domingo, 5 de agosto de 2012

No quintal





Carta a Marta Mieko Meguro Uemura


Marta,


Até minha família se mudar para uma casinha geminada numa antiga vila operária em Vila Alpina, tivemos horta de couves e alfaces, um pé de ameixas azedas, uma mexeriqueira que nunca floriu, tranças de cebola penduradas na cozinha, saco bordado de pão, canecas de folha de flandres, saparia açulando os uivos da cachorrada, cobrinhas verdes no quintal, vacas, cavalos, corujas e  morcegos que se aninhavam nas roupas esquecidas à noite no varal. Batuques nos terreiros de umbanda, vizinhas "crentes" de coque e saias compridas, que iam clandestinamente assistir as novelas nas casas que tinham televisão.

Para os garotos que, como eu, não gostavam das correrias no mato ou do bate-bola nos descampados, restavam os desenhos e as séries de TV e os livros que apareciam  quase como intrusos em casas tão desguarnecidas de conforto. Tínhamos muita diversão na  escola que ficava na praça do bairro: as aulas eram em galpões de madeira pintados de um verde militar, coisa de caserna. Ratazanas mansas comiam os nacos de lanche que atirávamos das portas arrombadas das salas de aula. Às terças havia feira livre em torno da escola, o que ajudava nas guerras de cascas de mexerica. Mas a velha escola decrépita estava com os dias contados. O prédio novo, que achávamos enorme e muito bonito, nos recebeu em setembro. Com a aproximação da final do Campeonato Paulista, havia boatos de que o nosso diretor Miguel Brabo — corintiano empedernido — suspenderia as aulas da sexta-feira se o Corínthians derrotasse a Ponte-Preta na partida de 13 de outubro. Na data aziaga, o popular "Timão" quebrou o jejum de mais de duas décadas, mas isso não impediu que nós,  corintianos, santistas, são-paulinos ou palmeirenses, tivéssemos as  aula de sempre.

Naquele ano da minha terceira série, a professora mais adorável era a Elenice, que fazia Comunicações na PUC e que nos falava de mitologia e da vida universitária. Ela sumiu da escola em setembro. Eu sempre me perguntei se isso teve algo a ver com a invasão da PUC pelas tropas do famigerado coronel Erasmo Dias.

Em 1978 fiz muitas coisas boas. Estava na quarta série, quando ganhei a Olivetti portátil que me acompanhou até o início da pós-graduação. O diretor colocou uma televisão no pátio para que víssemos os jogos da Copa da Argentina, na qual fomos campeões morais. A escola, em funcionamento há um ano, foi inaugurada pelo governador Paulo Egydio Martins, num discurso rápido em que ele me apresentou à palavra "utopia". Acho que minha antipatia contra essa palavra nasceu ali, por causa do som ruim que ela tinha na boca daquele apagado e hoje merecidamente esquecido governardor tão subserviente à Ditadura Militar.

Talvez você não saiba, apesar de ter estudado na sala ao lado da minha, mas certa vez eu trouxe uma cabeça de cachorro morto para a escola e joguei no latão de lixo do pátio. Eu era apaixonado pela Luciene, que só tinha olhos para tipos como John Travolta; eu era rival do Tarcísio, muito arrogante e vaidoso; era amigo do Vladimir Babi, que não tinha a falangeta do indicador; alimentava picuinhas com a Márcia, que um dia eu viria a amar. Meus êxitos na vida escolar causavam admiração no Luís e no Carlos, meus amigos e vizinhos, ambos assumidamente caipiras de Novo Horizonte.

O professor mais famoso da escola era o João, de Geografia, enérgico e reaça, que fez uma espantosa prédica sobre como o golpe de 31 de março nos livrara de uma sociedade policiada à la polonaise. Porém, eu não me importei naquela época. Meu coração estava nas ciências, não na história. Acompanhava toda noite Jornada nas Estrelas na TV Bandeirantes. Minha mãe ficava irritada por perder a novela das sete e dizia impropérios contra  Mr. Spock, meu herói até me dar conta do espinosismo prático do Capitão Kirk. 

