Borromini
I
Em O Mal-estar da Civilização, Freud sustentou que a pulsão de agressividade era mantida sob controle ao ser dirigida para o domínio técnico sobre a natureza e ao ser introjetada - contra o próprio eu - na forma de sentimento de culpa. Essa seria a fonte principal do descontentamento com a civilização e, ao mesmo tempo, a maior ameaça contra ela, uma vez que a pulsão agressiva na forma de domínio técnico havia criado as condições para a aniquilação total da espécie humana e somente poderia ser contida por um acréscimo de repressão e, portanto, de insatisfação.
Na esteira de Nietzsche, Freud sugeriu que a hostilidade contra a civilização teria sua história marcada por dois grandes momentos: o surgimento do Cristianismo e a difusão do mito do bom selvagem na era moderna (que culmina em Rousseau). A decepção generalizada com as promessas da religião e da tecnologia na passagem do século XIX para o século XX forneceu a configuração do mal-estar da civilização, com seu cortejo de ameaças reais e fantasmáticas, que nos é bem familiar.
A crise da civilização já teve, porém, outras configurações em que as contradições apareciam de maneira igualmente explícita e aguda. Foi o que ocorreu no século XVII, quando a ciência de Galileu se confrontou com o poder da igreja romana. É tentador ver aí o conflito exemplar entre a luz da ciência e as trevas da religião, mas isso seria escamotear o momento da contradição, reduzindo-a a um mero confronto em que um dos polos (o da ciência) estaria destinado, por alguma lei inexorável, a superar o outro (o da religião) num esquema positivista fácil. A verdade do conflito está no fato de que nem o papa Urbano VIII Barberini nem o Cardeal Bellarmino eram obscurantistas nem a ciência de Galileu era uma aventura desinteressada pelos domínios da natureza. Para sustentar essa ilusão seria preciso deixar de lado todos os lances de oportunismo exigidos de Galileu para sobreviver num ambiente em que tanto se competia por protetores ricos e poderosos, como o duque da Toscana ou algum cardeal papabile.
O confronto de Galileu com a igreja romana não era uma luta do Bem contra o Mal, mas um momento tenso em que as forças contraditórias de uma civilização ficaram expostas. A pesquisa de Galileu e a estrutura da igreja de Roma eram aspectos contraditórios de uma realidade que não poderia ser cindida sem ser destruída. A ciência moderna era a irmã siamesa do Cristianismo. Mas o século XVII forneceu outros exemplos dessa tensão insolúvel:
“A pergunta sobre a eticidade da técnica, sobre o seu direito de colocar-se como modelo de comportamento humano, sobre sua capacidade de realizar o fim último da aventura humana, a salvação, apresenta-se no início do século XVII com o dualismo Caravaggio-Annibale Caracci e, pouco depois, com maior aspereza, com o dissídio entre Bernini e Borromini. Como o problema continua aberto e constitui, hoje, a espinha dorsal da angústia da “civilização tecnológica”, pode-se ver em que medida o século XVII, com suas contradições, foi o prólogo do drama histórico do mundo moderno.” (Giulio Carlo Argan, Imagem e Persuasão, p. 420).
|
Êxtase de Santa Teresa, de Bernini foto:Ludmila Ciuffi |
|
Roma: Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, Igreja de Santa Maria da Vitória |
|
Roma: Igreja de Sant'Agnese in Agone, de Borromini |
|
Roma: Basílica de San Giovanni in Laterano, reformada por Borromini |
II
Do ponto de vista histórico e sociológico, José Antonio Maravall forneceu uma visão abrangente das tensões do século XVII em A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica, publicado em 1975.
O Barroco, do ponto de vista de Maravall, não é um estilo artístico, mas a estrutura social e histórica de uma época em que a burguesia se retrai diante de uma nobreza que reivindica um poder que não se limita ao exercício das armas, levando à concentração fundiária e à pauperização das massas rurais. A própria Igreja assimila “esses modos de comportamento, decantados dos interesses aristocráticos, modos que, provavelmente, formaram o quadro menos cristão da Igreja de Roma ao longo de toda a sua história.” (A Cultura do Barroco, p. 88).
Desenvolveu-se então uma cultura conservadora e repressiva, que buscava a acomodação dos conflitos através da persuasão – por meio da retórica e das artes - dirigida às classes sociais subalternas, especialmente as massas que se aglomeravam nas grandes cidades que se tornaram capitais (Roma, Paris, Madrid, entre outras), centros administrativos de onde emanavam o poder e a autoridade, mas cujas populações sofriam as consequências da urbanização: criminalidade, solidão, agitação em função do anonimato que a cidade oferece, relaxamento dos costumes. Sem meios de canalizar o descontentamento e o conflito por meio da crítica e da livre expressão, ganham corpo as tendências místicas e as crendices fantásticas, os processos de bruxaria se multiplicam por toda a Europa: “A paixão pela extravagância desenvolve-se monstruosamente em povos que não tem acesso a uma crítica razoável da vida social” (idem, p. 357), confirmando a oitava tese de Marx contra Feuerbach: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis.”
