segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Badameco, badana e beldroegas




Carta a Renato Gomes de Carvalho


Renato,


Perdi a conta de quantas vezes conversamos sobre a poesia das músicas do Chico e do Caetano. Então não vou repisar o caminho batido. Quero falar dos novos, como aquele sambista talentoso, sagitariano de Vila Isabel (trata-se de um caso evidente em que a regência de Júpiter é tão importante quanto o feitiço da Vila), que ainda não fez vinte e sete anos e já desponta como uma bela promessa, com os augúrios de um nome que tem tudo a ver com presentes, dons e regalos natalinos.  O moço se chama Noel de Medeiros Rosa. É claro que ele não chega aos pés de gigantes da música como Lady Gaga ou, para ficar no âmbito nacional, Michel Teló – ambos dignos continuadores do minimalismo radical que domina a música de massa. Noel é muito inteligente, mas é exatamente a sua verve que o prejudica. O rapaz não se controla: chama uns parceiros de igual calibre (Vadico, Orestes Barbosa, Cartola) e dispara canções letais, com uma abundância apressada e generosa de quem pressente que a vida será curta e há muito samba a ser feito. 

Há quem conteste que um branquelo de classe média, sem passagem pelo morro nem pela malandragem, ainda por cima estudante de Medicina, possa fazer samba. Wilson Batista é desse alvitre, mas ele está errado. Se o Chico Buarque, criado num nicho de classe média culta, filho de um dos maiores intelectuais brasileiros, pode fazer samba, então Noel também pode. Noel não é menor que Chico Buarque. Contra o establishment emepebista, um cartel formado pela Bossa Nova Corporation, pela Buarque & Cia., pela Tropicália Ltda e pelo Clube da Esquina Holding,  eu ouso afirmar que Noel, embora jovem e bastante desconhecido, é o maior.  

Chico e Caetano, dois sujeitos inteligentíssimos, sempre foram movidos por um impulso de superação, de alcançar e de ir além de seus ídolos poéticos e musicais. Embora Caetano sempre fizesse uma pose vanguardista em contraposição ao aparente passadismo do Chico Buarque, tudo isso era jogo de cena, construção das personae artísticas. Chico e Caetano sempre avançaram inexoravelmente, sempre foram forças que empurram. Os métodos é que divergem. Nas músicas do Chico, o sujeito lírico recolhe e reconstrói, pela memória e pelo afeto nostálgico, os cacos do passado perdido, sabendo que não irá recuperá-lo. 

Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão (As Vitrines)

Em todo caso, amanhã vai ser outro dia.  É nesse passo que Chico caminha para o futuro.

Nas canções de Caetano, o eu-lírico exerce uma soberania seletiva, ele escolhe, elege, afirma o que quer.

As garras da felina
Me marcaram o coração,
Mas as besteiras de menina
Que ela disse, não. (Tigresa)

Chico, filho de historiador, age como arqueólogo que mergulha em cidades submersas para recuperar os fragmentos do que se foi e, pacientemente, liricamente, juntar os pedaços. O que é novo vai surgir daí. Caetano, vindo de uma classe média sem tradições e de cidade pequena, pega o material plástico do presente e da experiência passada, deixa de lado o que não lhe interessa – o lenço e o documento - e promove a parte pulsante do desejo, que ele identifica com a própria vida. Toda estrutura que aprisiona o desejo, que lhe tira a mobilidade e a transitividade “odara”, traz um pouco de morte. Há nisso um pensamento 68 que Caetano nunca traiu: a própria guinada “liberal” de Caetano nos anos FHC tem a ver com o seu desprezo pelo patrulhamento ideológico dos petistas (sempre dispostos a aplaudir o engajamento do Chico) e pela sua vontade de proibir qualquer proibição, em reduzir o horizonte normativo do Estado.

Apesar de suas diferenças, Chico e Caetano são ambos extremamente laboriosos, um labor que deixa uma marca de coisa pensada, intencional, elaborada e até rebuscada na maioria das letras que eles escreveram. Não há inocência na obra dos dois. Não há sequer a aparência de um inocente vir-a-ser, da coisa que brota, um tanto por acaso, ao sabor do momento. Essa aparência de inocência e espontaneidade é o domínio dos sambas de Noel, e lhes dá um frescor de juventude atemporal. 

Não sei qual é o samba de Noel de que mais gosto. Espero jamais ter que escolher entre "Conversa de Botequim", "Filosofia", "Feitio de Oração" ou "Palpite Infeliz".  Para não fazer a balança pender indevidamente, vou falar de um samba “menor” de Noel Rosa (o que, dadas as proporções de nosso personagem, ainda é enorme...):

João Ninguém
Que não é velho nem moço
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar
Num vão de escada
Fez a sua moradia
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar

João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Que joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais
Esse João Ninguém nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião.