Star Trek fornecia assunto, junto com velhas revistas Planeta, para um colóquio inconclusivo e interminável com o Edson Dê e com o Davi, o primeiro punk que conheci, leitor da Arte de Furtar e autor do lema "O Brasil precisa um porco a mais que você". Eles estavam na oitava série e sabiam das coisas, inclusive do sexo e das doenças venéreas que aparecem como feridas que não cicatrizam. À noite eu olhava as estrelas com meus binóculos. Minha mãe assistia a Dancin' Days, novela tão popular que os ritmos da discothèque invadiram as festas de casamento de minhas tias e primas. Eu gostava mais de João e Maria, de Chico Buarque, e Whuthering Heights  cantada por uma adolescente fantasmagórica chamada Kate Bush.

O ano seguinte, o da mudança para Vila Alpina, foi confuso e triste. Minha mãe tinha cicatrizes no rosto devido ao acidente que destruiu nosso Corcel 76 na colisão com um ônibus na avenida Sapopemba. Adriana, minha irmã caçula, nasceu num outubro cinzento. Minha mãe já devia saber que estava muito doente. As relações na escola do bairro eram difíceis. O fato de que as turmas eram divididas por sexo (e as meninas de minha idade estudassem à tarde) não facilitou meu entrosamento naquela idade em que mais desejava companhia feminina. Meus colegas eram filhos e netos de imigrantes europeus, como o Miguelito Ortiz ou o García. Eram suburbanos, grosseirões, engraçados. Os pais davam duro como metalúrgicos no ABC na aurora no novo sindicalismo. As greves nos preocupavam. Fez muito frio o ano todo. O Skylab estava para cair sobre nossas cabeças e a baderna de meus irmãos não me tornava mais animado. Guardo como consolação a lembrança da Professora Berenice, meiga e maternal, por quem eu era apaixonado. Havia premonições de solidão até nos livros que me ofereceram: Oliver Twist no começo do ano, Robinson Crusoe em dezembro.

Mas não estava realmente só. Eu e um pequeno grupo de recém-comungados mantivemos por cerca de um ano e meio o compromisso de nos encontrarmos na Comunidade Eclesial de Base todo sábado à tarde. A coordenadora do nosso “Grupo de Perseverança” era a Sueli. A magra, carinhosa e dedicada Sueli: verdadeira intermediária entre o mundo leigo e aquelas freiras divertidas que dirigiam uma kombi com o pé em Deus e a fé na tábua, subindo e descendo a avenida Vicente Giacaglini sem respeitar os semáforos. Sueli me emprestava livros devotos, da devotio moderna que apregoávamos, abastecida de teologia da Libertação, de franciscanismo, de opção da Igreja Latino-Americana pelos Pobres ratificada em Medelín.  Minhas leituras sobre a JOC francesa do pós-guerra datam desta época. A Igreja nos queria socialistas? Não com certeza Guevaras. A idéia era a de que a fé vivida se transformaria em obras de comunhão, que necessariamente teriam uma direção social e crítica.  No meu sarcasmo materialista de hoje eu diria que a doutrina da justificação pelas obras servia como atalho dos católicos radicais para o esquerdismo. João Paulo II e o então cardeal Ratzinger também viam as coisas assim...

O Diário de Dany, de Michel Quoist, era o vade-mecum com argumenta et exempla daquela teologia do amor autêntico, feito de comunhão, doação e sacrifício. Mesmo hoje, meu ateísmo é incapaz de rir de qualquer uma dessas palavras, tampouco consigo ver nelas somente beatices  carolas. Levo muito a sério aquela polenta quente que Francesco di Bernardone ofereceu ao lobo de Gubbio. Levo a sério a sugestão de Seu Urbano, “obreiro”da comunidade, de que eu fizesse a homilia do dia das Mães. Levo a sério os conselhos que Padre Patrício, alto e ruivo, conterrâneo de James Joyce, me fez no dia da minha primeira confissão. 

Não recordo quais eram os meus grandes pecados aos doze anos. Sei que odiava a história de Santa Bernardette Soubirous. Será que isso contava como pecado? Ou era sinal de um saudável bom-senso? Ainda preciso fazer uma anamnese das minhas relações com o catolicismo, mas isso é assunto que eu reservo para outra ocasião.

Um grande abraço do seu amigo mais antigo.



2 comentários:

  1. Saudações Valdir...
    Me lembro de parte da sua história no bairro Jardim Ester onde morávamos, a escola de madeira o novo prédio "Décio Ferraz Alvim o diretor Miguel o prof. João ...boas lembranças. ..

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  2. Lembro de você Valdir e da escola e do prof. João e do diretor Miguel e da Marta boas lembranças. ..

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