que tentam evitar que o tempo lento da política estabelecida seja
ameaçado pela irrupção do tempo rápido das revoluções.
Além disso, nas muitas conversas
que tivemos nos intervalos de aulas em Osasco, nas palestras, nas “pizzas
burlescas” na casa do Rui, nos nossos almoços, você sempre me alertou para a
necessidade de entender como a política econômica do Estado, verdadeiro núcleo
duro do poder, é resultado da tensão permanente entre a coordenação política e
a administração tecnocrática. Por isso
era interessantíssimo ouvi-lo narrar o percurso dos planos econômicos
“salvadores”, de Dilson Funaro a Fernando Henrique Cardoso.
Em resumo, você transmitiu aos
seus amigos o entusiasmo pela análise da Realpolitik nacional, naqueles anos em
que, sob o governo FHC ou Lula, não faltaram ocasiões para observações
preciosas - do ponto de vista histórico -, e revelações frustrantes - do ponto
de vista das convicções políticas pessoais.
A tarefa de observador da vida
política brasileira não é fácil, ainda mais no caso de alguém que, como eu, não se despiu de certos preconceitos de classe
e de formação.
Para começar, não superei - nem
quero superar - aquela moralidade de classe operária que herdei de meus pais e
avós, gente sem posses e sem instrução cujo único capital social era ter bom
nome como sujeito honesto e trabalhador. Medido por esse metro – que eu sei
limitado - o político parlamentar profissional é uma figura de vagabundo
matreiro pela qual só tenho desconsideração e asco.
Em segundo lugar, não perdi a empolgação
pelo conflito aberto de posições ideológicas, pela formulação clara de teses e
princípios: os pontos inegociáveis. Respeito muito a intransigência esclarecida
- isto é, não utópica nem voluntarista - no campo político, tanto quanto
desprezo a mobilidade infinita dos apolíticos. Por isso, minha curiosidade
histórica sempre me devolve aos momentos de tensão ideológica irredutível: as
décadas de 1920 e 1930 na Europa ou o período imediatamente posterior ao AI-5
no Brasil. Momentos em que a pergunta era: quando se deve renunciar à política e
passar à ação direta e violenta? (Não
que eu defenda a ação direta, mas eu a vejo o tempo todo no extremo do horizonte
político).
Essas duas limitações de natureza
moral e ideológica não me habilitam a ser um observador paciente da
Realpolitik, mas vou arriscar algumas considerações gerais – vício de ex-filósofo
– e espero que você corrija meus disparates de amador bem-intencionado:
A pior Realpolitik é o fungo que nasce
na carcaça de uma ilusão revolucionária perdida. Períodos de agitação
revolucionária são marcados por apostas utópicas ou radicais.
Revoluções querem dominar o futuro. Quando essas revoluções são derrotadas, o
tempo veloz das decisões revolucionárias é substituído pelo tempo lento da
política institucionalizada, que se concentra na tarefa de manutenção do status
quo presente. Práticas de Realpolitik surgem, portanto, quando a política de curto prazo
toma o lugar do utopismo e do radicalismo revolucionários, que passam a ser
vistos como demônios que precisam ser esconjurados. O próprio fato de que o
termo Realpolitik tenha surgido no refluxo das esperanças radicais de 1848 é
algo a ser considerado. A conjunção ideal para as piores práticas de
Realpolitik se dá quando antigos militantes revolucionários desiludidos
encontram os pilantras apolíticos que vivem bem em qualquer regime. Claro que
não estou falando de Zé Dirceu e Marcos Valério (meus amigos petistas dizem que
eles são inocentes); estou pensando nos chamados períodos de Restauração (essa
palavra sozinha mereceria um tratado semântico-ideológico).
A Realpolitik floresce melhor
quando os tempos políticos são extremamente lentos por causa da rotina
institucional. Ela começa como uma série de expedientes de gabinete para fugir
dos processos institucionais de legitimação das decisões, como as medidas
provisórias do Executivo com as quais estamos acostumados. Trata-se sempre de
encontrar atalhos valendo-se de posições de força, de modo que exercer a
Realpolitik é praticar o golpe de estado em escala cotidiana, pontual e
permanente, mantendo-se, porém, a aparência de vida institucional organizada. Mestres
da Realpolitik devem ser ventríloquos com dons de punguista.
