Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Carta a Neylor dos Santos Ferreira
Neylor,
Da última vez, eu lhe disse (A claraboia e o holofote #9) que o que mais me interessa em Marx é a tenacidade de seu alpinismo teórico. Na minha carta ao Murilo sobre a finalidade da filosofia (Para que serve a filosofia), eu defendi que a tarefa do filósofo consiste em subir a montanha para conseguir uma perspectiva mais ampla e uma compreensão maior do território. Às vezes eu uso a palavra “totalidade”, mas na boca de alguém como eu, cético por formação e por inclinação, trata-se apenas de um ideal regulador: o não se contentar com o fragmento, sem ter feito o esforço de alcançar a completude. Mas, voltando ao alpinismo, ocorre que qualquer tentativa de conquista do topo depende do reconhecimento atento das asperezas do terreno. Em vista disso é que escolhemos o percurso possível - adequadamente conhecido pela palavra grega “método” - que nunca é garantia de êxito nem tampouco atalho que nos permita falar das coisas sem a labuta de pensar nelas.
Com Marx, todavia, a situação sempre foi mais complicada porque sua ambição era enorme: a conquista teórica da montanha do capital deveria ser, em si mesma, a ferramenta prática de transformação social. Seria como se Darwin, ao escrever The Ascent of Man, pretendesse modificar a própria espécie humana.
A unidade entre teoria e prática é uma ambição que foi submetida a toda sorte de vexames desde 1848. Os êxitos políticos ou trabalhistas da Internacional social-democrata e da Internacional bolchevique foram obtidos por um empobrecimento teórico que é mais do que uma traição, ao passo que os esforços do marxismo crítico foram desbaratados pela repressão (Rosa Luxemburgo boiando no canal Landwehr; Antonio Gramsci fenecendo no cárcere de Turi) ou caíram na irrelevância do marxismo acadêmico, tão arguto na exegese dos textos quanto nulo no seu alcance político e social.
É claro que isso não é exatamente culpa dos marxistas acadêmicos. Assim como o liberalismo britânico garante o direito de qualquer um discursar à vontade no speaker’s corner do Hyde Park ao preço de ser ouvido apenas por alguns excêntricos e transeuntes desocupados, as democracias liberais permitem que as universidades tenham liberdade de ensino e de pesquisa, ao custo de neutralizar os vínculos sociais de qualquer teoria crítica (é o conhecido regime de dedicação integral... trabalho social não conta no currículo Lattes).
É claro que isso não é exatamente culpa dos marxistas acadêmicos. Assim como o liberalismo britânico garante o direito de qualquer um discursar à vontade no speaker’s corner do Hyde Park ao preço de ser ouvido apenas por alguns excêntricos e transeuntes desocupados, as democracias liberais permitem que as universidades tenham liberdade de ensino e de pesquisa, ao custo de neutralizar os vínculos sociais de qualquer teoria crítica (é o conhecido regime de dedicação integral... trabalho social não conta no currículo Lattes).
Todavia, cada vez mais acredito que o problema já estava inscrito na obra teórica de Marx. Para começar, devemos admitir que a complexidade d’O Capital não é garantia de verdade no plano teórico, caso contrário a Suma Teológica seria, por igual motivo, prova da existência de Deus e da verdade da Igreja Católica. E mesmo supondo que a exposição de Marx seja uma descrição adequada do processo, eu me pergunto qual práxis poderia corresponder aos esquemas de reprodução ampliada?
Só para ficar com a prata da casa uspiana, Ruy Fausto que, durante vinte anos, destrinchou os nexos entre a lógica dialética e a política em Marx, deixou de ser marxista no meio do caminho. José Arthur Giannotti, que andava por um caminho parecido (ou, na versão do Ruy, pelo mesmo caminho) passou a ser reserva intelectual do tucanato paulista. Paulo Arantes e Chico de Oliveira, que tiveram a teimosia de não recuar - admirável e espantosa nos atuais tempos líquidos -, estão mais ou menos marginalizados. Já de algum tempo, o Paulo é um marxista de pizzaria – o que não é nenhum demérito se a pizza for boa.
Só para ficar com a prata da casa uspiana, Ruy Fausto que, durante vinte anos, destrinchou os nexos entre a lógica dialética e a política em Marx, deixou de ser marxista no meio do caminho. José Arthur Giannotti, que andava por um caminho parecido (ou, na versão do Ruy, pelo mesmo caminho) passou a ser reserva intelectual do tucanato paulista. Paulo Arantes e Chico de Oliveira, que tiveram a teimosia de não recuar - admirável e espantosa nos atuais tempos líquidos -, estão mais ou menos marginalizados. Já de algum tempo, o Paulo é um marxista de pizzaria – o que não é nenhum demérito se a pizza for boa.
Por que ainda vale a pena ler Marx? Só posso falar por mim. Minha resposta é que eu sei bem que a montanha que ele tentou escalar não é imaginária: as ruínas geradas pela contradição em processo do capital estão bem diante de nossos olhos, ganhando volume e crescendo até ocultar o horizonte. Chegamos ao ponto de não vermos quase nada depois delas.
Então, para os covardes e fracos como eu, que nunca se arriscarão a subir a montanha, o negócio é estudar o percurso de quem teve coragem e tentar aprender alguma coisa do relato do alpinista maior, examinando os seus tropeços e passos em falso. Reafirmo o que já lhe disse: para os meus modestos propósitos, os erros de Marx são tão instrutivos quanto os seus acertos.
É por isso, que eu exponho aqui minha leitura da seção propriamente política do Manifesto do Partido Comunista. Depois dos lances audaciosos da primeira seção, com seus flashbacks vertiginosos, seus fantasmas e feiticeiros, agora vem a hora de trocar o panorama teórico pela moeda miúda e corrente da prática política imediata na agitada temporada de 1848.
É importante ressaltar que esta minha leitura não está pronta. Não é a exposição de um percurso feito, como os capítulos fechados de uma tese universitária. A coisa está em movimento e eu mesmo estou aprendendo a ler o texto de Marx, depois de tê-lo relido tantas vezes. As intervenções e críticas serão bem vindas. Não sou marxista e estou longe da academia desde o século passado. Sou apenas um professor de cursinho que, nas horas vagas, lê e escreve para tentar entender de onde vem o nada que corrói tudo o que existe.
Um grande abraço!
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