terça-feira, 22 de outubro de 2013

A claraboia e o holofote #14





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


Seção II - Proletários e Comunistas



“Qual a relação dos comunistas com os proletários em geral?
Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários.
Não tem interesses diferentes dos interesses do proletariado em geral.
Não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretendem moldar o movimento operário.
Os comunistas se distinguem dos outros partidos somente em dois pontos: 1) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns dos proletários, independentemente da nacionalidade; 2) Nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto.
Na prática, os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente tem sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do movimento proletário.
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição do proletariado como classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.
As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em ideias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo.
São apenas a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos.”


******

O problema

Durante a vida de Marx e Engels, os comunistas conheceram várias formas de associação. Antes de 1848, reuniam-se em pequenos grupos como a Liga dos Comunistas, para a qual foi escrito o Manifesto; nos anos de 1860, fundou-se a Associação Internacional dos Trabalhadores (a 1ª Internacional); na década seguinte, pouco depois da breve experiência revolucionária da Comuna de Paris, surgiram os partidos social-democratas da Áustria e da Alemanha; na velhice de Engels, organizou-se a Internacional dos partidos de esquerda, tendo à frente a poderosa social-democracia alemã (a 2ª Internacional).  

No entanto, embora o preâmbulo do Manifesto declare a necessidade de tornar públicos os objetivos dos comunistas como partido (“É tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido ao conto do espectro do comunismo”), Marx e Engels jamais fundaram um partido comunista. Na verdade, não houve nenhuma associação que tivesse oficialmente esse nome até 1918, quando o Partido Operário Social-Democrata da Rússia (bolchevique) se tornou o Partido Comunista da Rússia. 

Por que Marx e Engels não fundaram um partido comunista? 

Descontadas as condições repressivas nos anos de 1850, que levaram ao refluxo da agitação revolucionária anterior, há várias razões pelas quais não houve um partido comunista no século XIX.

A primeira é que Marx e de Engels se inseriam nas associações existentes – fundadas por artesãos ou por trabalhadores -, procurando assumir posições de influência para dirigir e canalizar as forças de um movimento em curso. De acordo com a parte final da seção I, Marx e Engels se viam como ideólogos dissidentes da burguesia, que aportavam esclarecimento político à classe trabalhadora. Não poderiam se sobrepor ao movimento em andamento: como elementos provindos da burguesia, eles não deveriam usurpar as tarefas organizadoras do próprio proletariado. Ora, a fundação de um partido comunista seria justamente uma usurpação desse tipo.

A segunda razão é Marx e Engels não queriam ser confundidos com os inventores de doutrinas comunistas e de sistemas salvadores. É muito bem conhecido o fato de que Marx jamais quis ser marxista, isto é, um partidário de uma doutrina. Seu objetivo era ser um homem de ciência que desvenda a história. Um partido comunista fundado por Marx e Engels seria inevitavelmente visto como expressão voluntarista e subjetiva do ponto de vista particular de seus fundadores. E, como Marx viu muito bem na época da 1ª Internacional, o programa de uma associação ampla dos trabalhadores não poderia ser unicamente comunista: era preciso satisfazer as alas moderadas e, ao mesmo tempo, não exasperar os radicais blanquistas, proudhonianos e bakuninianos. Os comunistas eram apenas um grupo entre outros, sem massa suficiente para formar um partido à parte.

A terceira razão é que era indiferente que o proletariado se constituísse em partido ou em outras formas de associação, desde que se organizasse de forma revolucionária: essa era a preocupação prioritária de Marx e Engels. 

Todavia, às vésperas da agitação de 1848, havia ainda uma razão decisiva para que Marx e Engels não fundassem um partido comunista: esse partido já existia, ao menos do ponto de vista dos autores do Manifesto. O Manifesto do Partido Comunista seria a primeira exposição pública desse partido.

É claro que não se tratava de um partido de aparelho, capaz de mobilização de massa, como os partidos social-democratas no final do século, muito menos um partido de vanguarda revolucionária como o partido bolchevique. Tampouco Marx e Engels pensavam nos pequenos grupos conspiratórios carbonários, dos quais participavam Mazzini ou Auguste Blanqui, herdeiros do jacobinismo radical de Babeuf.

O que Marx e Engels chamavam de “partido comunista” era, na verdade, o movimento político que se desenvolvia como resultado do movimento proletário. O “partido comunista” de 1848 era simplesmente a fração mais consciente e revolucionária do proletariado internacional. As propostas do "partido comunista" expressavam o movimento histórico - espontâneo e necessário - do proletariado (tal como era elucidado pelos ideólogos dissidentes da burguesia). Mas, ao mesmo tempo que era produto do processo histórico, o "partido comunista" pretendia dirigir o proletariado para a realização desse processo histórico: a supressão da burguesia. Esse caráter revolucionário era essencial, pois definia o “partido comunista” de 1848 de três maneiras: 

- seus princípios eram os mesmo da única classe revolucionária: o proletariado internacional, tal como compreendidos pela sua fração mais consciente. Esses princípios eram expressão do processo histórico e não produto de deliberação ou invenção. 

- seu objetivo era a abolição da propriedade privada burguesa, isto é, do fundamento jurídico e econômico do modo de produção capitalista.

- seu método de ação era a promoção da luta de classes de maneira declarada: por isso rejeitava a política institucional burguesa de negociação parlamentar, assim como rejeitava as associações conspiratórias e insurrecionais, sem apoio das massas proletárias, uma vez que o partido consistiria justamente na organização dos trabalhadores como classe consciente da sua posição na luta de classes.

Esse “partido comunista” não era somente um reflexo do entusiasmo revolucionário de 1848, ele era a práxis que correspondia clara e diretamente à teoria da história como luta de classes (que é a premissa mesma do Manifesto). Acontece que os desenvolvimentos posteriores da teoria de Marx o levaram a relegar a luta de classe às obras conjunturais (como o 18 Brumário), enquanto as suas investigações teóricas se concentravam nas estruturas complexas e contraditórias do capital como Sujeito Automático. O resultado é que o nexo entre a teoria e a práxis, entre lógica e política (para usar a expressão de Ruy Fausto) ficou obscurecido pela hipertrofia teórica, que requer exegeses intermináveis e irreconciliáveis por parte dos especialistas em reconstruções de Marx. Como resultado, a discussão política nas obras conjunturais, nos artigos jornalísticos, nas cartas a Kugelmann e nas comunicações às associações de trabalhadores fazem o papel de pobres barracos provisórios ao lado da catedral gótica, que é Das Kapital, e do labirinto de Creta, que são os Grundrisse

Assim, apesar da sofisticação teórica posterior, a maior parte do debate político dentro do movimento comunista ficou preso às condições ainda rudimentares expostas no Manifesto do Partido Comunista. O que pretendo mostrar nos próximos capítulos deste folhetim filosófico é que as vicissitudes do comunismo tem suas raízes nas condições imaturas do “partido comunista” de 1848, cujos princípios, objetivos e métodos de ação foram abandonados pela esquerda, sem ter sido realmente superados por uma análise política à altura das conquistas teóricas de Marx. 







Nenhum comentário:

Postar um comentário