A Realpolitik depende da manutenção das
instituições políticas – especialmente do parlamento - na mesma medida em que
burla cada uma delas. Elas oferecem a aparência de legalidade e de normalidade
que deve ser preservado contra as investidas da anarquia e da revolução. A
desordem institucional é o espantalho que os praticantes da Realpolitik cinicamente
sacodem para desqualificar os movimentos que questionam o tempo lentíssimo da
política. É preciso, por exemplo, acreditar no despropósito de que as eleições
são “festas democráticas” que consolidam as instituições brasileiras e
contribuem para uma saudável alternância no poder. Em 1983, vi na televisão um
desses intelectuais que se colocavam a serviço do poder – acho que era José
Guilherme Merquior -, dizendo que a meta da democracia era atingir aquela
chatice social-democrata das eleições suecas! Rotina e eleições: tudo o que é
preciso para sustentar as práticas de Realpolitik, como devia saber Merquior,
amigo e admirador de Roberto Campos.
A Realpolitik não pode ser
circunscrita à esfera da justiça, nem ao menos à da legalidade. Ela precisa de
zonas cinzentas de amoralidade apoiadas em alguma interpretação do “laissez
faire, laissez passer” no plano ético.
Por isso, os seus praticantes podem apenas aduzir pretextos cínicos ou
alegar que seguem práticas usuais e disseminadas de conquista de
posições pela barganha, pela troca de favores, pelos acordos tácitos, mas também pelas ameaças, chantagem, suborno e extorsão.
No limite, a política segundo la vecchia
maniera fiorentina, política feita nas sombras e nos recessos através do
exercício do poder nu. O segredo é elemento fundamental da Realpolitik, palavra
de Henry Kissinger, que entendia bem disso.
Os defensores da Realpolitik alegam
que estão garantindo a vida do processo político, sem o que ele
restaria imóvel, com danos para toda a sociedade.
Bismarck encontrou o slogan da Realpolitik ao definir a política como “arte do possível” (Kunst des Möglichen). Como outros slogans políticos, ele pretende afirmar de maneira clara e peremptória, conceitos que, no entanto, são ambivalentes e demasiado genéricos.
Bismarck encontrou o slogan da Realpolitik ao definir a política como “arte do possível” (Kunst des Möglichen). Como outros slogans políticos, ele pretende afirmar de maneira clara e peremptória, conceitos que, no entanto, são ambivalentes e demasiado genéricos.
Em Struggle with Time: a conceptual history of Politics as an activity,
o cientista político finlandês Kari Palonen, que estuda a retórica política
europeia posterior a 1789, faz considerações muito interessantes sobre o uso do
conceito de “possibilidade” no vocabulário político. Basicamente ele argumenta
que, no plano político, há dois usos opostos do conceito de “possível”: o
possível como campo de ações futuras e ainda indeterminadas e o possível como
aquilo que já foi comprovado e está dado no presente. Daí a distinção que Weber
fez, em A Política como Vocação, entre dois tipos ideais de político: o
heroico e o habitual. O primeiro investiga o campo das possibilidades em busca
de opções viáveis que aprimorem a vida social. O segundo se limita à política
do dia-a-dia, feita de rotina e de metas de curto prazo, isto é, a receita que
ele sabe que funciona.
Quando Bismarck dizia que a política
é a arte do possível, estava pensando naquilo que já está dado e bem
estabelecido, não numa prospecção do horizonte de possibilidades de ação: “Despite his use of the Kunst des Möglichen
formula, which first appeared in a comment from 1869, the discussion of
possibilities has no prominent position in Bismarck”. Ou seja, a política
como arte do possível tentaria nos convencer de que outros caminhos são
impossíveis. A estratégia de domínio é levar a uma rendição ao existente.