A conclusão de Maravall é que a crise do século XVII, que delineou a estrutura social e histórica que denominamos Barroco, é o produto de uma modernização conservadora: “Eis aí como a sociedade do século XVII, mordendo o próprio rabo, revela-nos a razão de sua própria crise: um processo de modernização, contraditoriamente montado para preservar as estruturas herdadas.” (idem, p. 405).
|
Roma: cúpula da basílica de Santo Ambrósio e São Carlos, de Pietro da Cortona (1596-1669), ao fundo a cúpula da basílica de São Pedro, de Michelangelo e Giacomo della Porta (1532-1602) |
|
Roma: interior da Cúpula da Igreja de Gesù, de Giacomo Vignola (1507-1573) foto: Ludmila Ciuffi |
III
Maravall observa que “são homens tristes (...) esses que começam a ser vistos sobre o solo da Europa nos últimos lustros do século XVI, e que continuarão a ser encontrados até bem avançada a segunda metade do século seguinte.” (idem, p. 247). Um desses homens tristes foi o grande arquiteto Francesco Castello, dito Borromini, sobre o qual seu contemporâneo Filippo Baldinucci escreveu:
"Egli era stato solito di patir molto di umore malinconico, o, come dicevano alcuni dei suoi medesimi d'ipocondria, a cagione della quale infermità, congiunta alla continua speculazione nelle cose dell'arte sua, in processo di tempo egli si trovò sì profondato e fisso in un continuo pensare, che fuggiva al possibile la conversazione degli uomini standosene solo in casa, in nulla d'altro occupato, che nel continuo giro dei torbidi pensieri". (“Francesco Borromini” in Enciclopedia Italiana Treccani).
Nenhum artista da época sofreu tanto com os percalços dos juízos históricos como Borromini: há o homem amargurado que se ressentia com o sucesso do rival Bernini; há o alucinado que se comprazia em extravagâncias que repugnavam os árbitros do gosto neoclássico; há o gênio saturnino que queimou seus desenhos antes de suicidar-se; há o brilhante retórico que, segundo Paolo Borghesi "considera sua profissão um formidável instrumento de captação. Ele usa todos os meios para falar com seu interlocutor." (The Rome of Borromini, George Braziller, New York, 1968 p. VIII) e que quer libertar-se de "uma pureza autônoma que reduz as possibilidades comunicativas da arquitetura" (idem, p. 391); há o austero pesquisador das linhas curvas, das ilusões de perspectivas, da modelação dos espaços pela inflexão das superfícies, pelo uso dos elementos usualmente decorativos com finalidades narrativas e estruturais, que tanto impressiona arquitetos pós-modernos como Frank Gehry; enfim, o artista que teria definido a estética espacial do Barroco: “O espaço de Borromini é feito ‘artificialmente’ (...) Trata-se de um espaço contraído e adstringente, cheio de pontas, de arestas cortadas a faca, de estruturas dentadas, de forças contrapostas, de pressões externas: premente como o de Michelangelo, deformante como o de El Greco, mas ao mesmo tempo lúcido e desiludido como uma demonstração por absurdo.” (Giulio Carlo Argan, Imagem e Persuasão: ensaios sobre o Barroco, Companhia das Letras, 2004 p. 423)
Se na cultura do Barroco, segundo a lição de Maravall, o apelo à harmonia dos contrários é a máscara que procura ocultar as ameaças à ordem estabelecida, talvez seja o caso de ver na arquitetura de Borromini, com seu gosto pelas arestas e pelo espaço que se contrai, a própria exposição das tensões do mal-estar da civilização barroca.
