domingo, 7 de outubro de 2012

Na companhia dos bons




Carta a Francisco José de Oliveira



Chico,


Já lhe contei muitas vezes a respeito da beatlemania da minha mãe e de como eu fui gestado - e vim ao mundo - junto com o Sgt Pepper’s. Uma das lembranças fortes da minha primeira infância é o alarde provocado pela notícia de que os Beatles iriam se separar. Uma década depois, eu voltava da escola e minha mãe, tristíssima, me deu a notícia de que Lennon fora assassinado. Ela comentou com o meu pai: a nossa geração está começando a morrer. Ela mesma se foi, treze meses depois, assassinada por um câncer. 

Quando Lennon morreu, eu ouvia Pink Floyd, the Police e começava a gostar dos Rolling Stones. Não iria demorar muito para conhecer Joy Division e descobrir que Ian Curtis cometera suicídio naquele mesmo ano de 1980. Não iria demorar muito para entrar na minha fase punk. Não iria demorar muito para ser hipnotizado por How soon is now?, dos Smiths.

Portanto, meu mundo musical afastava-se decididamente dos Beatles, que passaram a ser apenas a música de fundo das saudades da minha infância. Quando Kurt Cobain se matou, eu me dei conta de que minha geração estava começando a morrer. Resolvi reavaliar o quanto tinha sobrado da beatlemania herdada pelo gene materno. Os tempos eram favoráveis a isso. O novo rock inglês de então – Verve, Blur, Radiohead, mas especialmente o Oasis – inspirava-se generosamente nas melodias e nas estruturas harmônicas dos Beatles, enfatizando aquele elemento de solidão e desencanto que aparecia em algumas canções do grupo. Muita coisa tinha mudado na minha vida: eu era professor há alguns anos, estava casado, tinha filhos. Minha experiência começava a sedimentar. Foi quando descobri que a música definitiva, a espinha dorsal da minha afeição inesgotável pelos Beatles, aquela que expressava a estrutura de minhas opções de vida  era A day in the life, que nascera comigo e que, espero, continue vivendo eternamente quando eu não mais existir.

A day in the life fala sobre morte, rotina e evasão. E também sobre fotografia, cinema e leitura - sobretudo sobre leitura. (A canção também fala sobre drogas, mas sou careta e isso não me toca muito.) Depois de alguns acordes de violão e piano em crescendo, entra a voz de Lennon – frágil, aguda, um pouco rouca, de uma moleza sonolenta que arrasta a interjeição “oh boy” de maneira irônica e alonga demasiado as sílabas finais de cada verso, quase formando melismas. É como um mineiro do Norte de Minas, meio abaianado, que fala. Sem que saibamos o porquê, ele nos dá um compte-rendu do dia que se foi. Ele passou os olhos pelo fait divers e leu a respeito de um acidente de carro envolvendo um figurão. Ele também foi ver um filme sobre uma guerra vencida pelo exército inglês. O filme não tinha muito apelo popular, mas ele sentiu o impulso de vê-lo mesmo assim porque já tinha lido o livro que serviu de base para o roteiro.

No meio desse relatório desconexo sobre as atividades desse dia preguiçoso, em que Lennon expressa a vontade de trazer algum tipo de excitação para o seu interlocutor desconhecido (é apenas um you. Seremos nós?), entra a voz firme e mais grave de Paul, caindo da cama de manhã para começar a azáfama de mais um dia. É um descer e subir as escadas, pegar um ônibus na correria e no meio tempo dar um “tapa” num baseado para mergulhar num sonho. Entra novamente a voz aguda de Lennon num longo melisma da vogal “a” acompanhado de um crescendo sinfônico grandioso à maneira de Mussorgski. 

Volta o relatório sobre o fait divers da imprensa daquele dia. Dessa vez é uma notícia esdrúxula sobre quatro mil buracos que apareceram em Lancashire, seguido de um comentário digno do Chapeleiro Maluco em Alice no País das Maravilhas e, mais uma vez, a voz mineira abaianada querendo trazer excitação para a vida do interlocutor não-nomeado. A música termina, mas eu a escuto de novo e de novo, sempre satisfeito e sempre insatisfeito porque o círculo de interpretação não se fecha.

A day in the life é composta de duas letras, uma de Lennon, outra de Paul, que foram costuradas.  Na letra de Lennon, vemos a contemplação irônica do non-sense da vida, contemplação que parece não ser compartilhada pelos outros, nem pelo interlocutor, que o eu-lírico gostaria de estimular. Na letra de Paul, vemos uma rotina terra-a-terra, feita de pressa e de horários apertados, na qual a evasão só é possível através do “baseado”. Nenhuma outra canção dos Beatles expõe tão claramente a polaridade Lennon/McCartney. 

