Carta a Renato Alencar Dotta
Renato,
É maldade minha ter escolhido um verso tão doce para o assunto tétrico e desagradável do qual pretendo falar, mas hoje é dia de seu aniversário e seria muito bom comemorá-lo conversando, como já fizemos muitas vezes, sobre os horrores da História.
Você sabe bem que momentos de violência desmesurada deixam um rastro de memória, que é negado, distorcido ou recuperado de acordo com o alinhamento das forças vitoriosas e derrotadas após o evento traumático. O devir histórico molda a memória, e não o contrário. Porém a imensa plasticidade da memória individual e coletiva não apaga completamente essas etapas do ajuste de forças. Os resíduos do processo são as zonas de sombra em torno de certas palavras, de certas imagens, de certos gestos. Os horrores da história criam fantasmas.
Encontrei um deles quando percorria os poemas de Heine, em mais uma tentativa de aprender o alemão. Senti vontade de rir da trapaça que a história fez com o belo Abendlied que Mendelssohn compôs a partir do poema de Heine. Vindo de dois expoentes da vasta cultura judaico-alemã, o verso Wenn ich auf dem Lager liege parece uma piada grotesca da qual gostaríamos de rir, mas o horror nos inibe. Todo o sentido original dessa canção romântica tão lânguida foi corrompido e sua inocência desfeita pela Shoah. A canção ficou mal-assombrada.
No entanto, esse fantasma não surgiu por um acaso histórico infeliz. Fantasmas não escolhem os lugares que vão assombrar. O que é próprio da assombração é o vínculo e a repetição. O fantasma habita a cena do trauma. Essa ligação da assombração com o local é um dos componentes etimológicos do verbo inglês “to haunt”, que por sua vez deriva do francês “hanter”. Se o Online Etymology Dictionary estiver correto, no século XIII, o verbo era usado no sentido de frequentar habitualmente um local, de ocupar-se com uma atividade. O verbo compartilha a raiz das palavras “home” e “Heimat” (e, acrescento eu, do verbo “habitar” em português).
Disso resulta que os fantasmas habitam a Heimat, como um leitmotiv habita uma ópera wagneriana.
Em outras palavras, a história pode ser imprevisível, mas nunca é randômica. A cada momento, o campo das possibilidades históricas está vincado por certas recorrências, como as cartas de baralho de um trapaceiro (La Scienza Nuova, de Vico, em epítome). Disso é que resulta a impressão de sentido do devir histórico, a miragem de propósito nos acontecimentos, o sentimento de um movimento. Os historiadores tentam agarrar qualquer fiapo ou retalho desse sentido para elaborar suas sínteses. O resultado é sempre um patchwork tão cheio de suturas quanto aquele feito pelo dr. Frankenstein... Está bem, está bem! Sei que parece uma das catilinárias de Guerra e Paz contra os historiadores, mas não se preocupe. Hoje é dia de seu aniversário e não convém ficar insultando a profissão que você escolheu. Noutro dia, com mais tempo, falo todo o mal que penso dos historiadores (o que nunca me dispensou de lê-los com atenção, pelo contrário!).
Então a canção de Heine e Mendelssohn ficou assombrada, e não porque eles tivessem o pressentimento de que forças obscuras se moviam em direção à Shoah. Não se pode aplicar à Abendlied de Heine e Mendelssohn, a análise que Siegfried Kracauer fez do poder antecipatório do cinema expressionista alemão em relação à catástrofe que se aproximava. Na época em que foi filmado o Gabinete do Doutor Caligari, as forças que viriam a engrossar o nacional-socialismo já estavam em plena atividade, ao passo que Heine e Mendelssohn vinham de uma comunidade judaica que ainda via possibilidade de integrar-se adotando uma identidade laica e apoiando o projeto de um Estado germânico unificado.
