Carta a Ludmila Ciuffi
Lud,
Das suas peças recentes, o “Varal dos Enforcados” é a que teve a recepção mais estranha. A culpa é da obra, que tem assunto distante e pouco usual. A pena capital por enforcamento é mero fato histórico no país em que vivemos e os enforcamentos coletivos existem apenas como imagens de outros lugares e de outras épocas (punição de ladrões no Antigo Regime, execuções coletivas na 2ª Guerra Mundial, vítimas da Ku Klux Klan). À medida que se dissipa a memória histórica dessa forma de punição, fica apenas o sentimento de inquietação que chamamos de “macabro”.
Durante as crises do
horrível século XIV, a onipresença da
Morte era figurada em uma sarabanda de esqueletos que se entrelaçavam,
arrastando jovens e velhos, ricos e pobres, senhores e servos, guerreiros e
camponeses, homens e mulheres, clérigos e leigos. Nas imagens dessas "danses macabres", não se tratava de conduzir os pecadores para as penas do inferno,
mas de levar os vivos à vala comum da podridão.
Não havia a
transcendência de um Juízo, apenas a
vertigem do absurdo e da vaidade de tudo o que existe. Não se mostrava o castigo e sim a aniquilação: sem discurso
edificante, sem chamado à esperança, tão somente o fim
inevitável e anunciado.
“Macabro” era, portanto, o adjetivo
que definia aquela coreografia fantástica que abolia todas as diferenças sociais.
Com o tempo, passou a designar tudo o que se associava à morte como
denominador comum que rasura a individualidade. Por isso, não é o defunto que é macabro,
mas o túmulo de pedra fria e inorgânica; não é o cadáver que é macabro, mas o
necrotério em seu anonimato silencioso; não é o morto que é macabro, mas o
campo-santo, com as flores que exalam cheiros roxos nas tardes de Finados. Não
é o próprio corpo falecido que é macabro, mas suas relíquias e os relicários que as
contém. O defunto, o cadáver, o morto ainda são suficientemente singulares para nos recordar a vida que eles eram.
O macabro começa quando a erosão desfaz os traços que ainda singularizavam um nome ou uma lembrança. O macabro vem quando, finalmente, uma segunda morte começa a desfazer as metonímias da primeira morte. Macabras são as lápides de nomes ilegíveis e as criptas de famílias sem descendentes; macabra é a fotografia de um falecido sem nome de quem restou apenas a imagem de um olho baço.
O macabro começa quando a erosão desfaz os traços que ainda singularizavam um nome ou uma lembrança. O macabro vem quando, finalmente, uma segunda morte começa a desfazer as metonímias da primeira morte. Macabras são as lápides de nomes ilegíveis e as criptas de famílias sem descendentes; macabra é a fotografia de um falecido sem nome de quem restou apenas a imagem de um olho baço.
É inegável que há algo de macabro
no "Varal dos Enforcados". Os “enforcadinhos” dançam uma “danse macabre” no
anonimato de suas individualidades desfeitas, porém a encenação dessa dança nos
faz rir. Não um riso escarninho ou cínico, mas um riso leve. É que os
“enforcadinhos” não são imagens do desespero ou do fim inevitável. Eles tem
graça! Aparecem dispostos num tipo de balanço infantil, sacodem ao mínimo
movimento, lembram brinquedos e brincadeiras. O corpo de cada um deles é
estilizado como um símbolo ou letra, formando uma palavra que devemos decifrar como
no jogo de “forca”.
É preciso afastar dos
“enforcadinhos” qualquer associação com o suicídio. No mundo de tradição cristã, o suicídio por
enforcamento é o que Judas Iscariotes praticou (Mateus 27, 3-8), por isso, o suicida
enforcado é imagem da esperança que se foi. Ao lado da porta de entrada da
Capela Scrovegni, em Pádua, Giotto pintou a esperança como alguém que alça voo
e se eleva aos céus, ao passo que o desespero aparece como um enforcado, cujo
corpo pende pesadamente. Esse enforcado conhece bem a gravidade, mas não conhece
a Graça.
