quinta-feira, 26 de julho de 2012

Do uso e abuso da etimologia


carta a robinson bucci


Carta a Robinson Bucci


Robinson,


O Osmar lecionava gramática há mais de trinta anos quando eu o conheci no Universitário de Sorocaba. Como todos os professores “das antigas”, ele conhecia inúmeros desses casos semi-apócrifos que se contam de vez em quando para divertir e mistificar alunos e colegas. Um deles era sobre um professor muito presunçoso que se dizia capaz de responder a qualquer pergunta. Um dia, indagado sobre a origem da palavra “moleque”, não hesitou:

- Vem do latim “molocus”, pelo vulgar “molequis”.

O aluno que fez a pergunta rebateu:

- Professor, a palavra é tupi!

Osmar mostrava seu talento humorístico ao imitar a entonação pastosa do filólogo contorcionista e o triunfo escarninho do aluno de má fé. No final, ríamos todos daquela situação que arruinaria a reputação de qualquer mestre.

Como sói acontecer com as anedotas semi-apócrifas, era bom que os ouvintes extraíssem alguma lição de prudência prática como: “não tente ser o homem que sabia javanês”, ou “tenha a humildade de  admitir as lacunas de seu conhecimento”, ou “carisma não é tudo, um professor também deve estudar” ou, mais cinicamente, “conheça bem seu auditório, antes de tentar enganá-lo”.

O “causo” tinha lá a sua graça, mas o fato é que o aluno também estava errado. “Moleque” é palavra de origem banta.  É possível que Osmar não soubesse disso. Nunca o vi demonstrar interesse pelas culturas afro-brasileiras. Nesse particular, ele se contentava em fazer piadas - que hoje diríamos politicamente incorretas - com a cor negra do seu amigo e colega Dias, que ensinava matemática. Osmar, porém, era muito ladino e pode ser que ele estivesse testando os colegas...

Agora não importa mais. Osmar morreu há alguns anos, mas me lembrei da anedota quando encontrei na Livraria da Travessa a nova edição do Dicionário Banto do Brasil, do Nei Lopes. Eu estava com pressa de pegar a barca para ir comer bacalhau no Gruta de Santo Antonio, por isso resolvi comprar o livro na volta. Mesmo assim, de pé, no fundo da livraria, confirmei mais uma vez que “moleque” não vem do latim nem do tupi, mas do banto. E saí contente de ver a estátua do Pixinguinha, que era banto e foi moleque, como certos ancestrais meus lá no Recôncavo. Podem procurar em Candeias e Cachoeira de São Félix!

Apenas à noite é que fui percorrer o livro do Nei Lopes, sujeito que eu respeito muito. Na minha biblioteca, Kitabu foi parar entre o Mircea Eliade e o clássico do Granet sobre o pensamento chinês – minha clamorosa ignorância das culturas africanas faz com que elas pareçam muito distantes. Definitivamente ainda não aprendi a lidar com meus “inquices”. As aspas são marcas deste estranhamento. História para outra carta.

Volto ao dicionário do Nei Lopes. Muito bom, muito gostoso de ler, cheio de palavras que dá vontade de usar. Cheio também de lições sobre a maneira como são construídas as etimologias. Aí vão alguns  exemplos:

Chilique s.f. desmaio, lipotimia, síncope, ataque de nervos. A Nascentes (1966b) parece palavra expressiva. Para nós, é certamente de origem banta, haja vista os seguintes exemplos: *sulika (nhungue), ter vertigens; *etuliko (umbundo), derreamento, prostração; *hihlika (ronga), desmoronar-se, derreter-se.

Quando um estudioso de etimologia, como Antenor Nascentes, alega que uma palavra é de origem expressiva está confessando sua ignorância atrás de um discurso vazio (quando é que uma palavra não é expressiva?); está apoiando uma teoria equivocada sobre a origem das palavras (elas surgiriam como onomatopeias) e está limitando as fontes do português brasileito à matriz latino-lusitana e ao tupi. A contribuição das outras línguas é estrangeirismo; a contribuição africana só é admitida naqueles casos em que o conteúdo africano fica restrito a nomear práticas locais e étnicas – as coisas de negro.

