Carta a José Emílio Major Neto
Zé,
Uma das delícias da vida extra muros academiae é que podemos especular à vontade, à margem do currículo Lattes e fora do alcance dos petardos dos zelotas Fachmenschen que guardam a porta da lei e medem o tempo pela frequência dos papers.
Isso não é para mim e, se você também admira Montaigne, vai concordar: “Je ne me tiens pas bien en ma possession et disposition : le hazard y a plus de droit que moy, l'occasion, la compaignie, le branle mesme de ma voix, tire plus de mon esprit, que je n'y trouve lors que je le sonde et employe à part moy. Cecy m'advient aussi, que je ne me trouve pas où je me cherche : et me trouve plus par rencontre, que par l'inquisition de mon jugement.” (Livro I, 10)
Faz tempo que estou para te falar de uma comparação meio vadia, dessas que a gente anota para pensar a respeito mais tarde e a ocasião nunca chega (le hazard y a plus de droit que moy). Nesses anos em que esmiuçamos Dom Casmurro para nossos alunos que iam fazer as provas da Fuvest, eu sempre me comovi com um trecho do capítulo 142 (Uma Santa):
“Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase inválido e a minha mãe, que envelheceu depressa. Também ele estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam também. A última vez não foi a bordo.
- Venha...
- Não posso.
- Está com medo?
- Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais; creio que vou para a outra Europa, a eterna...
Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro.”
Somos todos netos do Sérgio Buarque e conhecemos muito bem essa condição de “desterrados em nossa própria terra”. Por isso mesmo farejamos à distância qualquer traço de bovarismo cultural.
Nosso ufanismo é um fenômeno reativo e compensatório, que sempre dependeu de canções do exílio escritas em Coimbra com epígrafes goetheanas, de revistas patrióticas tupis impressas em Paris, de galinhas verdes que cacarejavam anauê, achando que o comunismo era ideologia exótica, mas não o fascismo...Olha como o patriarca Alencar se retorce para nobilitar à la européene a paisagem daquele latifúndio do meio-oeste paulista mostrado em Til:
"Desenhava-se o pequeno e mimoso prado em oval alcatifado e com a alfombra de relva e cingido quase em volta pela floresta emaranhada, que a fechava como panos de muralha, cobertos de verdes tapeçarias e vistosas colgaduras, apanhadas em sanefas e bambolins de flores. À face oposta assomava a soberba colunata do Palmar que estendia-se até ali, formando arcarias góticas, fustes elegantes em estilo dórico e arabescos rendados de maravilhoso efeito."
A mata subtropical é um gobelin pendurado sobre a colunata dórica, entre arcos góticos cobertos de arabescos! Todo o ecletismo vitoriano das revistas que Dona Georgina Cochrane comprava para o marido, na rua do Ouvidor , entre um sorvete e um chá, nas tardes suarentas. Puro Brasil! E mais não digo, pois a lira tenho destemperada e o veneráveis mestres Cândido e Schwarz já nos prestaram imenso e patriótico serviço (não é ironia) ao passar a limpo essa trama de recalques localistas e ideias fora do lugar.
Volto à passagem de Dom Casmurro.
José Dias, um pobre diabo brasileiro que adquiriu alguma cultura, sonhava com a Europa. Com certeza, uma Europa bem diferente daquela que os ricos e privilegiados de várias nações percorriam em seu grand tour ritual para ganharem o direito de se tornarem personagens secundários de romances de Balzac, arrastando sua pose de tédio pelos salões do faubourg Saint-Germain.
A Europa dos pobres-diabos com alguma cultura é a terra-mãe de todas os cânones artísticos e literários, cujo árduo aprendizado elevava o sujeito a interlocutor válido da grande conversação ocidental. Uma Europa que era a materialização de uma perpétua journée de la patrimoine, iniciada quando o primeiro borra-paredes cuspiu ocre em Altamira ou naquele instante em que o touro raptou a irmã de Cadmo numa praia de Tiro.