João Ninguém
Não tem ideal na vida
Além de casa e comida
Tem seus amores também
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém

João Ninguém 
Não trabalha um só minuto
E vive sem ter vintém
E anda a fumar charuto
Esse João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião.

“João Ninguém” (1935) fala de um homem que vive como um Diógenes moderno. Mora num vão de escada, como poderia morar num barril, indiferente ao barulho da vizinhança que quer, talvez, enxotá-lo. Contenta-se com uma refeição por dia, desde que seja farta o suficiente para poupá-lo da preocupação de comer de novo. Mesmo sem trabalhar, ele consegue manter seus dois únicos vícios, jogar e fumar charutos ou cigarros Liberty ovais, famoso arrebenta-peito dos anos 30. Bastando-se com o abrigo, a comida e os amores (no plural), a pobreza do personagem é claramente superior em felicidade ao luxo ostensivo de muitos. Sem ideal, nem transcendência, nem perigo, nem inimigos nem opiniões, João Ninguém é um modelo de vadiagem feliz, um tipo de malandro “budista”, que conseguiu se colocar fora da roda-viva dos sofrimentos e dos desejos e alcançou uma nobre indiferença filosófica:

Mas a filosofia hoje me auxilia 
A viver indiferente assim  (Filosofia)

Segundo o Dicionário Houaiss, a expressão “joão-ninguém” (que consta do Caldas Aulete desde 1881) indica uma pessoa de condição social inferior ou desqualificada socialmente. Seus sinônimos são muitos e curiosos: badameco, badana, bangalafumenga, beldroegas, berdamerda, bereberé, bicho-careta, borra-botas, brochote, bunda-suja, cara-suja, chirimóia, chochinha, cusco, dunguinha, fabiano, fubica, fulustreco, fumega, futrica, gato-pingado, guaipé, guaipeca, guaipeva, guapeva, homenzinho, jagodes, janeanes, jangué, janistroques, joão-fernandes, lagalhé, leguelhé, lheguelhé, maenga, meijengro, mequetrefe, merda, mucufa, ningres-ningres, pé-de-chinelo, pé-de-poeira, pé-rachado, pé-rapado, pobre-diabo, sanfona, titica, xinxilha, zé-da-véstia, zé-dos-anzóis, zé-dos-anzóis-carapuça, zé-ninguém, zé-prequeté, zé-quitolas, zé-quitólis.

Muita literatura da década de 1930 falava sobre gente como Fabiano, de Vidas Secas, ou Naziazeno, de Os Ratos. Todos eles uns pobres-diabos, vergados pela opressão e pela pobreza. O João Ninguém de Noel é diferente. Ele não é um coitado, nem é uma figura digna de pena. Não que não haja pobres-diabos no cancioneiro de Noel. Basta lembrar de “Pela Décima Vez”, em que o sofrimento amoroso leva o eu-lírico a movimentos irrefletidos e a uma autonegação patética:

O costume é a força que fala mais forte do que a natureza
E nos faz dar provas de fraqueza
Joguei meu cigarro no chão e pisei
Sem mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumei
Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir:
Ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir

Ou o homem rico que perdeu tudo e vive às custas dos seus antigos comensais em “Pra esquecer”:

E hoje em dia, quando por mim você passa,
Bebo mais uma cachaça, com meu último tostão,
Prá esquecer a desgraça, tiro mais uma fumaça,
Do cigarro que filei de um ex-amigo que outrora sustentei.

Isso para não mencionar a galeria de anti-heróis, como “Tarzan, o filho do alfaiate”, que se cansa até com o peso do paletó de casimira.

Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte, nem conheço futebol...
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
E eu passo o ano inteiro sem ver um raio de sol
A minha força bruta reside
Em um clássico cabide, já cansado de sofrer
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura, mas que pesa e faz doer.

O que Noel queria era viver de maneira “folgada”, no sentido de ter o suficiente para não ser acossado pela urgência do trabalho e pela inserção no mundo do dinheiro, que sempre lhe parece hostil. É o que se vê em “Quem dá mais”, no qual o samba é desmantelado e colocado aos pedaços para ser leiloado por valores irrisórios, ou em “Cem mil réis”:

Você me pediu cem mil réis,
Pra comprar um soirée,
E um tamborim,
O organdi anda barato pra cachorro,
E um gato lá no morro,
Não é tão caro assim.
(...)
Sei que você,
Num dia faz um tamborim,
Mas ninguém faz um soirée,
Com meio metro de cetim,
De soirée,
Você num baile se destaca,
Mas não quero mais você,
Porque não sei vestir casaca.

Para conseguir um tamborim, basta recorrer ao dom gratuito da natureza que é a pele de gato do morro; para fazer o soirée, é preciso comprar o cetim e o organdi. É melhor então desistir da amada que faz essas exigências de “luxo”. 