Minhoca s.f. designação geral dos animais anelídeos, oligoquetos, sobretudo das formas terrestres. Do nhungue mu-nyoka, verme, bichinho para isca, da mesma raiz do quimbundo nhoka, suaíle nyoka, umbundo nhoha = cobra (de nhoha, enrolar-se). Veja a curiosa etimologia proposta por Silveira Bueno (1965c, p.288): “Minhoca – verme que faz buracos, que abre galerias ou vive em galerias < Mina = galeria subterrânea para surgir no campo inimigo. Palavra de origem ibérica.”

O verbete expõe bem o ridículo e a ignorância dos dicionaristas, sobretudo quando é preciso escavar as raízes e analisar o subsolo da linguagem corrente. Silveira Bueno, com todo o respeito, comeu terra e não viu a minhoca bem na sua frente, cego como estava pelo racismo disfarçado de busca de raízes ibéricas ou latinas para a língua portuguesa do Brasil. Se perguntássemos  ao Silveira Bueno de onde vem a palavra moleque, será que ele responderia que era do latim “molocus” pelo vulgar “molequis”?

Samba s.m. nome genérico de várias danças populares brasileiras; p. ext. a música que acompanha cada uma dessas danças; modernamente, expressão musical que constitui a espinha dorsal e a corrente principal da música popular brasileira. Teodoro Sampaio (1987b), sábio afro-baiano, dá como origem do termo, a partir de Batista Caetano, o tupi çama ou çamba. “cadeia feita de mãos dadas por pessoas em folguedo:  dança de roda”. No entanto, a roda das danças de samba não comporta mãos dadas e, sim, mãos batendo palmas, sendo uma característica essencial a umbigada ou a simulação dela. Observe-se que o léxico da língua cokwe ou tchokwe, do povo quioco, de Angola, registra um verbo samba, com a acepção de “cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito” (Barbosa, 1989b). No quiongo, vocábulo de igual feição designa uma espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito de outro (Laman, 1964 b). E essas duas formas originam-se da raiz multilinguística semba, rejeitar, separar. (Alves, 1951 b), remetendo ao movimento físico produzido pela umbigada, que é a característica principal das danças dos povos bantos, na África e na Diáspora. Q.v. também o bundo *samba, ferver, estar em ebulição; e o quimbundo *samba, rezar.

A partir do Romantismo, o tupi passou a ter o mesmo bom pedigree etimológico do latim. Então, vai o Teodoro Sampaio (“sábio afro-baiano”, como diz o Nei Lopes), olha as mulatas e negras se requebrando freneticamente nas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro, corre para uma biblioteca e sai triunfante com a descoberta de que aquela dança negra e suada tem um digno nome tupi! Está resolvido o problema da etimologia: foi apenas o caso de encontrar uma homofonia e um campo semântico próximo. Mas o problema das etimologias é que dificilmente a busca do étimo vai dar um resultado claro e unívoco. Para começar, não há uma língua banta. Há sim, como diz o Nei Lopes no começo de seu Dicionário, um grupo de cerca de 500 línguas aparentadas abrangendo desde o Congo até a África do Sul, de Angola à Moçambique: ajaua, bemba, cuanhama, ganguela, iaca, Lingala, macua, nhaneca, nhungue, nianja, quicongo, quimbundo, quinguana, quioco (chokwe), ronga, suaíle, suto, tonga, umbundo, yangana, shona, zulu, só para ficar nas principais línguas. Procurar a etimologia da palavra “samba” é meter a mão neste palheiro e tentar puxar a agulha. Quem procura a nascente de um rio, encontra na cabeceira um sistema capilar de regatos. Só por convenção, um deles é considerado a Nascente. Um trabalho sério de etimologia não pode se esquivar desse emaranhado. O máximo que se pode fazer é dizer que naquela região em que a palavra “samba” pode remeter ao separar, ao cabriolar, ao ferver e ao rezar, está o samba. Neste ponto, o crioulo vai ficando doido.