Depois da separação, Lennon se tornou muito panfletário e engajado; ao passo que Paul caiu com frequência no sentimentalismo e no saudosismo. Isso não nos deve fazer esquecer que Lennon fez da preguiça uma arma crítica contra a rapidez insensata da vida e transformou a cama em campo de batalha pela paz e pelo amor. Numa espécie de sabedoria Zen ou de espinosismo prático, ele aprendeu que era preciso olhar a máquina do mundo sub specie aeternitatis, sem espanto, sem pressa, “curtindo” a ironia do movimento insano das engrenagens. Viver nessa contemplação preguiçosa, rindo das notícias tristes dos jornais, é colocar-se em pleno coração da resistência passiva contra a brutalidade do mundo. Aquela atitude que vemos em prática em A day in the life, foi depois explicitada em Watching the wheels, a música que mais gosto da carreira solo de Lennon.

Paul McCartney é o homem do cotidiano, da família, das pequenas felicidades “ob-la-di, ob-la-da”, da evasão e refúgio em Mull of Kintyre. Ele é o homem dos compromissos que fazem parte da vida. Há beleza suficiente no mundo para que possamos suportar o fardo da maldade, da guerra e das injustiças. Há esperança de que será diferente um dia, talvez não cedo o bastante, mas esse dia virá. É o que ele dizia em Tug of War.

De um lado, Lennon – radicalmente moderno - parecia dar uma interpretação "gandhiana" às "doutrinas" situacionistas de Guy Debord, em especial ao conceito de dérive: "In a dérive one or more persons during a certain period drop their usual motives for movement and action, their relations, their work and leisure activities, and let themselves be drawn by the attractions of the terrain and the encounters they find there… "(Ken Knabb,  ed. Situationist International Anthology, 1995). A day in the life é uma deriva através dos "espetáculos" fornecidos pela mídia impressa e pelo cinema (A Sociedade do Espetáculo, de Debord, é do mesmo ano que Sgt. Pepper's).

De outro lado, Paul – digno herdeiro do realismo-romântico de Dickens e de Chaplin - ancorava-se solidamente na tradição obreira de Liverpool, com aquela sabedoria paciente de quem quer se divertir na sexta-feira à noite, no pub ou no dancing, depois de um dia de trabalho duro. A culminância dessa resignação de classe trabalhadora é Let it be.

Hoje eu sou muito mais Paul, por isso mesmo, admiro mais o ponto de vista de Lennon, com o qual procuro aprender tudo o que posso. Especialmente a atitude de distanciamento, cujas marcas são numerosas na letra da minha canção favorita.

A primeira dessas marcas é a temporalidade. A day in the life fala do dia de hoje, mas todos os verbos estão no passado ou no  condicional. A segunda é a mediação. O mundo chega a Lennon por meio do jornal, da fotografia, do cinema, do livro (por que não do rádio e da televisão? o que significa essa ausência?). A terceira é o isolamento. Não há pessoas ao seu redor, a não ser a multidão de basbaques que se juntou para ver um acidente de carro, como mostrava a fotografia no jornal. No cinema, as pessoas evitam o filme sobre o exército inglês que tanto interessou o eu-lírico (ele tinha até lido o livro a respeito do assunto). A quarta é a limitação sensorial. Trata-se de um mundo que chega através dos olhos, que quase só existe na visão. Os verbos pertencem ao campo semântico do ver: to see, to look, to stare, to notice the lights, to read. Lennon não toca o mundo, não degusta, simplesmente olha e vê (quem cai da cama, penteia o cabelo, toma uma xícara, corre e fuma é Paul). Daí que sua relação com o mundo se intelectualiza e ganha a marca da ironia. Ele é capaz de rir do figurão de sucesso que morreu porque não percebeu as luzes do semáforo. 

(Uma observação de passagem: o verso “he blew his mind out in a car” é curioso porque se aproxima da expressão blow his brains out. Poderia ter sido um suicídio ao invés de uma simples desatenção do figurão que não prestou atenção ao semáforo? Por que então ele estourou a mente e não os miolos? Suicídio ou morte por distração semiótica? Que importa? Num caso como no outro, gente famosa morre das maneiras mais banais. 