O destino dessa burguesia judaica culta estava intimamente ligado ao destino da Alemanha como nação, isto é, ao advento de uma entidade acima das divisões tradicionais que separavam os alemães étnicos em renanos, saxões, bávaros ou pomeranos. Desse ponto de vista, o nacionalismo da direita alemã era sobretudo uma união rancorosa de bairrismos e provincianismos contra o espírito realmente nacional da burguesia judaica alemã. O fato de que o capitão Dreyfus, judeu alsaciano, tenha sido condenado por supostamente fazer espionagem a serviço dos alemães não revela apenas o antissemitismo endêmico na França. É também uma percepção distorcida do papel importante que a comunidade judaica tinha no Estado alemão, papel do qual os nacionalistas da direita germânica queriam alijá-la. Essa direita não passeava nas galerias sofisticadas da Unter den Lieden ou da Kurfürstendamm, ela preferia se reunir nas cervejarias de província para arrotar seus insultos. Estavam dispersos, seguiam patetas mais ou menos carismáticos, metiam-se em brigas, mas não tinham projeto porque não conseguiam ver além da viseira da sua comunidade natal. A bandeira unificadora veio com a noção de que os germânicos formavam uma comunidade de sangue e destino definida pelo pertencimento racial. O resto do caminho para o Lager, nós já sabemos.
Segundo Timothy Garton Ash, o povo do Livro foi exterminado pelo povo de Gutenberg. É uma pena que não possamos rir da boutade por causa do cheiro de carne em putrefação e de cabelos queimados. Além disso, discordo que tenha sido o povo de Gutenberg que assassinou os judeus. Tudo começou com hooligans e filisteus de cervejaria, gente que lia pouco e lia mal. Gente que sentia prazer em queimar livros e autores. Definitivamente não foi o povo de Gutenberg, apesar do Mein Kampf e de outras bobagens impressas.
Mas, o odor de besteira suja de sangue já começa a me sufocar. Volto a Heine.
O verso inicial da canção fala de um momento de repouso que induz à fantasia. O repouso e a fantasia foram desfeitos no decurso de pouco mais de século. Os termos consagrados – Holocausto e Shoah – também são palavras assombradas. “Holocausto” remete às práticas sacrificiais, portanto ao universo religioso que os judeus laicos e iluministas do século XIX imaginavam superado. O “Shoah” é um termo da língua hebraica, bem longe do alemão que poetas como Heine sublimaram. As próprias palavras assinalam que a laicização e a integração cultural encontraram seu limite numa solução final.
A memória do horror passou por todos os recalques, negações e deformações e ainda não chegou à sua forma final, porque as forças ainda se agitam e compõem novas configurações. Em cada configuração, cabe à memória lembrar daquilo que lhe é solicitado que se lembre, e inibir as antigas versões das lembranças, que devem ser repudiadas como equívocos de interpretação.
*******
Dois incidentes recentes ligados ao Yad Vashem servem para mostrar o quanto a memória está sujeita às injunções políticas e religiosas. O primeiro foi noticiado no começo de julho:
O Yad Vashem, memorial do Holocausto de Jerusalém, suavizou neste domingo (dia 1º) um texto que acusava o Papa Pio XII de não ter feito nada pelos judeus durante o Holocausto, ao adicionar que nem todos concordam com sua atitude durante a Segunda Guerra Mundial.
Recentemente, ante as recomendações do instituto internacional Yad Vashem para a investigação sobre o Holocausto, o grupo de especialistas dedicado às atividades do Vaticano e do Papa Pio XII levou em consideração as pesquisas dos últimos anos, que apresentam um panorama mais complexo do que anteriormente", afirma a instituição em um comunicado.
Ao contrário do que se disse, não é o resultado da pressão do Vaticano", afirma o documento, em referência a um artigo do jornal "Haaretz", segundo o qual o Yad Vashem cedeu à Santa Sé.
Neste domingo, o texto explicativo que acompanhava desde 2005 uma fotografia do Papa Pio XII foi modificado, confirmou o porta-voz do Yad Vashem, Estee Yaari.
O texto antigo destacava as críticas a Pio XII, que era acusado de não ter agido contra as atrocidades infligidas aos judeus pelos nazistas. Ele era questionado sobretudo por não ter assinado, em dezembro de 1942, uma declaração dos Aliados condenando o extermínio dos judeus e de não ter atuado durante a operação de deportação dos judeus de Roma para Auschwitz.