Bem se vê que  Nei Lopes assumiu um trabalho bem difícil do ponto de vista da pesquisa e das forças culturais contra as quais polemiza: o racismo implícito no desconhecimento das culturas africanas; o mito tupinista que subsiste a despeito de ser perpetuamente desconstruído pela universidade; os equívocos entranhados a respeito da natureza da linguagem e  da sua capacidade de transformação, da relação entre som e sentido. Sobretudo os equívocos gerados pelo mito da Origem: de que cada coisa tem um princípio único que rege seu devir como uma espécie de nume tutelar. Nesse equívoco, Nei Lopes também cai, como acontece neste verbete:

Implicar v.t.i. (1) provocar, amolar, ENTICAR. (2) Intrometer-se, contender. O étimo tradicionalmente aceito é o latim implicare, “enlaçar”. Entretanto, a acepção do termo, para nós, é bem diferente da erudita (“embaraçar, enredar”), e até mesmo a regência: um é verbo transitivo direto, o outro é indireto. Permitimo-nos, então, tentar buscar o étimo no bundo pilika, constranger, pedir insistentemente, obrigar, forçar, exigir, reclamar, forcejar por, querer a toda força. Este vocábulo é, por sua vez, derivado de pili, incitamento, insistência, perseverança (Alves, 1951b).

No caso do verbo “implicar”, não vejo porque a origem latina deveria ser substituída pela suposta origem banta. Por que não admitir que a palavra “implicar”, tal como usada no português coloquial do Brasil,  tem dupla origem – latina e banta?  Para os estudiosos de etimologias, o étimo tem que estar num único lugar. É o que eu estou chamando de mito da Origem.

No Bailly Abrégé, eu encontro (e traduzo):

Étymos: 1. Verdadeiro, real, autêntico; adv. Étymon: realmente, autenticamente. 2. Subst.: tò étymon, verdadeiro sentido, sentido etimológico de uma palavra.

(Acrescento que, no verbete, os dois sentidos são abonados, mas o uso de tò étymon só aparece em exemplos da literatura grega mais tardia).

A própria palavra “etimologia” promete mais do que pode conceder: um arrazoado sobre a sentido autêntico, verdadeiro e real de uma palavra. Mas quando o sentido da palavra poderia satisfazer essas condições?

Somente se pudéssemos aceitar que cada palavra foi a designação primeira e unívoca de algo. Somente se pudéssemos aceitar que cada coisa tivesse uma identidade inconfundível e nunca tivesse recebido outro nome antes. Somente se pudéssemos aceitar que, no princípio, houve um batismo adâmico como aquele narrado em Gênesis 2, 19-20. Somente se pudéssemos aceitar que houve apenas um idioma original, em que cada palavra era o único nome  de cada coisa singular (portanto, o substantivo próprio seria a base de toda a linguagem).

São suposições em demasia. Se formos rigorosos, é preciso reconhecer que sondar a origem das palavras é tão  ocioso quanto examinar as origens de certas práticas sociais correntes, como dizia Nietzsche na Genealogia da Moral, Segunda Dissertação, 13:

Hoje é impossível dizer ao certo porque se castiga: todos os conceitos em que um processo inteiro se condensa semioticamente se subtraem à definição;  definível é apenas aquilo que não tem história.

Normalmente quem consulta um dicionário etimológico quer apenas satisfazer a curiosidade de saber se uma palavra vem do latim, do grego, do banto, do tupi ou sabe-se lá de onde. Não se trata de encontrar o sentido original e autêntico, o étymon, mas de entender retrospectivamente a deriva. Queremos apenas acompanhar um pouco do percurso acidentado dos usos de uma palavra até o ponto em que é possível remontar os seus elementos reconhecíveis. Não devemos acreditar que esses elementos possam esclarecer totalmente o uso atual, mesmo assim os percalços da linguagem despertam, pelo seu efeito de surpresa, uma disposição de pensar – como quando percebemos que as palavras gregas “nômade” e “nomos” (lei) tem a mesma raiz; ou que as palavras gregas para “prata” e “evidência” são aparentadas.  

Ocorre que é justamente o movimento caprichoso da deriva da linguagem que coloca em suspeição o valor explicativo das etimologias, o que me faz dar razão a Borges:

Escasas disciplinas habrá de mayor interés que la etimologia; ello se debe a las imprevisibles transformaciones del sentido primitivo de las palavras, a lo largo del tempo. Dadas tales transformaciones, que pueden lindar con lo paradójico, de nada o de muy poco nos servirá para la aclaración de um concepto el origen de uma palavra. Saber que cálculo, en latín, quiere decir piedrita y que los pitagóricos las usaron antes de la invención de los números, no nos permite dominar los arcanos del álgebra; saber que hipócrita era ator, y persona, máscara, no es un instrumento para el estúdio de la ética.  (Otras Inquisiciones, Sobre los clássicos)

A busca pela origem é componente tão fundamental da curiosidade humana que muitos de nós nos satisfazemos se, ao final de uma pesquisa etimológica, encontramos apenas um vago farrapo de homofonia ou uma raiz reduzida a uma única letra (a importância da letra H na palavra “whale”, em Moby Dick). Nem sequer pedimos sentido a esses cacos.

