Marta,
Até
minha família se mudar para uma casinha geminada numa antiga vila operária em
Vila Alpina, tivemos horta de couves e alfaces, um pé de ameixas azedas, uma mexeriqueira
que nunca floriu, tranças de cebola penduradas na cozinha, saco bordado de pão,
canecas de folha de flandres, saparia açulando os uivos da cachorrada, cobrinhas
verdes no quintal, vacas, cavalos, corujas e
morcegos que se aninhavam nas roupas esquecidas à noite no varal.
Batuques nos terreiros de umbanda, vizinhas "crentes" de coque e
saias compridas, que iam clandestinamente assistir as novelas nas casas que tinham televisão.
Para
os garotos que, como eu, não gostavam das correrias no mato ou do bate-bola nos
descampados, restavam os desenhos e as séries de TV e os livros que
apareciam quase como intrusos em casas
tão desguarnecidas de conforto. Tínhamos muita diversão na escola que ficava na praça do bairro: as
aulas eram em galpões de madeira pintados de um verde militar, coisa de
caserna. Ratazanas mansas comiam os nacos de lanche que atirávamos das portas
arrombadas das salas de aula. Às terças havia feira livre em torno da escola, o
que ajudava nas guerras de cascas de mexerica. Mas a velha escola decrépita
estava com os dias contados. O prédio novo, que achávamos enorme e muito
bonito, nos recebeu em setembro. Com a aproximação da final do Campeonato
Paulista, havia boatos de que o nosso diretor Miguel Brabo — corintiano
empedernido — suspenderia as aulas da sexta-feira se o Corínthians derrotasse a Ponte-Preta na partida de 13 de outubro. Na data aziaga, o popular "Timão" quebrou o jejum de mais de duas décadas, mas isso não impediu que nós, corintianos, santistas, são-paulinos ou palmeirenses, tivéssemos as aula de sempre.
Naquele
ano da minha terceira série, a professora mais adorável era a Elenice, que fazia
Comunicações na PUC e que nos falava de mitologia e da vida universitária.
Ela sumiu da escola em setembro. Eu sempre me perguntei se isso teve algo a ver com a invasão da PUC pelas tropas
do famigerado coronel Erasmo Dias.
Em
1978 fiz muitas coisas boas. Estava na quarta série, quando ganhei a Olivetti
portátil que me acompanhou até o início da pós-graduação. O diretor colocou uma
televisão no pátio para que víssemos os jogos da Copa da Argentina, na qual
fomos campeões morais. A escola, em funcionamento há um ano, foi inaugurada pelo
governador Paulo Egydio Martins, num discurso rápido em que ele me apresentou à
palavra "utopia". Acho que minha antipatia contra essa palavra nasceu
ali, por causa do som ruim que ela tinha na boca daquele apagado e hoje
merecidamente esquecido governardor tão subserviente à Ditadura Militar.
Talvez
você não saiba, apesar de ter estudado na sala ao lado da minha, mas certa vez
eu trouxe uma cabeça de cachorro morto para a escola e joguei no latão de lixo
do pátio. Eu era apaixonado pela Luciene, que só tinha olhos para tipos como
John Travolta; eu era rival do Tarcísio, muito arrogante e vaidoso; era amigo
do Vladimir Babi, que não tinha a falangeta do indicador; alimentava picuinhas
com a Márcia, que um dia eu viria a amar. Meus êxitos na vida escolar causavam
admiração no Luís e no Carlos, meus amigos e vizinhos, ambos assumidamente
caipiras de Novo Horizonte.
O
professor mais famoso da escola era o João, de Geografia, enérgico e reaça, que
fez uma espantosa prédica sobre como o golpe de 31 de março nos livrara de uma
sociedade policiada à la polonaise. Porém, eu não me importei naquela época. Meu
coração estava nas ciências, não na história. Acompanhava toda noite Jornada nas Estrelas na TV Bandeirantes.
Minha mãe ficava irritada por perder a novela das sete e dizia impropérios
contra Mr. Spock, meu herói até me dar conta do espinosismo prático do
Capitão Kirk.
