segunda-feira, 23 de julho de 2012

Macabro






Carta a Ludmila Ciuffi


Lud,

Das suas peças recentes, o “Varal dos Enforcados” é a que teve a recepção mais estranha. A culpa é da obra, que tem assunto distante e pouco usual.  A pena capital por enforcamento é mero fato histórico no país em que vivemos e os enforcamentos coletivos existem apenas como imagens de outros lugares e de outras épocas (punição de ladrões no Antigo Regime, execuções coletivas na 2ª Guerra Mundial, vítimas da Ku Klux Klan). À medida que se dissipa a memória histórica dessa forma de punição, fica apenas o sentimento de inquietação que chamamos de “macabro”.
Durante as crises do horrível século XIV, a onipresença da Morte era figurada em uma sarabanda de esqueletos que se entrelaçavam, arrastando jovens e velhos, ricos e pobres, senhores e servos, guerreiros e camponeses, homens e mulheres, clérigos e leigos. Nas imagens dessas "danses macabres", não se tratava de conduzir os pecadores para as penas do inferno, mas de levar os vivos à vala comum da podridão.  Não havia a transcendência de um Juízo, apenas a  vertigem do absurdo e da vaidade de tudo o que existe. Não se mostrava o castigo e sim a aniquilação: sem discurso edificante, sem chamado à esperança,  tão somente o fim inevitável e anunciado.
“Macabro” era, portanto, o adjetivo que definia aquela coreografia fantástica que abolia todas as diferenças sociais. Com o tempo, passou a designar tudo o que se associava  à morte como denominador comum que rasura a individualidade. Por isso, não é o defunto que é macabro, mas o túmulo de pedra fria e inorgânica; não é o cadáver que é macabro, mas o necrotério em seu anonimato silencioso; não é o morto que é macabro, mas o campo-santo, com as flores que exalam cheiros roxos nas tardes de Finados. Não é o próprio corpo falecido que é macabro, mas suas relíquias e os relicários que as contém.  O defunto, o cadáver, o morto ainda são suficientemente singulares para nos recordar a vida que eles eram.

O macabro começa quando a erosão  desfaz os traços que ainda singularizavam um nome ou uma lembrança. O macabro vem quando, finalmente, uma segunda morte começa a desfazer as metonímias da primeira morte. Macabras são as lápides de nomes ilegíveis e as criptas de famílias sem descendentes; macabra é a fotografia de um falecido sem nome de quem restou apenas a imagem de um olho baço.
É inegável que há algo de macabro no "Varal dos Enforcados". Os “enforcadinhos” dançam uma “danse macabre” no anonimato de suas individualidades desfeitas, porém a encenação dessa dança nos faz rir. Não um riso escarninho ou cínico, mas um riso leve. É que os “enforcadinhos” não são imagens do desespero ou do fim inevitável. Eles tem graça! Aparecem dispostos num tipo de balanço infantil, sacodem ao mínimo movimento, lembram brinquedos e brincadeiras. O corpo de cada um deles é estilizado como um símbolo ou letra, formando uma palavra que devemos decifrar como no jogo de “forca”.
É preciso afastar dos “enforcadinhos” qualquer associação com o suicídio.  No mundo de tradição cristã, o suicídio por enforcamento é o que Judas Iscariotes praticou (Mateus 27, 3-8), por isso, o suicida enforcado é imagem da esperança que se foi. Ao lado da porta de entrada da Capela Scrovegni, em Pádua, Giotto pintou a esperança como alguém que alça voo e se eleva aos céus, ao passo que o desespero aparece como um enforcado, cujo corpo pende pesadamente. Esse enforcado conhece bem a gravidade, mas não conhece a Graça.
Os “enforcadinhos” do “Varal dos Enforcados” não são desesperados. A gravidade não lhes concerne, porque eles tem a graça, isto é, a leveza e o humor. Acredito que isso se deva à categoria de objeto à qual pertence o “Varal dos Enforcados”, assim como algumas das peças que você, Ludmila, produziu recentemente.
Desde o “Exercício Têxtil nº 5” – o busto de manequim que você mesma definiu como catártico-, você tem experimentado aplicar o trabalho de fio (lã, fibra vegetal ou metal) sobre suportes rígidos. Primeiro a “Janela com Sutiãs”, depois a “Cortina de Facas”. Em seguida, você mesma criou e mandou fazer suportes metálicos que realçam o peso e a tridimensionalidade, como o “Encalacrado” e a “Gaiola”. É nesta sequência que se insere o “Varal dos Enforcados”.
O severo busto de manequim, coberto de lã branca, traz uma pequena costura lateral em fio vermelho, da qual pende um grão de feijão, como um tumor enforcado. A peça forma um par com uma janela muito colorida, de cujas gelosias pendem sutiãs bojudos e alegres. Para quem não sabe, o par de objetos é um monumento à vitória sobre um tumor de mama.  Eles assinalam uma vontade de passar a limpo o medo e o sofrimento de um tratamento que deixou marcas físicas, que já cicatrizaram. O busto de manequim é quase a representação física desta cicatriz, assim como a janela é imagem de um desejo e de uma alegria. Para mim, esta janela é o pensamento que a cabeça invisível do manequim nunca deixou de pensar e desejar.
 A “Cortina de Facas” resulta do mesmo procedimento construtivo aplicado na “Janela com Sutiãs”: a moldura da janela é coberta pelo trabalho de lã; produtos industrializados são pendurados nos vãos no lugar dos vidros. Apesar de compartilharem o método de produção, as duas obras são muito diferentes em seu aspecto final e nos seus objetivos.
Ao invés da natureza catártica ou emocional evidente nas obras anteriores, “Cortina de Facas” tem algo de provocação, de cinismo e de humor negro, à maneira da violência estilizada nos filmes de Hitchcock e nos romances de Agatha Christie, ou das simpáticas titias homicidas em Arsenic and Old Lace, de Frank Capra.
No entanto, é uma violência que é neutralizada, que não fere ninguém. As facas apontam para o chão, não para quem as olha. Mesmo a disposição serial das faquinhas chinesas baratas tira delas o caráter mortífero que teria uma arma voltada contra nós. A violência não se dirige ao espectador, ela é narrada em 3ª pessoa de modo que a janela é a tela em que se projeta um filme noir. A violência também é anulada pelo caráter ritualístico e teatral da sua encenação. Diferentemente das armas de fogo, as facas, adagas, navalhas e espadas tem uma grande dignidade dramatúrgica e poética. São objetos mágicos e sacrificiais, que vem do mundo pré-moderno e ainda perpetuam a lembrança do sagrado. As faquinhas industriais made in China são, ao mesmo tempo, a evocação desse passado e a paródia dele.
No “Encalacrado”, muda o princípio construtivo e o tema. Estamos agora num diálogo entre o metal, que forma a estrutura sólida e rústica, e o fio metálico dúctil, que se enrola seguindo uma trilha caprichosa e amorosa, como a dança de borboleta em torno da flor.
Na obra seguinte, a “Gaiola”, não há dança; o princípio construtivo domina e cria uma estrutura premeditada em seus contrastes entre metal rígido e trabalho de linha, entre a jaula e a rede de segurança, que abriga o leve pêndulo cravado de agulhas sem pontas, como um coração que se defende, sem querer ferir ninguém.
Não consigo deixar de pensar que a “Cortina de Facas” e a “Gaiola” partem da mesma necessidade de apropriar-se dos materiais de construção (a janela, o ferro usado para armar o concreto) e dos objetos do plano doméstico (a faca, a agulha, a lã e a seda) reunidos para figurar um microcosmos  (o da casa, do lar, do espaço doméstico) em seu diálogo tenso com o mundo exterior. Essas obras criam membranas protetoras (redes e cortinas) que delimitam o fora e o dentro, sem nunca separá-los de fato.  As estruturas rígidas de metal definem contornos e áreas, não para enclausurá-las, mas como suportes de uma construção em andamento.  É uma casa que está sendo feita, de fios que se enroscam, de metais e de nós.

