domingo, 12 de agosto de 2012

A arte do possível




Carta a Antonio Carlos Biasse



Biasse,


No momento em que escrevo esta carta, o julgamento do “Mensalão” no Supremo Tribunal Federal chega ao sétimo dia. Confesso que não estou prestando muita atenção e nem me interessam as chicanas dos advogados. Jamais votei em nenhum dos envolvidos e meu voto deixou de ser petista muito tempo antes que me tornasse absenteísta. Faço parte dos indignados que não acreditam que estamos vivendo um processo de consolidação das instituições democráticas, o que não me exime de acompanhar o noticiário político com algo mais do que curiosidade perversa.

Uma grande lição que você me ensinou é duvidar que a vida política seja um embate direto de posições ideológicas. Com você, eu aprendi a observar a costura dos acordos e o conteúdo das barganhas. Como historiador, você sempre teve interesse na construção de pactos naqueles momentos em que as classes sociais ou frações de classe tentam resolver politicamente suas diferenças para vencer o desafio suscitado pela eclosão de novas reivindicações. Você tem gosto de estudar os “conchavos” (é a palavra que você usa) produzidos nos bunkers das elites políticas e empresariais, que tentam evitar que o tempo lento da política estabelecida seja ameaçado pela irrupção do tempo rápido das revoluções.

Além disso, nas muitas conversas que tivemos nos intervalos de aulas em Osasco, nas palestras, nas “pizzas burlescas” na casa do Rui, nos nossos almoços, você sempre me alertou para a necessidade de entender como a política econômica do Estado, verdadeiro núcleo duro do poder, é resultado da tensão permanente entre a coordenação política e a administração tecnocrática.  Por isso era interessantíssimo ouvi-lo narrar o percurso dos planos econômicos “salvadores”, de Dilson Funaro a Fernando Henrique Cardoso.

Em resumo, você transmitiu aos seus amigos o entusiasmo pela análise da Realpolitik nacional, naqueles anos em que, sob o governo FHC ou Lula, não faltaram ocasiões para observações preciosas - do ponto de vista histórico -, e revelações frustrantes - do ponto de vista das convicções políticas pessoais.

A tarefa de observador da vida política brasileira não é fácil, ainda mais no caso de alguém que, como eu,  não se despiu de certos preconceitos de classe e de formação.

Para começar, não superei - nem quero superar - aquela moralidade de classe operária que herdei de meus pais e avós, gente sem posses e sem instrução cujo único capital social era ter bom nome como sujeito honesto e trabalhador. Medido por esse metro – que eu sei limitado - o político parlamentar profissional é uma figura de vagabundo matreiro pela qual só tenho desconsideração e asco.

Em segundo lugar, não perdi a empolgação pelo conflito aberto de posições ideológicas, pela formulação clara de teses e princípios: os pontos inegociáveis. Respeito muito a intransigência esclarecida - isto é, não utópica nem voluntarista - no campo político, tanto quanto desprezo a mobilidade infinita dos apolíticos. Por isso, minha curiosidade histórica sempre me devolve aos momentos de tensão ideológica irredutível: as décadas de 1920 e 1930 na Europa ou o período imediatamente posterior ao AI-5 no Brasil. Momentos em que a pergunta era: quando se deve renunciar à política e passar à ação direta e violenta?  (Não que eu defenda a ação direta, mas eu a vejo o tempo todo no extremo do horizonte político).

Essas duas limitações de natureza moral e ideológica não me habilitam a ser um observador paciente da Realpolitik, mas vou arriscar algumas considerações gerais – vício de ex-filósofo – e espero que você corrija meus disparates de amador bem-intencionado:

A pior Realpolitik é o fungo que nasce na carcaça de uma ilusão revolucionária perdida. Períodos de agitação revolucionária são marcados por apostas utópicas ou radicais. Revoluções querem dominar o futuro. Quando essas revoluções são derrotadas, o tempo veloz das decisões revolucionárias é substituído pelo tempo lento da política institucionalizada, que se concentra na tarefa de manutenção do status quo presente. Práticas de Realpolitik surgem, portanto, quando a política de curto prazo toma o lugar do utopismo e do radicalismo revolucionários, que passam a ser vistos como demônios que precisam ser esconjurados. O próprio fato de que o termo Realpolitik tenha surgido no refluxo das esperanças radicais de 1848 é algo a ser considerado. A conjunção ideal para as piores práticas de Realpolitik se dá quando antigos militantes revolucionários desiludidos encontram os pilantras apolíticos que vivem bem em qualquer regime. Claro que não estou falando de Zé Dirceu e Marcos Valério (meus amigos petistas dizem que eles são inocentes); estou pensando nos chamados períodos de Restauração (essa palavra sozinha mereceria um tratado semântico-ideológico).