O sucesso e a fama não garantem nem mesmo que o corpo seja devidamente reconhecido pelos basbaques, que só podiam supor que se tratava de algum lord.  Eis o ato reflexo quase milenar de uma sociedade que identifica o privilégio da riqueza e do sucesso com  o poder político.)

O distanciamento de Lennon também é um autodistanciamento: as reações dele são impulsos espontâneos inexplicáveis e mais fortes do que sua vontade – verdadeiras compulsões que ele expressa com frases do tipo “I just had to laugh” ou “I just had to look” (ele usará essa mesma construção em Watching the Wheels).

Esse distanciamento não é produto de um espírito antissocial patologicamente frustrado com a phoniness das convenções que regem o mundo. Apesar de Catcher in the Rye ter sido o grande livro da geração de jovens a que Lennon pertencia, foi Mark David Chapman que tirou as consequências últimas do desajuste de Holden Caulfield. It’s funny how one insect can damage so much grain, comentou depois Elton John.

O jeito distanciado de Lennon em A day in the life tampouco tem algo a ver com a melancólica solidão de Eleanor Rigby, que guardava seu rosto numa  jarra perto da porta,  ou do Padre Mackenzie, que à noite cerzia as meias puídas e preparava sermões que ninguém escutava. Quem se importava com eles, essa pobre gente solitária? 

Nem excluído, nem anômico, Lennon fala como indivíduo autônomo no sentido de David Riesman: “Os autônomos são aqueles que, no todo, são capazes de se conformar às normas comportamentais da sua sociedade – uma capacidade que falta, em geral, aos anômicos -  mas que são livres de escolher entre se conformarem ou não” (A Multidão Solitária, capítulo 12). 

É essa autonomia paradoxal, porque despossuída de tudo, inclusive do controle de si mesmo, que permite ao eu-lírico da canção, a partir de sua deriva preguiçosa e distanciada, formular o desejo de excitar o interlocutor, que ele chama apenas de “you”. 

Quando foi lançada, a canção teve divulgação restrita porque o verso I'd love to turn you on  tinha conotação sexual, além de referir-se ao consumo de drogas. Não nego que esse aspecto era relevante para Lennon e para todo mundo que viveu a loucura de liberação comportamental  da segunda metade da década de 1960. Mas, para fazer jus à inteligência de Lennon e ao ideário da Internacional Situacionista, que parecia influenciá-lo, seria interessante entender o verso I'd love to turn you on  à luz de um certo sketch do Monty Python, grupo cujo universo ideológico se aproximava seja dos Beatles (Ringo era amigo dos Pythons), seja dos situacionistas, através de Terry Gilliam, que produzia as vinhetas animadas fortemente ligadas ao dadaísmo, ao surrealismo e ao trabalho gráfico da capa e do encarte do Sgt. Pepper's.

O sketch a que me refiro é Confuse-a-Cat  (primeira temporada do Flying Circus, que foi ao ar em novembro de 1969).  Como mostram os Pythons, é preciso salvar a mente do bichano comfortably numb estimulando-o até o limite da confusão, para tirá-lo do torpor pequeno-burguês e suburbano. O remédio é o non-sense e a provocação gratuita. Os Pythons entendiam bem do ofício. Confuse-a-cat é a profissão de fé do humor situacionista.

A meus ouvidos de fã do Flying Circus e de herdeiro involuntário da Internacional Situacionista, o verso I'd love to turn you on  significa que Lennon também queria sacudir o apatia do gato suburbano que nos habita. 

Termino aqui.

Desde que comecei estas minhas cartas, fazia tempo que eu pensava em mandar-lhe alguma coisa sobre nossas conversas musicais. Cheguei a rabiscar umas notas sobre Morrissey, sobre Bowie, sobre Leonard Cohen, sobre o Radiohead, sobre the National (que prolonga minha ligação musical com o Joy Division). Esta semana soube que Love me do fazia cinquenta anos; não demora e é o Sgt Pepper’s que completará comigo meio século. Daí veio a decisão de antecipar a homenagem que seria de qualquer maneira inevitável à música da minha vida. E olhe que nunca faltaram músicas belíssimas – aquelas de que sempre gostei e aquelas que conheci por sua causa: as canções do Drive by Truckers, de Pietra Brown, do Legendary Tigerman, de Sean Riley & the Slowriders, dos cds do Morrissey e do Lloyd Cole que eu ainda não tinha.

Por tudo isso, e principalmente por esses dez anos de amizade (já são dez anos, Chico!), vai aí um abraço afetuoso deste seu amigo.




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