Star Trek
fornecia assunto, junto com velhas revistas Planeta, para um colóquio
inconclusivo e interminável com o Edson Dê e com o Davi, o primeiro punk que
conheci, leitor da Arte de Furtar e
autor do lema "O Brasil precisa um porco a mais que você". Eles
estavam na oitava série e sabiam das coisas, inclusive do sexo e das doenças
venéreas que aparecem como feridas que não cicatrizam. À noite eu olhava as
estrelas com meus binóculos. Minha mãe assistia a Dancin' Days, novela tão popular que os ritmos da discothèque
invadiram as festas de casamento de minhas tias e primas. Eu gostava mais de João e Maria, de Chico Buarque, e Whuthering Heights cantada por uma adolescente fantasmagórica
chamada Kate Bush.
O
ano seguinte, o da mudança para Vila Alpina, foi confuso e triste. Minha mãe
tinha cicatrizes no rosto devido ao acidente que destruiu nosso Corcel 76 na
colisão com um ônibus na avenida Sapopemba. Adriana, minha irmã caçula, nasceu
num outubro cinzento. Minha mãe já devia saber que estava muito doente. As
relações na escola do bairro eram difíceis. O fato de que as turmas eram
divididas por sexo (e as meninas de minha idade estudassem à tarde) não
facilitou meu entrosamento naquela idade em que mais desejava companhia
feminina. Meus colegas eram filhos e netos de imigrantes europeus, como o
Miguelito Ortiz ou o García. Eram suburbanos, grosseirões, engraçados. Os pais
davam duro como metalúrgicos no ABC na aurora no novo sindicalismo. As greves
nos preocupavam. Fez muito frio o ano todo. O Skylab estava para cair sobre
nossas cabeças e a baderna de meus irmãos não me tornava mais animado. Guardo
como consolação a lembrança da Professora Berenice, meiga e maternal, por quem
eu era apaixonado. Havia premonições de solidão até nos livros que me
ofereceram: Oliver Twist no começo do ano, Robinson Crusoe em
dezembro.
Mas
não estava realmente só. Eu e um pequeno grupo de recém-comungados mantivemos
por cerca de um ano e meio o compromisso de nos encontrarmos na Comunidade Eclesial
de Base todo sábado à tarde. A coordenadora do nosso “Grupo de Perseverança”
era a Sueli. A magra, carinhosa e dedicada Sueli: verdadeira intermediária
entre o mundo leigo e aquelas freiras divertidas que dirigiam uma kombi com o
pé em Deus e a fé na tábua, subindo e descendo a avenida Vicente Giacaglini sem
respeitar os semáforos. Sueli me emprestava livros devotos, da devotio
moderna que apregoávamos, abastecida de teologia da Libertação, de
franciscanismo, de opção da Igreja Latino-Americana pelos Pobres ratificada em
Medelín. Minhas leituras sobre a JOC
francesa do pós-guerra datam desta época. A Igreja nos queria socialistas? Não
com certeza Guevaras. A idéia era a de que a fé vivida se transformaria em
obras de comunhão, que necessariamente teriam uma direção social e
crítica. No meu sarcasmo materialista de
hoje eu diria que a doutrina da justificação pelas obras servia como atalho
dos católicos radicais para o esquerdismo. João Paulo II e o então cardeal
Ratzinger também viam as coisas assim...
O
Diário de Dany, de Michel Quoist, era o vade-mecum com argumenta et
exempla daquela teologia do amor autêntico, feito de comunhão, doação e
sacrifício. Mesmo hoje, meu ateísmo é incapaz de rir de qualquer uma dessas
palavras, tampouco consigo ver nelas somente beatices carolas. Levo muito
a sério aquela polenta quente que Francesco di Bernardone ofereceu ao lobo de
Gubbio. Levo a sério a sugestão de Seu Urbano, “obreiro”da comunidade, de que eu fizesse a
homilia do dia das Mães. Levo a sério os conselhos que Padre Patrício, alto
e ruivo, conterrâneo de James Joyce, me fez no dia da minha primeira confissão.
Não recordo quais eram os meus grandes pecados aos doze anos. Sei que odiava a história de Santa Bernardette Soubirous. Será que isso contava como pecado? Ou era sinal de um saudável bom-senso? Ainda preciso fazer uma anamnese das minhas relações com o catolicismo, mas isso é assunto que eu reservo para outra ocasião.
Um
grande abraço do seu amigo mais antigo.
Saudações Valdir...
ResponderExcluirMe lembro de parte da sua história no bairro Jardim Ester onde morávamos, a escola de madeira o novo prédio "Décio Ferraz Alvim o diretor Miguel o prof. João ...boas lembranças. ..
Lembro de você Valdir e da escola e do prof. João e do diretor Miguel e da Marta boas lembranças. ..
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