A Realpolitik floresce melhor quando os tempos políticos são extremamente lentos por causa da rotina institucional. Ela começa como uma série de expedientes de gabinete para fugir dos processos institucionais de legitimação das decisões, como as medidas provisórias do Executivo com as quais estamos acostumados. Trata-se sempre de encontrar atalhos valendo-se de posições de força, de modo que exercer a Realpolitik é praticar o golpe de estado em escala cotidiana, pontual e permanente, mantendo-se, porém, a aparência de vida institucional organizada. Mestres da Realpolitik devem  ser ventríloquos com dons de punguista.

A Realpolitik depende da manutenção das instituições políticas – especialmente do parlamento - na mesma medida em que burla cada uma delas. Elas oferecem a aparência de legalidade e de normalidade que deve ser preservado contra as investidas da anarquia e da revolução. A desordem institucional é o espantalho que os praticantes da Realpolitik cinicamente sacodem para desqualificar os movimentos que questionam o tempo lentíssimo da política. É preciso, por exemplo, acreditar no despropósito de que as eleições são “festas democráticas” que consolidam as instituições brasileiras e contribuem para uma saudável alternância no poder. Em 1983, vi na televisão um desses intelectuais que se colocavam a serviço do poder – acho que era José Guilherme Merquior -, dizendo que a meta da democracia era atingir aquela chatice social-democrata das eleições suecas! Rotina e eleições: tudo o que é preciso para sustentar as práticas de Realpolitik, como devia saber Merquior, amigo e admirador de Roberto Campos.

A Realpolitik não pode ser circunscrita à esfera da justiça, nem ao menos à da legalidade. Ela precisa de zonas cinzentas de amoralidade apoiadas em alguma interpretação do “laissez faire, laissez passer” no plano ético.  Por isso, os seus praticantes podem apenas aduzir pretextos cínicos ou alegar que seguem práticas usuais e disseminadas de conquista de posições pela barganha, pela troca de favores, pelos acordos tácitos, mas também pelas ameaças, chantagem, suborno e extorsão. No limite, a política segundo  la vecchia maniera fiorentina, política feita nas sombras e nos recessos através do exercício do poder nu. O segredo é elemento fundamental da Realpolitik, palavra de Henry Kissinger, que entendia bem disso.

Os defensores da Realpolitik alegam que estão garantindo a vida do processo político, sem o que ele restaria imóvel, com danos para toda a sociedade.

Bismarck encontrou o slogan da Realpolitik ao definir a política como “arte do possível” (Kunst des Möglichen). Como outros slogans políticos, ele pretende afirmar de maneira clara e peremptória, conceitos que, no entanto, são ambivalentes e demasiado genéricos.

Em Struggle with Time: a conceptual history of Politics as an activity, o cientista político finlandês Kari Palonen, que estuda a retórica política europeia posterior a 1789, faz considerações muito interessantes sobre o uso do conceito de “possibilidade” no vocabulário político. Basicamente ele argumenta que, no plano político, há dois usos opostos do conceito de “possível”: o possível como campo de ações futuras e ainda indeterminadas e o possível como aquilo que já foi comprovado e está dado no presente. Daí a distinção que Weber fez, em A Política como Vocação, entre dois tipos ideais de político: o heroico e o habitual. O primeiro investiga o campo das possibilidades em busca de opções viáveis que aprimorem a vida social. O segundo se limita à política do dia-a-dia, feita de rotina e de metas de curto prazo, isto é, a receita que ele sabe que funciona.

Quando Bismarck dizia que a política é a arte do possível, estava pensando naquilo que já está dado e bem estabelecido, não numa prospecção do horizonte de possibilidades de ação: “Despite his use of the Kunst des Möglichen formula, which first appeared in a comment from 1869, the discussion of possibilities has no prominent position in Bismarck”. Ou seja, a política como arte do possível tentaria nos convencer de que outros caminhos são impossíveis. A estratégia de domínio é levar a uma rendição ao existente.