O novo texto mantém as críticas a Pio XII, mas acrescenta os argumentos de seus defensores, que afirmam que a "neutralidade" do Papa possibilitou "um número importante de resgates clandestinos em diferentes níveis da Igreja". O conteúdo do texto foi motivo de conflitos entre o Yad Vashem e o Vaticano.
A outra notícia foi veiculada assim pela agência O Globo, em 11 de junho:
Mensagens antissemitas foram pichadas no memorial para o Holocausto de Yad Vashem em Israel na madrugada desta segunda-feira. A polícia israelense suspeita que os responsáveis pelo ataque sejam judeus ultraortodoxos que se opõem à existência do Estado de Israel.
Foram dez frases escritas em hebraico, como “Hitler, obrigada pelo Holocausto”, “Os sionistas quiseram o Holocausto” e “Se Hitler não tivesse existido, os sionistas o teriam criado”. De acordo com as pichações, os fundadores de Israel encorajaram secretamente a morte dos seis milhões de judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial para conseguir a criação do Estado israelense em 1948.
Muitos judeus ultraortodoxos abominam o Estado israelense moderno, por acreditar que sua criação deve esperar a chegada do Messias.
Avner Shalev, presidente do Yad Vashem, se disse “chocado e estupefato por essa insensível expressão de ódio contra os sionistas e o sionismo”.
O porta-voz da polícia, Micky Rosenfeld, disse que os investigadores estão trabalhando principalmente com a hipótese de que os vândalos são “membros da comunidade de extremistas ultra religiosos”, mas ainda não descartaram outras possibilidades.
O museu e memorial de Yad Vashem foi inaugurado no topo de uma montanha de Jerusalém em 1953 e é frequentemente visitado por líderes estrangeiros que prestam homenagens no Salão da Lembrança.
Em um outro incidente durante a última noite, sete carros de árabes israelenses que moram no campo de refugiados de Shuafat, no leste de Jerusalém, foram furados. Um dos veículos amanheceu pichado com “Ulpana”, bairro israelense construído em Beit El, um território palestino privado da Cisjordânia, que recentemente recebeu a ordem de demolição de casas de colonos judeus.
Estou longe de conhecer e de entender o que se passa em Israel, mas vejo que a manutenção da memória da Shoah tem seus percalços. Diante disso, minha sugestão vai parecer cínica e corro o risco de ser chamado de antissemita, mas quase todo mundo hoje corre esse risco, mesmo os judeus.
É fato de que o turismo do horror prospera na Polônia e na Alemanha. Os campos de extermínio visitáveis tem até sítios na Internet: Auschwitz-Birkenau, Majdanek, Dachau, Sachsenhausen.
Minha proposta é: por que nos limitarmos ao Holocausto? Por que não incluirmos visitas a Kátyn, às Fossas Ardeatinas, ao campo de massacre da Ustasha em Jasenovac, aos ossários das vítimas do Khmer Vermelho, a Ruanda, a Srebrenica, a Darfur?
Um passeio um pouco mais exótico seria visitar os experimentos inaugurais de extermínio praticados pelos alemães nas Ilhas Shark na Namíbia: o primeiro Lager. É um episódio que deixou poucos traços de memória. Sintomaticamente o verbete da Wikipédia sobre as Ilhas Shark só existe em alemão (um texto mais longo) e em inglês, hebraico e polonês (que trazem aparentemente o mesmo verbete em versão curta). A memória de certos eventos é conservada em certas línguas e não em outras, mesmo isso é uma configuração de forças.
Percorrer esses cenários da violência desmesurada, diante da qual todo o esforço dialético fracassa retumbantemente, é uma ideia antiga que eu tenho desde a minha época punk, quando eu “curtia” as letras dos Sex Pistols e sonhava em fazer aquilo que Johnny Rotten diz em “Holiday in the Sun”:
A cheep holiday in other peoples misery
I don't wanna holiday in the sun
I wanna go to the new Belsen
I wanna see some history
'cause now i got a reasonable economy
Fim de transmissão. A gente se encontra num Stalag qualquer dia.
Um grande abraço neste dia dos seus 38 anos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário