Carta a Irene Leonel
Irene,
Quando você me ligou da última
vez, depois de anos sem nos falarmos, quis lhe mandar um e-mail com notícias
atualizadas sobre meus filhos, a Ludmila, meu trabalho, minhas viagens e minhas
leituras. Tudo o que não foi sequer mencionado no breve telefonema. Desisti
logo porque odeio esse tipo de relatório e acho que meus amigos merecem mais do
que informações burocraticamente circunstanciadas.
Nos tempos idos, eu lhe mandaria
uma longa carta repleta de estilemas recém colhidos nas páginas de Nietzsche,
estilemas que hoje me dão engulhos. Há uma vulgaridade de pregador de aldeia
que se apodera de Nietzsche e mergulha certas suas obras no ridículo: ele grita
demais e fala cuspindo, como Paulo de Tarso nas epístolas. Na adolescência, tentava
imitá-lo salivando também, mas os anos me ensinaram boas maneiras. Havia mesmo assim uma verdade estilística no condoreirismo espasmódico de Nietzsche, bem como nas
imprecações de Paulo: sua prosa é a dos solitários que adoeceram pelo desejo de
serem amados e compreendidos, eles amam demasiado a posteridade e gritam para serem
ouvidos pelos que ainda vão nascer. Eles acreditam ser portadores de uma
mensagem que entreviram numa epifania. Na concepção evangélico-bismarckiana de
Nietzsche, compor uma obra era declarar para os homens vindouros o advento de
outro Reich. Como muitas das piadas que fez, aquela do Pai-Nosso rezado pelos
alemães (“Venha a nós o nosso Reich...”) se volta com facilidade contra o próprio autor. Parece ser uma triste sina de Nietzsche
que sua seriedade fosse tida como piada e suas piadas retornassem como
bumerangues inadvertidos.
Quando você e eu nos conhecemos,
eu tinha 15 ou 16 anos. Eu sonhava em ser um portador, como Nietzsche e só não
saía pregando e babando por causa do respeito que tinha por Marx e por Spinoza.
No quadro das urgências sociais,
políticas e econômicas da década de 1980, ler Marx me salvou do profetismo, impondo
as tarefas do presente: observação, análise, teoria. O marxismo vive dessa
urgência, desse nervosismo diante do devir, dessa atenção de operador de radar perscrutando
o horizonte. Um galo pode cantar a qualquer momento: pode ser o toque de
alvorada da revolução ou, pelo menos, o sinal de que as galinhas vão botar ovos
cujo valor de uso vai ser suprimido pelo valor de troca na forma de mercadoria,
conversível em dinheiro, conversível em capital que alimenta a indústria
moderna, que acumula mais-valia e gera um exército industrial de reserva,
aguçando as contradições entre capital e trabalho, até o limite em que os
lucros decrescentes levem ao colapso de todo o sistema. Portanto, é preciso
ficar atento ao canto do galo...
Em data bem recente, eu me cansei do trabalho de
operador de radar de galinheiro. Estava cochilando muito no serviço e, antes
que o galo cantasse pela terceira vez, neguei Marx - aquele tipo de negação
parcial que arrisca tornar-me papa da igreja marxista: primeiro, porque a negação
sempre pode ser resgatada pela dialética na forma de superação que continua o
processo; segundo, porque tornar-se papa é, desde o início, o prêmio concedido
aos que negam. Bem-aventurados os que negam, pois deles será a Santa Sé!
(Desculpe, Irene, mas o meu catolicismo em coma dá tênues sinais de vida de quando em quando).
É mais difícil dizer o que eu via
em Spinoza. Ele não me impunha tarefas prementes nem uma mensagem. Spinoza era
e ainda é, para mim, um elucidador. Quando eu abro a Ética, sempre digo baixinho, à maneira de mantra, as palavras de
Dante a Virgílio: Tu duca, tu signore, tu
maestro. Mas isso é injusto, porque Spinoza não quer ser
mestre nem senhor. Dito de outro modo, Spinoza tem as boas maneiras que Nietzsche
fingia ignorar. Tudo se passa como se
Spinoza, como mercador de panos, mostrasse-nos o tecido do mundo, lado direito
e avesso, e nos convidasse a desfazer as dobras para observar melhor os
padrões. Não há nada além do tecido e das sombras criadas pela
bizarrice das dobras.