Não creio que o sentido fosse outro quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso repetia que “a política é a arte do possível”. Com a bandeira do Plano Real, ele tentou fazer pose de político heroico na acepção weberiana, mas logo partiu para o âmbito que lhe era mais confortável. Na época, a Realpolitik parecia a consequência lógica que os tucanos tiravam da tese do “fim da história”. Uma vez que não havia mais ponto de vista privilegiado do proletariado nem do Estado, a política não poderia mais ser regida por fins últimos nem por imperativos morais. Tratava-se de permitir o livre movimento dos participantes do jogo democrático,  segundo regras constituídas ao longo do  próprio jogo, dentro daquela zona de indefinição em que os juízos morais devem ser suspensos sob o risco de travar o  jogo da democracia. Foi mais ou menos isso que escreveu José Arthur Giannotti em maio de 2001, no ocaso da presidência de FHC, num artigo que fez muito barulho na Folha de São Paulo. Marilena Chauí e José Genoíno escreveram respostas irritadas; os leitores mandaram seus usuais e previsíveis protestos de indignação cívica, mas a lição sobre as “zonas cinzentas” de amoralidade geradas pelo livre jogo democrático foram colocadas em prática por Delúbio Soares, Marcos Valério, João Paulo Cunha e outros. Não vou mencionar o Zé Dirceu, porque acusá-lo seria atacar a Constituição, segundo o advogado dele, que me forneceu uma pista da profunda interdependência entre a Realpolitik e o quadro institucional. 

Alguns petistas impenitentes que eu conheço fazem questão de afirmar que a própria visibilidade pública do julgamento no STF é sinal da consolidação das instituições democráticas. Gente um pouco mais sofisticada lembra que o “Mensalão” é uma fatalidade institucional gerada pelo presidencialismo de coalizão brasileiro. Um presidente se elege com milhões e milhões de votos de cidadãos que apoiam seu programa, mas no dia seguinte às eleições, é preciso começar a garantir a governabilidade formando uma base parlamentar à partir de concessões de pastas ministeriais e outros favores. Cada um desses acordos exige renúncia ou modificação de algum item do programa vitorioso e reforça o poder dos negociadores mais inescrupulosos.

O conceito de “presidencialismo de coalizão”, que Sérgio Abranches cunhou em 1988, foi adquirindo um caráter prescritivo: parece que hoje se pensa que o Brasil tem que ser governado assim, custe o que custar. É preciso manter a governabilidade, caso contrário, as instituições serão ameaçadas. Para garantir a governabilidade, é preciso negociar; para negociar bem, os agentes precisam ter agendas flexíveis. Os parceiros de mesa devem ser realistas... O muro de Berlim acabou e não há mais direita ou esquerda, há apenas oportunidades de maximizar vantagens ou lucros.

Há opções a curto prazo para esse rebaixamento do horizonte político?

Descontada a possibilidade de uma “primavera brasileira”, parece que não. Li o livrinho do Vladimir Safatle (A esquerda que não teme dizer seu nome) e não fiquei feliz. Parece a carta de intenções de um movimento derrotado prometendo que terá forças para se reerguer se a História assim o permitir:

em certos momentos, estamos dispostos a confiar nesse ‘algo outro’ cujo conteúdo ainda permanece subterrâneo, ainda não realizado na ‘existência presente’ e que, por isso, bate violentamente contra o mundo exterior como o que bate contra uma casca.

Tal confiança descobre a força de transformar o que se lhe aparece como opaco, como páthos cujo objeto desconhece o regime de presença da consciência e da intenção, em acontecimento portador de uma nova ordem possível. É nesses momentos raros em que essa confiança sobe à cena do mundo que a história se faz.” (p.85)

Uma esquerda que vive da esperança e da fé em dias melhores e acontecimentos redentores merece continuar não dizendo o seu nome.

E aí?  Vamos esperar Jesus voltar, ou vamos marcar logo um almoço?

Temos que dar umas boas risadas do Zé Dirceu e da esquerda hegeliana que colocou Lacan no lugar de Marx.



Um grande abraço do amigo e irmão em Baco.




Nenhum comentário:

Postar um comentário