Os “enforcadinhos” do “Varal dos
Enforcados” não são desesperados. A gravidade não lhes concerne, porque eles tem
a graça, isto é, a leveza e o humor. Acredito que isso se deva à categoria de
objeto à qual pertence o “Varal dos Enforcados”, assim como algumas das peças
que você, Ludmila, produziu recentemente.
Desde o “Exercício Têxtil nº 5” –
o busto de manequim que você mesma definiu como catártico-, você tem
experimentado aplicar o trabalho de fio (lã, fibra vegetal ou metal) sobre
suportes rígidos. Primeiro a “Janela com Sutiãs”, depois a “Cortina de Facas”.
Em seguida, você mesma criou e mandou fazer suportes metálicos que realçam o
peso e a tridimensionalidade, como o “Encalacrado” e a “Gaiola”. É nesta
sequência que se insere o “Varal dos Enforcados”.
O severo busto de manequim,
coberto de lã branca, traz uma pequena costura lateral em fio vermelho, da qual
pende um grão de feijão, como um tumor enforcado. A peça forma um par com uma
janela muito colorida, de cujas gelosias pendem sutiãs bojudos e alegres. Para
quem não sabe, o par de objetos é um monumento à vitória sobre um tumor de
mama. Eles assinalam uma vontade de
passar a limpo o medo e o sofrimento de um tratamento que deixou marcas
físicas, que já cicatrizaram. O busto de manequim é quase a representação
física desta cicatriz, assim como a janela é imagem de um desejo e de uma
alegria. Para mim, esta janela é o pensamento que a cabeça invisível do
manequim nunca deixou de pensar e desejar.
A “Cortina de Facas” resulta do mesmo
procedimento construtivo aplicado na “Janela com Sutiãs”: a moldura da janela é
coberta pelo trabalho de lã; produtos industrializados são pendurados nos vãos
no lugar dos vidros. Apesar de compartilharem o método de produção, as duas
obras são muito diferentes em seu aspecto final e nos seus objetivos.
Ao invés da natureza catártica ou
emocional evidente nas obras anteriores, “Cortina de Facas” tem algo de provocação,
de cinismo e de humor negro, à maneira da violência estilizada nos filmes de
Hitchcock e nos romances de Agatha Christie, ou das simpáticas titias homicidas
em Arsenic and Old Lace, de Frank
Capra.
No entanto, é uma violência que é
neutralizada, que não fere ninguém. As facas apontam para o chão, não para quem
as olha. Mesmo a disposição serial das faquinhas chinesas baratas tira delas o
caráter mortífero que teria uma arma voltada contra nós. A violência não se
dirige ao espectador, ela é narrada em 3ª pessoa de modo que a janela é a tela
em que se projeta um filme noir. A violência também é anulada pelo caráter
ritualístico e teatral da sua encenação. Diferentemente das armas de fogo, as facas,
adagas, navalhas e espadas tem uma grande dignidade dramatúrgica e poética. São
objetos mágicos e sacrificiais, que vem do mundo pré-moderno e ainda perpetuam
a lembrança do sagrado. As faquinhas industriais made in China são, ao mesmo
tempo, a evocação desse passado e a paródia dele.
No “Encalacrado”, muda o
princípio construtivo e o tema. Estamos agora num diálogo entre o metal, que
forma a estrutura sólida e rústica, e o fio metálico dúctil, que se enrola
seguindo uma trilha caprichosa e amorosa, como a dança de borboleta em torno da
flor.
Na obra seguinte, a “Gaiola”, não
há dança; o princípio construtivo domina e cria uma estrutura premeditada em
seus contrastes entre metal rígido e trabalho de linha, entre a jaula e a rede
de segurança, que abriga o leve pêndulo cravado de agulhas sem pontas, como um
coração que se defende, sem querer ferir ninguém.