Enquanto os ricos e privilegiados do Novo Mundo e da Rússia iam para a Europa para acertar seus ponteiros com a Zivilisation, os pobres-diabos queriam respirar um pouco da Kultur, mesmo nas condições do mais vulgar filistinismo (o que seria o caso de José Dias). Trata-se de uma vontade de estar, por alguns momentos, no coração do motor imóvel que gera o turbilhão da história.
A Europa dos pobres-diabos não admite o tédio nem o desprezo, provas cabais de uma ignorância que só poderia ser justificada com pretextos macunaímicos (mas, pergunto eu, será que a civilização europeia esculhamba mesmo a inteireza de nosso caráter?)
Na fala do pobre-diabo José Dias brilham todas as esperanças de nobilitação e de superação do meio cultural ralo, esperanças próprias de quem se sabe mero agregado na grande conversação ocidental. O que há de comovente na frase de José Dias (a outra Europa, a eterna) é aquela confissão que eu e você não temos coragem de fazer, por vergonha do nosso próprio bovarismo: que o nosso modelo de transcendência, o nosso sonho de Paraíso é o grande museu de tudo, o boulevard infinito, as estantes repletas de volumes encadernados em marroquim. A Europa para o homem culto das Américas e da Rússia é o nome de uma nostalgia dos cânones.
Agora os cânones foram desfeitos pelas poderosas investidas do movimento transnacional do capital. A modernização é a incorporação da Zivilisation mundializada, mas fortemente dominada pelo novo éthos empresarial norte-americano, não mais aquele de Ford e Rockfeller, mas o de Jobs e Zuckerberg.
Os cânones eram articulação de forças ligadas ao habitus (no sentido de Bourdieu), ligadas a instituições (o museu, a biblioteca, a academia, a conversa de café), ligadas à disciplina intelectual (a leitura, a escrita, o pensamento, a peregrinação cultural). Uma vez desfeitos ou corroídos os cânones, essas forças represadas se liberam de maneira caótica: elas nos levam à exploração de novas direções, mas também produzem desprezo pelo passado, tédio, desorientação, bobagem, impostura intelectual. A deriva niilista borra a legibilidade e promove desleitura. Quem tenta se salvar se apega às migalhas de filosofia daqueles livrinhos que atulham as livrarias, que deveriam todos se chamar Pão partido em pequeninos, como o livro do Pe. Bernardes.
Esse conflito entre a moribunda Europa dos cânones e o nova Zivilisation destituída de transcendência já estava no horizonte russo das décadas de 1860 e 1870, assim como estava no horizonte de Sousândrade no Inferno de Wall Street.
Você deve se lembrar daquela sequência de Crime e Castigo, (capítulos 5 e 6 da sexta parte): Svidrigáilov tem uma última conversa com Raskólnikov numa taverna; é rejeitado firmemente por Dúnia, sai pelas ruas geladas às margens do pequeno Nieva. Ele encontra um bombeiro judeu, que lhe pergunta:
"- Que procura por aqui? - disse, sem se mexer e sem mudar de posição.
- Eu, nada, meu caro. Bom dia - respondeu Svidrigáilov.
- Isto não é lugar...
- Eu, meu amigo, vou para o estrangeiro.
- Para o estrangeiro?
- Para América.
- Para América?
Svidrigáilov puxou o revolver pôs uma bala no tambor. Akhiles franziu o sobrolho.
- A que propósito vem essa gracinha? Isto não é lugar.
- E por que não é lugar?
- Porque não.
- Bem, meu amigo, tanto faz. É um bom lugar; se te perguntarem, dirás, com mil diabos, que fui para América.
Apoiou o revólver sobre a fronte direita.
- Ah, isso não, aqui não é lugar! - gritou Akhiles, abrindo cada vez mais os olhos.
Svidrigáilov puxou o gatilho...."
É, Zé. Na nossa condição de professores de literatura, olhamos cheios de nostalgia e admiração a época dos cânones e buscamos, amontoados entre os turistas, o último pedaço de normatividade artística que pode ter uma coluna dórica. Mas, não existe mais nem céu nem inferno para nós, não há mais motor imóvel de onde emana a ordem. Só existe agora o nomadismo tresloucado do capital, o íncubo das nações e das culturas, que responde pelo nome genérico de AMERIKA, mesmo quando se trata da China.
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