Do meu ponto de vista, o “Varal dos Enforcados” não destoa dessa necessidade construtiva. O suporte do varal é do mesmo ferro de construção da “Gaiola”, mas essa estrutura agora não delimita um fora e um dentro que conversam entre si.  Da trave de ferro pendem, em fios de lã, os cinco “enforcadinhos”. Eles são feitos de fios metálicos muito leves e se parecem com os homenzinhos de palito que as crianças desenham. O fato de que a estrutura do varal parece o suporte de um balanço reforça o ar infantil e brincalhão. Mas eles também se parecem com cruzes, letras e símbolos, o que me leva à minha hipótese.

Já disse que concordo que os “enforcadinhos” são macabros, porém eu vejo neles a mesma tentativa de neutralizar a violência que há na “Cortina de Facas”. Eles não são feitos para suscitar horror, mas para afastar ritualisticamente a violência do mundo. Eu acho que o “Varal dos Enforcados”, assim com a “Gaiola” e a “Cortina de Facas” são objetos apotropaicos, como as figas, as ferraduras atrás da porta e as fitinhas vermelhas que se amarravam nas crianças pequenas para afastar o mau-olhado e da qual pendem os “enforcadinhos”. Todos esses objetos visam esconjurar os imprevistos desastrosos, os acasos violentos, a falência da ordem que, a duras penas, conseguimos construir.

Os “enforcadinhos” são amuletos lúdicos, um pouco como o rosário meio herético que você, Ludmila, fez uma vez e pendurou na porta dos fundos de seu atelier. Eles vem do mesmo humor negro hitchcockiano da “Cortina de Facas” e estilizam uma forma de violência há muito banida do mundo em que vivemos. Eles evocam a lembrança de um mal distante, que pode ser figurado de maneira brincalhona, com os mesmo materiais seguros e mansos com que se faz uma casa.  




2 comentários:

  1. Nada como olhos aguçados e pensamento afiado para quem elegeu agulhas e facas como ferramentas de inserção nesse mundo.
    As palavras são frequentemente mais contundentes do que bordunas e a arte de bem empregá-las você domina à perfeição. Como bom tecelão, você urde com substância e trama com estilo esse seu tecido verbal tão bem costurado.
    Da graça, é preciso que se diga, foi com alegria que aprendi a ver com seus olhos aquilo que para mim era defeito de origem em minhas peças recentes. Fadadas à irrelevância, pareciam carecer de seriedade, como se só as coisas pesadas e angustiosas tivessem lugar nesse mundo. Como você bem assinalou, nada como um amuleto engraçado para esconjurar a tristeza que às vezes nos tolhe e impede que as flores que cultivamos em segredo encontrem seu lugar ao sol. E é mesmo assim, há lugar para o Louro das cabeças divinizadas e para a grama que alimenta rebanhos inteiros...
    Assunto vasto esse, e antigo: alegria é o motor que põe em movimento seus átomos prediletos. Atiçados, eles investigam, indagam, organizam as numerosas peças desse mosaico de experiências que constitui nossas vidas. Vê-los em ação tem sido um privilégio.

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  2. Privilegio el mio, de ser testigo de este dialogo...

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