A “vida folgada” de Noel é o sonho do sujeito desmonetarizado, que, por ser "folgado", abusa da solicitude dos outros e aproveita-se de tudo o que é grátis, até o limite da impertinência. É o que faz a graça de “Conversa de Botequim”, em que o freguês muito mandão e pouco disposto a pagar, inferniza o garçom com suas demandas:

Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente

João Ninguém é o “folgado” bem sucedido, que prescinde totalmente do trabalho e do dinheiro. Embora a letra seja toda permeada de negações (ninguém, nem,  sem, nunca, não),  sua negatividade é, por assim dizer, positiva. Ele não é pobre, ele é livre. Pobre é o escravo do capital, é quem corre atrás do dinheiro sem jamais alcançá-lo. É quem lamenta a falta de posses. Sua única concessão ao mundo do consumo é a referência à marca de cigarros Liberty, mas mesmo esse nome é significativo da condição de independência – embora de maneira irônica, porque inscrita na esfera da mercadoria que jamais pode ser livre, e associada à dependência do vício tabagista.

A própria tessitura poética de “João Ninguém” repete o despojamento do personagem.  As duas únicas rimas finais para “Ninguém” são “vintém” (duas vezes: o que reforça a situação de desmonetarização de João) e “também” (que permite fazer um acréscimo ao reduzido círculo de necessidades de João: casa, comida e amores também). Em compensação, Noel Rosa, disseminou através dos versos os fonemas que compõem a palavra “ninguém”, que às vezes ressoa em rimas internas (tem, além, sem), da mesma maneira que o João ressoa no “vão” e no “não”.

João Ninguém é especial, mas dentro de um tipo, de uma categoria. Ele é “um dos tais que...” Por isso, ele pode ser apresentado com o demonstrativo “esse”, mas o demonstrativo aí não é apenas um dêitico exofórico que aponta um indivíduo dentro de uma classe; parece-me que se trata de um uso do “esse” oposto ao que se registra na linguagem popular quando se diz: “esse vagabundo”, de valor qualificativo disfórico, segundo Maria Helena de Moura Neves, na Gramática de Usos do Português.  Seria talvez o caso de dizer que a expressão “esse João”  tem um valor eufórico, ressaltando a exemplaridade singular do personagem. 

Como o uso do “esse” – ainda de acordo com a Gramática de Usos do Português -  pode indicar também a vinculação entre o falante e o ouvinte numa certa relação de comunicação, o pronome demonstrativo seria a única marca de interlocução da letra. O momento em que uma voz não identificada (que supomos ser a de Noel) indica para os ouvintes a posição exemplar que tem o seu personagem para o enunciador e para o interlocutor.

João Ninguém  realiza o ideal de uma vida feliz e low profile à margem do capital: sem perigos, sem inimigos e também sem opinião (a opinião, como o dinheiro, é apenas um meio de troca e aquisição de “valores”).

Trinta anos depois de Noel, os Beatles também gravaram uma música sobre um João-Ninguém, não mais como exemplar de uma felicidade utópica, mas como distopia do indivíduo que mergulhou na alienação e, por isso, forma a multidão anônima que comanda inconscientemente o mundo alienado.

He's a real nowhere man,
Sitting in his Nowhere Land,
Making all his nowhere plans
for nobody.

Doesn't have a point of view,
Knows not where he's going to,
Isn't he a bit like you and me?

Nowhere Man please listen,
You don't know what you're missing,
Nowhere Man, the world is at your command!

Sei que José Ramos Tinhorão não aceitaria essa comparação entre Noel e os Beatles, por violar a singularidade e a cor local da música brasileira em confronto com as formas espúrias impostas pelas multinacionais da indústria fonográfica. Eu insisto que Noel não precisa ser poupado do confronto com o que de melhor se fazia na década de 1930 no mundo (a parceria de Brecht com Kurt Weil ou o jazz de Billie Holiday e de Lester Young) nem nas décadas seguintes. Prefiro pensar que num momento de extrema lucidez, John Lennon retomou a música de Noel e a refez nas condições do capitalismo avançado da Inglaterra dos anos sessenta. Da cabeça de um jovem genial para outro jovem genial, sem fronteira e sem nacionalismo para atrapalhar. Só a música. 

Renato, espero que você me perdoe a incursão amadorística nesta área que você domina. Sempre admirei a fineza com que você lida com a música, com o texto e com as  relações tão complicadas entre o som e o sentido. E sempre vou admirar a sua defesa pertinaz e pertinente do valor da cultura – do teatro, da música, do cinema, das artes plásticas – na formação do ser humano não-alienado.

Um grande abraço para você e para meus dois ex-pupilos, o Daniel e o Danilo.




Nenhum comentário:

Postar um comentário