|
Roma: torres e cúpula da Igreja de Sant'Agnese in Agone, de Borromini |
IV
O mal-estar começa pela própria desconfiança de Borromini em relação a Roma, cuja mundanidade choca o ascetismo do arquiteto lombardo. Além disso, em Roma, era demasiado tentador para um artista “invocar o álibi da história antiga e da natureza universal” (Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 422). A austeridade de Borromini é indissociável da sua pesquisa formal adversa aos cânones historicistas e naturalistas, que a tradição clássica e seus continuadores (como Bernini) endossavam. Como mostrou Argan, as soluções clássicas estavam vedadas a Borromini pelo seu próprio rigor: “... a lúcida e amarga constatação do fim do classicismo, a liberdade precária e ilusória que nasce da morte de uma cultura, da ruptura de uma tradição, esse sentimento de vazio, enfim, que é ao mesmo tempo tripúdio e angústia, ímpeto para o alto e vertigem de altura.” ( op. cit., p. 353)
Por essa consciência da crise da linguagem clássica, e evidentemente da promessa de conciliação dos conflitos que lhe era inerente, por meio do ideal da bela proporção natural, Borromini sempre foi fiel à sua admiração por Michelangelo, o grande artífice das forças em tensão explícita e da superação do passado, razão pela qual Borromini registrou, por intermédio de seu amigo e protetor Virgilio Spada:
“Peço a meus leitores (...), se lhes acontecer de achar que me afasto dos desenhos tais como são feitos comumente, de lembrarem-se desta frase de Michelangelo, príncipe dos arquitetos: quem segue os outros não os ultrapassa jamais, e estou certo de que nunca teria me devotado a esta profissão se fosse para ser um simples copista, mesmo que eu saiba bem que quando se inventam coisas novas, não se pode colher os frutos destes trabalhos senão tarde, como aconteceu com Michelangelo. Quando ele renovou a arquitetura da grande basílica de São Pedro, ele foi vilipendiado por suas novas formas e novos ornamentos, que seus inimigos reprovavam. A tal ponto que mais de uma vez tentaram privá-lo do cargo de arquiteto de São Pedro, mas em vão. E o tempo mostrou claramente que tudo que ele fez é digno de ser imitado e admirado. Que Deus esteja convosco.” (citado por Étienne Barlier, Francesco Borromini: le mystère et l’éclat, Presses Polytechniques et Universitaires Romandes, Lausanne, 2009 p.15).
Em Borromini, a busca do novo não pode ser identificada como gosto de novidades numa sociedade repressiva como aquela que Maravall descreveu. No arquiteto italiano, trata-se da consciência de que as formas do passado perderam sua exemplaridade diante da caducidade permanente de todas as coisas. Elas são apenas recordações de um tempo que se desfez. O novo é o testemunho de que o que se foi está morto: “O caráter fúnebre que essa arquitetura conserva, mesmo quando é mais equilibrada e luminosa, tem um sentido quase moral de dança macabra.” (Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 353)
|
Roma: Interior da Igreja de São Carlos das Quatro Fontes, de Borromini |
Preso ainda às formas morais e ascéticas assumidas por uma existência comprometida com o rigor estético de Michelangelo e com o rigor religioso do Concílio de Trento, movia-se uma inquietude e uma insatisfação permanentes, que se tornarão a marca da condição fáustica, familiar a todo mundo burguês desde o século XIX: a “modernidade” cuja tragédia e cuja comédia foram descritas por Freud, por Nietzsche e por Marx.
V
Jovem noviço em Roma, Guarino Guarini conheceu Borromini, cujas lições formais ele retomou na sua carreira de sacerdote, arquiteto, matemático e físico (a ciência e o Cristianismo eram irmãos siameses). Em Turim, ele foi encarregado da construção da Capela do Santo Sudário e do Palácio Carignano, perto do qual Nietzsche abraçou um cavalo aos prantos em janeiro de 1889.
|
Turim: Palácio Carignano, de Guarino Guarini (1624-1683) |
Eis-me de volta ao ponto de partida desta viagem. É justo. Foi aqui em Turim que Xavier de Maistre escreveu a sua Viagem ao redor de meu quarto, em 1794. É o que eu pensava colhendo o chocolate no fundo da minha taça no Café Al Bicerin, depois de ter sentido o gelo na alma na Capela do Sudário e de ter visitado a casa de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz.
O percurso de nossa viagem nunca é maior do que o perímetro das nossas obsessões. Há muita coisa que não vi em Roma porque não podia enxergá-las. Talvez seja preciso multiplicar minhas obsessões para que os olhos possam ver o que não viram. Cada Borromini que eu deixei para a próxima visita, porque estava ocupado demais admirando Bernini, me pesa como uma culpa, mas sempre desejarei voltar para a ponte do Castelo de Sant’Angelo.
Então, a questão não é quão longe eu fui, mas sim se eu fui fiel à minha imobilidade, pois desejo muito que as palavras que Eugenio Montale dedicou à sua falecida esposa também possam valer para minha experiência:
Tu sola sapevi che il motto/ non è diverso dalla stasi./ che il vuoto è il pieno e il sereno/ è la più diffusa delle nubi./ Cosi meglio intendo il tuo lungo viaggio
Tu, apenas tu, sabias que o movimento/ Não difere da estase,/ Que o vazio é o pleno e o céu limpo/ A mais difusa das nuvens./ Dessa forma compreendo melhor tua longa viagem
(Satura, Xenia I, 14 - tradução Geraldo Holanda Cavalcanti)
******
|
Roma: Fonte da Basilica de Santa Sabina |
Giulio Carlo Argan, Imagem e Persuasão: ensaios sobre o Barroco, Companhia das Letras | Étienne Barlier, Francesco Borromini: le mystère et l’éclat, Presses Polytechniques et Universitaires Romandes | José Antonio Maravall, A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica, Edusp | Paolo Portoghesi, The Rome of Borromini, George Braziller | Enciclopedia Italiana Treccani