Não creio que o sentido fosse
outro quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso repetia que “a política é a
arte do possível”. Com a bandeira do Plano Real, ele tentou fazer pose de político
heroico na acepção weberiana, mas logo partiu para o âmbito que
lhe era mais confortável. Na época, a Realpolitik parecia a
consequência lógica que os tucanos tiravam da tese do “fim da história”. Uma
vez que não havia mais ponto de vista privilegiado do proletariado nem do
Estado, a política não poderia mais ser regida por fins últimos nem por
imperativos morais. Tratava-se de permitir o livre movimento dos participantes
do jogo democrático, segundo regras constituídas ao longo do próprio jogo, dentro
daquela zona de indefinição em que os juízos morais devem ser suspensos sob o
risco de travar o jogo da democracia. Foi mais ou menos isso que escreveu
José Arthur Giannotti em maio de 2001, no ocaso da presidência de FHC, num
artigo que fez muito barulho na Folha de
São Paulo. Marilena Chauí e José Genoíno escreveram respostas irritadas; os
leitores mandaram seus usuais e previsíveis protestos de indignação cívica, mas
a lição sobre as “zonas cinzentas” de amoralidade geradas pelo livre jogo
democrático foram colocadas em prática por Delúbio Soares, Marcos Valério, João
Paulo Cunha e outros. Não vou mencionar o Zé Dirceu, porque acusá-lo seria
atacar a Constituição, segundo o advogado dele, que me forneceu uma pista da profunda interdependência entre a Realpolitik e o quadro institucional.
Alguns petistas impenitentes que
eu conheço fazem questão de afirmar que a própria visibilidade pública do
julgamento no STF é sinal da consolidação das instituições democráticas. Gente
um pouco mais sofisticada lembra que o “Mensalão” é uma fatalidade
institucional gerada pelo presidencialismo de coalizão brasileiro. Um
presidente se elege com milhões e milhões de votos de cidadãos que apoiam
seu programa, mas no dia seguinte às eleições, é preciso começar a garantir a
governabilidade formando uma base parlamentar à partir de concessões de pastas
ministeriais e outros favores. Cada um desses acordos exige renúncia ou
modificação de algum item do programa vitorioso e reforça o poder dos
negociadores mais inescrupulosos.
O conceito de “presidencialismo
de coalizão”, que Sérgio Abranches cunhou em 1988, foi adquirindo um caráter prescritivo:
parece que hoje se pensa que o Brasil tem que ser governado assim, custe o
que custar. É preciso manter a governabilidade, caso contrário, as instituições
serão ameaçadas. Para garantir a governabilidade, é preciso negociar; para
negociar bem, os agentes precisam ter agendas flexíveis. Os parceiros
de mesa devem ser realistas... O muro de Berlim acabou e não há mais direita ou
esquerda, há apenas oportunidades de maximizar vantagens ou lucros.
Há opções a curto prazo
para esse rebaixamento do horizonte político?
Descontada a possibilidade de uma
“primavera brasileira”, parece que não. Li o livrinho do Vladimir Safatle (A esquerda que não teme dizer seu nome)
e não fiquei feliz. Parece a carta de intenções de um movimento derrotado
prometendo que terá forças para se reerguer se a História assim o permitir:
“em certos momentos, estamos dispostos a confiar nesse ‘algo outro’ cujo
conteúdo ainda permanece subterrâneo, ainda não realizado na ‘existência presente’
e que, por isso, bate violentamente contra o mundo exterior como o que bate
contra uma casca.
Tal confiança descobre a força de transformar o que se lhe aparece como
opaco, como páthos cujo objeto desconhece o regime de presença da consciência e
da intenção, em acontecimento portador de uma nova ordem possível. É nesses
momentos raros em que essa confiança sobe à cena do mundo que a história se
faz.” (p.85)
Uma esquerda que vive da
esperança e da fé em dias melhores e acontecimentos redentores merece
continuar não dizendo o seu nome.
E aí? Vamos esperar Jesus voltar,
ou vamos marcar logo um almoço?
Temos que dar umas boas risadas do Zé
Dirceu e da esquerda hegeliana que colocou Lacan no lugar de Marx.
Um grande abraço do amigo e irmão
em Baco.
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