No “causo” contado pelo Osmar, o professor não explicava o significado da suposta palavra latina “molocus”. O Novo Dicionário Banto do Brasil diz que “luleke em  quimbundo significa garoto, filho; correspondente ao quicongo mu-léeke, criança, e da mesma raiz de nléeke (plural mileke), jovem, irmão mais novo.” 

Na origem de “moleque” há apenas uma criança. A questão é que a palavra diz muito mais do que isso, porém a etimologia não esclarece esse excedente de sentido, que é tudo o que realmente interessa.

Grande abraço!



4 comentários:

  1. Valdir,

    seus textos desentopem, não feito a soda, mas como o desentupidor, aquele de borracha marrom, de cabo sempre pretejado\esverdeado pela velhice humidificada. Eu acho graça indígena em como você fica pernilongado com as inverdades. "Valdir, desempote cá!", "Valdir, suspende o julgamento lá!"

    Ali não se acha história, sabimento, se entope o buraco com um melaço gaseificado. O "gaseificado" é para dar um tom assim, assim. O ranho na fossa nasal do não-saber. Há uma estorinha copta:

    um jovem copta deseja muito ser um sábio, ser um monje copta. Vai ao deserto em busca de um mestre. Encontra.

    - Mestre me explica Deus?

    - Dois amigos tomavam o café da manhã. Um deles era cego de nascimento. . Tomou a mão do amigo cego e a passou pela borda aredondada da mesa

    Abraço!

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    1. Sr. Phenobarbital,

      Gostei do que você escreveu, embora não tenha entendido a história copta.

      Concordo que fico pernilongado com as inverdades, mas já disse que sou cético por temperamento e por formação. O fato é que todos os dias, eu tomo banho, escovo os dentes e lavo as mãos várias vezes. A tarefa de desentupir é apenas outro hábito de higiene. E não estou pensando em filosofia. Falo de nossas responsabilidades cotidianas. O que acontecerá se você e eu, como professores, não nos preocuparmos com as inverdades?

      Você não fica pernilogado com as inverdades ditas por um colega? Você não corrige as inverdades enunciadas pelos alunos que conversam com você?

      Ainda não conheci ser humano indiferente à inverdade. Estou para conhecer alguém que não se ofenda com uma calúnia que lhe seja dirigida, com uma mistificação oportunista em proveito de outrem, com alguma inverdade que diminua a sua verdade pessoal.

      Mas ficar pernilogado somente com esse tipo de inverdade é como querer tomar banho apenas em dia de casamento. As inverdades todas merecem trabalho de remoção ou desentupimento. Tarefa sem glamour, a ser cumprida com o desentupidor de borracha que você descreveu bem. Se tivesse outro jeito de mandar limpar os dutos, eu aceitaria alegremente.

      Mas, voltando à história copta (apócrifa ou não). O que Deus tem a ver com a borda da mesa? E tinha que ser a borda daquela mesa junto da qual os dois estavam sentados? Não poderia ser uma borda, como a borda de um livro ou do espaldar da cadeira?

      Mais uma vez, obrigado pela gentileza de amigo em responder à minha carta.

      um abraço,

      V.

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  2. Oras bolas!

    O que será que aconteceu? A estorinha foi cortada! Que estranho.

    Ahh, entendi. Eu coloquei o diálogo dos amigos entre símbolos de maior e de menor, isso coincide com liguagem html, por isso não apareceu. Eu quis dar a ideia de um diálogo dentro do outro. Vou mudar a forma:

    um jovem copta deseja muito ser um sábio, ser um monje copta. Vai ao deserto em busca de um mestre. Encontra.

    - Mestre me explica Deus?

    - Dois amigos tomavam o café da manhã. Um deles era cego de nascimento.
    {Como é lindo o branco do leite.}
    {como é o branco do leite?}
    {O branco do leite é lindo e suave como o cisne.}
    {Como é o cine?}
    Pegou a mão do amigo cego e passou pela borda arredondada da mesa {É assim}
    {Obrigado por me ensinar o branco!}

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    1. Sr. Phenobarbital,

      Agora sim! A história é muito boa.

      Obrigado por me ensinar o que é desejar ser sábio.

      um grande abraço,

      V

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