Não consigo deixar de pensar que
a “Cortina de Facas” e a “Gaiola” partem da mesma necessidade de apropriar-se
dos materiais de construção (a janela, o ferro usado para armar o concreto) e
dos objetos do plano doméstico (a faca, a agulha, a lã e a seda) reunidos para
figurar um microcosmos (o da casa, do
lar, do espaço doméstico) em seu diálogo tenso com o mundo exterior. Essas obras criam membranas protetoras (redes
e cortinas) que delimitam o fora e o dentro, sem nunca separá-los de fato. As estruturas rígidas de metal definem
contornos e áreas, não para enclausurá-las, mas como suportes de uma construção
em andamento. É uma casa que está sendo
feita, de fios que se enroscam, de metais e de nós.
Do meu ponto de vista, o “Varal dos Enforcados” não destoa dessa necessidade construtiva. O suporte do varal é
do mesmo ferro de construção da “Gaiola”, mas essa estrutura agora não delimita
um fora e um dentro que conversam entre si. Da trave de ferro pendem, em fios de lã, os
cinco “enforcadinhos”. Eles são feitos de fios metálicos muito leves e se
parecem com os homenzinhos de palito que as crianças desenham. O fato de que a
estrutura do varal parece o suporte de um balanço reforça o ar infantil e
brincalhão. Mas eles também se parecem com cruzes, letras e símbolos, o que me
leva à minha hipótese.
Já disse que concordo que os
“enforcadinhos” são macabros, porém eu vejo neles a mesma tentativa de
neutralizar a violência que há na “Cortina de Facas”. Eles não são feitos para
suscitar horror, mas para afastar ritualisticamente a violência do mundo. Eu
acho que o “Varal dos Enforcados”, assim com a “Gaiola” e a “Cortina de Facas”
são objetos apotropaicos, como as figas, as ferraduras atrás da porta e as
fitinhas vermelhas que se amarravam nas crianças pequenas para afastar o
mau-olhado e da qual pendem os “enforcadinhos”. Todos esses objetos visam
esconjurar os imprevistos desastrosos, os acasos violentos, a falência da ordem
que, a duras penas, conseguimos construir.
Os “enforcadinhos” são amuletos
lúdicos, um pouco como o rosário meio herético que você, Ludmila, fez uma vez e
pendurou na porta dos fundos de seu atelier. Eles vem do mesmo humor negro
hitchcockiano da “Cortina de Facas” e estilizam uma forma de violência há muito
banida do mundo em que vivemos. Eles evocam a lembrança de um mal distante, que
pode ser figurado de maneira brincalhona, com os mesmo materiais seguros e mansos
com que se faz uma casa.
Nada como olhos aguçados e pensamento afiado para quem elegeu agulhas e facas como ferramentas de inserção nesse mundo.
ResponderExcluirAs palavras são frequentemente mais contundentes do que bordunas e a arte de bem empregá-las você domina à perfeição. Como bom tecelão, você urde com substância e trama com estilo esse seu tecido verbal tão bem costurado.
Da graça, é preciso que se diga, foi com alegria que aprendi a ver com seus olhos aquilo que para mim era defeito de origem em minhas peças recentes. Fadadas à irrelevância, pareciam carecer de seriedade, como se só as coisas pesadas e angustiosas tivessem lugar nesse mundo. Como você bem assinalou, nada como um amuleto engraçado para esconjurar a tristeza que às vezes nos tolhe e impede que as flores que cultivamos em segredo encontrem seu lugar ao sol. E é mesmo assim, há lugar para o Louro das cabeças divinizadas e para a grama que alimenta rebanhos inteiros...
Assunto vasto esse, e antigo: alegria é o motor que põe em movimento seus átomos prediletos. Atiçados, eles investigam, indagam, organizam as numerosas peças desse mosaico de experiências que constitui nossas vidas. Vê-los em ação tem sido um privilégio.
Privilegio el mio, de ser testigo de este dialogo...
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