sexta-feira, 13 de julho de 2012

O dia do juízo





Carta a Irene Leonel


Irene,

Quando você me ligou da última vez, depois de anos sem nos falarmos, quis lhe mandar um e-mail com notícias atualizadas sobre meus filhos, a Ludmila, meu trabalho, minhas viagens e minhas leituras. Tudo o que não foi sequer mencionado no breve telefonema. Desisti logo porque odeio esse tipo de relatório e acho que meus amigos merecem mais do que informações burocraticamente circunstanciadas.
Nos tempos idos, eu lhe mandaria uma longa carta repleta de estilemas recém colhidos nas páginas de Nietzsche, estilemas que hoje me dão engulhos. Há uma vulgaridade de pregador de aldeia que se apodera de Nietzsche e mergulha certas suas obras no ridículo: ele grita demais e fala cuspindo, como Paulo de Tarso nas epístolas. Na adolescência, tentava imitá-lo salivando também, mas os anos me ensinaram boas maneiras. Havia mesmo assim uma verdade estilística no condoreirismo espasmódico de Nietzsche, bem como nas imprecações de Paulo: sua prosa é a dos solitários que adoeceram pelo desejo de serem amados e compreendidos, eles amam demasiado a posteridade e gritam para serem ouvidos pelos que ainda vão nascer. Eles acreditam ser portadores de uma mensagem que entreviram numa epifania. Na concepção evangélico-bismarckiana de Nietzsche, compor uma obra era declarar para os homens vindouros o advento de outro Reich. Como muitas das piadas que fez, aquela do Pai-Nosso rezado pelos alemães (“Venha a nós o nosso Reich...”) se volta com facilidade contra o próprio  autor. Parece ser uma triste sina de Nietzsche que sua seriedade fosse tida como piada e suas piadas retornassem como bumerangues inadvertidos.
Quando você e eu nos conhecemos, eu tinha 15 ou 16 anos. Eu sonhava em ser um portador, como Nietzsche e só não saía pregando e babando por causa do respeito que tinha por Marx e por Spinoza.
No quadro das urgências sociais, políticas e econômicas da década de 1980, ler Marx me salvou do profetismo, impondo as tarefas do presente: observação, análise, teoria. O marxismo vive dessa urgência, desse nervosismo diante do devir, dessa atenção de operador de radar perscrutando o horizonte. Um galo pode cantar a qualquer momento: pode ser o toque de alvorada da revolução ou, pelo menos, o sinal de que as galinhas vão botar ovos cujo valor de uso vai ser suprimido pelo valor de troca na forma de mercadoria, conversível em dinheiro, conversível em capital que alimenta a indústria moderna, que acumula mais-valia e gera um exército industrial de reserva, aguçando as contradições entre capital e trabalho, até o limite em que os lucros decrescentes levem ao colapso de todo o sistema. Portanto, é preciso ficar atento ao canto do galo...
Em data bem recente, eu me cansei do trabalho de operador de radar de galinheiro. Estava cochilando muito no serviço e, antes que o galo cantasse pela terceira vez, neguei Marx - aquele tipo de negação parcial que arrisca tornar-me papa da igreja marxista: primeiro, porque a negação sempre pode ser resgatada pela dialética na forma de superação que continua o processo; segundo, porque tornar-se papa é, desde o início, o prêmio concedido aos que negam. Bem-aventurados os que negam, pois deles será a Santa Sé! (Desculpe, Irene, mas o meu catolicismo em coma dá tênues sinais de vida  de quando em quando).
É mais difícil dizer o que eu via em Spinoza. Ele não me impunha tarefas prementes nem uma mensagem. Spinoza era e ainda é, para mim, um elucidador. Quando eu abro a Ética, sempre digo baixinho, à maneira de mantra, as palavras de Dante a Virgílio: Tu duca, tu signore, tu maestro. Mas isso é injusto, porque Spinoza não quer ser mestre nem senhor. Dito de outro modo, Spinoza tem as boas maneiras que Nietzsche fingia ignorar.  Tudo se passa como se Spinoza, como mercador de panos, mostrasse-nos o tecido do mundo, lado direito e avesso, e nos convidasse a desfazer as dobras para observar melhor os padrões. Não há nada além do tecido e das sombras criadas pela bizarrice das dobras.
Mas a metáfora do tecido não é boa porque supõe a existência do tecelão. Então, vem a maravilha: e se soubéssemos que o tecido se trama a si mesmo e as navetes vão de um lado para o outro sozinhas, às cegas? E se soubéssemos que aquilo que imaginávamos como padrões eram apenas configurações casuais e randômicas, como os desenhos das nuvens? E se soubéssemos que as aparentes aberturas para um outro mundo, para um além, fossem apenas rasgões e esgarçados do tecido em decorrência da sua falta de uniformidade já que as navetes operam cegamente? E se soubéssemos que todos os maravilhosos efeitos de organização cósmica e de sentido transcendente fossem apenas efeitos da nossa vontade de crer nesses efeitos? Por que tudo isso seria mais inadmissível do que supor um bondoso tecelão que engendra almas e corpos e os coloca para cumprir seus ciclos neste mundo?
Tanto a hipóteses do tecelão divino quanto a das navetes automáticas são absurdas. Mas entre os dois absurdos, eu escolho o que não me subordina à vontade de Deus. Como Lúcifer no poema de Milton, eu digo: Non serviam! E repito: Non serviam! Já me basta a obediência devida ao patrão que me remunera. Já me basta a obediência às leis que garantem um pouco de ordem social. Já me basta a obediência às convenções e rituais. Não preciso nem quero viver como agregado da transcendência, esperando os incertos favores de um tecelão invisível, que produz um tecido tão inepto. A hipótese das navetes automáticas tem o mérito de nos fazer compreender as imperícias do pano. A hipótese do tecelão cósmico gera problemas adicionais de teodiceia, que todos os religiosos de matriz judaico-cristã tiveram que resolver. Spinoza é a navalha de Ockam que elimina a teodiceia.
Daí a fonte das divergências que nos afastaram ao longo de todos esses anos. Eu e você fizemos escolhas opostas de muitas maneiras, mas você sempre teve a imensa generosidade de apoiar as minhas escolhas mais excêntricas.