Mas a metáfora do tecido não é boa porque supõe a existência do
tecelão. Então, vem a maravilha: e se soubéssemos que o tecido se trama a si
mesmo e as navetes vão de um lado para o outro sozinhas, às cegas? E se
soubéssemos que aquilo que imaginávamos como padrões eram apenas configurações
casuais e randômicas, como os desenhos das nuvens? E se soubéssemos que as aparentes aberturas para um outro mundo, para um além, fossem apenas
rasgões e esgarçados do tecido em decorrência da sua falta de uniformidade já que
as navetes operam cegamente? E se soubéssemos que todos os maravilhosos efeitos
de organização cósmica e de sentido transcendente fossem apenas efeitos da
nossa vontade de crer nesses efeitos? Por que tudo isso seria mais inadmissível
do que supor um bondoso tecelão que engendra almas e corpos e os coloca para
cumprir seus ciclos neste mundo?
Tanto a hipóteses do tecelão divino
quanto a das navetes automáticas são absurdas. Mas entre os dois absurdos, eu
escolho o que não me subordina à vontade de Deus. Como Lúcifer no poema de
Milton, eu digo: Non serviam! E repito: Non serviam! Já me basta a obediência
devida ao patrão que me remunera. Já me basta a obediência às leis que garantem
um pouco de ordem social. Já me basta a obediência às convenções e rituais. Não
preciso nem quero viver como agregado da transcendência, esperando os incertos
favores de um tecelão invisível, que produz um tecido tão inepto. A hipótese
das navetes automáticas tem o mérito de nos fazer compreender as imperícias do
pano. A hipótese do tecelão cósmico gera problemas adicionais de teodiceia, que
todos os religiosos de matriz judaico-cristã tiveram que resolver. Spinoza é a
navalha de Ockam que elimina a teodiceia.
Daí a fonte das divergências
que nos afastaram ao longo de todos esses anos. Eu e você
fizemos escolhas opostas de muitas maneiras, mas você sempre teve
a imensa generosidade de apoiar as minhas escolhas mais excêntricas.
Quando eu completei 40 anos, você
me ligou e disse esperava que eu tivesse ido mais longe. Eu me senti mal porque
você tinha todo o direito de me perguntar: e aí, meu amigo, onde estão as suas
obras? Enfim, a
parábola evangélica dos talentos (Mateus 25, 14-19) na escala de uma crise da meia-idade...
Na época tive um pesadelo
recorrente. Era o dia do Juízo e eu tinha que me justificar diante de um
tribunal em que estavam Platão, Spinoza, Kant, Marx, Kierkegaard e Nietzsche.
Eu seria sabatinado como um candidato num concurso. Eles iriam me perguntar: o
que você fez com aquilo que nós te ensinamos? Tudo muito parecido com o pesadelo
do velho professor em “Morangos Silvestres”.
Cinco anos se passaram. Você me
ligou novamente e foi uma alegria ouvir a sua voz. Tudo isso facilitou a decisão de por mãos à
obra e me justificar (se a palavra convém), mas não diante de uma comissão
de mortos notáveis e sim para os meus amigos – aquelas pessoas cujas razões e argumentos me interessam e que
gostaria de ouvir e de ler.
Irene, ainda não sei se
produzirei alguma coisa. Sei o que eu não quero ser e aceito bem a forma menor
que pode ter meu pensamento. Nada do livro único e obscuro depositado no templo
de Ártemis; nada de diálogos platônicos (essa grande mistificação literária);
nada de Hipotiposes Pirronianas, nenhuma suma teológica ou ateológica; nada de Crítica da Razão Pura ou do Tractatus Logico-Philosophicus. Talvez
ensaios à la Montaigne, talvez aforismos filosófico-humorísticos como
Lichtenberg, talvez esboços aporéticos como os cadernos de Wittgenstein. Talvez
eu componha listas de puzzles insolúveis. Talvez um romance-ensaio à maneira de
W. G. Sebald, mas sem o devido talento. Tudo é questão de achar o tom certo,
entre Millôr e Pascal, entre Francis Ponge e La Rochefoucauld.
Os filhos estão crescidos e cada
vez dependem menos de mim. A Ludmila está fazendo coisas muito boas no seu
ateliê. Se você acompanhar meu blog, vai ler meu comentário sobre
algumas delas. Espero sua resposta e mais conversas.
Um abraço muito forte deste amigo antigo.
PS- As fotos do blog são todas
minhas. O desenho, que já não pratico mais, me deu bom olho para a fotografia,
mas minha filha sabe fotografar muito melhor.
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