Quando eu completei 40 anos, você me ligou e disse esperava que eu tivesse ido mais longe. Eu me senti mal porque você tinha todo o direito de me perguntar: e aí, meu amigo, onde estão as suas obras?  Enfim, a parábola evangélica dos talentos (Mateus 25, 14-19)  na escala de uma crise da meia-idade...  

Na época tive um pesadelo recorrente. Era o dia do Juízo e eu tinha que me justificar diante de um tribunal em que estavam Platão, Spinoza, Kant, Marx, Kierkegaard e Nietzsche. Eu seria sabatinado como um candidato num concurso. Eles iriam me perguntar: o que você fez com aquilo que nós te ensinamos? Tudo muito parecido com o pesadelo do velho professor em “Morangos Silvestres”.
Cinco anos se passaram. Você me ligou novamente e foi uma alegria ouvir a sua voz.  Tudo isso facilitou a decisão de por mãos à obra e me justificar (se a palavra convém), mas não diante de uma comissão de mortos notáveis e sim para os meus amigos – aquelas pessoas  cujas razões e argumentos me interessam e que gostaria de ouvir e de ler.

Irene, ainda não sei se produzirei alguma coisa. Sei o que eu não quero ser e aceito bem a forma menor que pode ter meu pensamento. Nada do livro único e obscuro depositado no templo de Ártemis; nada de diálogos platônicos (essa grande mistificação literária); nada de Hipotiposes Pirronianas,  nenhuma suma teológica ou ateológica; nada de Crítica da Razão Pura ou do Tractatus Logico-Philosophicus. Talvez ensaios à la Montaigne, talvez aforismos filosófico-humorísticos como Lichtenberg, talvez esboços aporéticos como os cadernos de Wittgenstein. Talvez eu componha listas de puzzles insolúveis. Talvez um romance-ensaio à maneira de W. G. Sebald, mas sem o devido talento. Tudo é questão de achar o tom certo, entre Millôr e Pascal, entre Francis Ponge e La Rochefoucauld.
Os filhos estão crescidos e cada vez dependem menos de mim. A Ludmila está fazendo coisas muito boas no seu ateliê. Se você  acompanhar meu blog, vai ler meu comentário sobre algumas delas.  Espero sua resposta e mais conversas.

Um abraço muito forte deste amigo antigo.

PS- As fotos do blog são todas minhas. O desenho, que já não pratico mais, me deu bom olho para a fotografia, mas minha filha sabe fotografar muito melhor.


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