terça-feira, 26 de novembro de 2013

A claraboia e o holofote #16





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



As lições de 48 (Parte I)


1. Dias de 1848 na França

Luís Felipe, que chegara ao trono alçado pelas esperanças revolucionárias de 1830; Luís Felipe, o homem da conciliação; Luís Felipe, o rei burguês, tinha seus dias contados no começo de 1848. A difícil situação econômica que se arrastava desde 1845, a sucessão de escândalos políticos e financeiros, a intransigência arrogante do ministro Guizot e uma política externa submissa aos interesses britânicos solaparam o apoio ao rei, mesmo nos meios burgueses.

A oposição política se organizara em torno da coalizão formada pelos monarquistas reformistas – a “oposição dinástica”, de Odilon Barrot -, e pelos republicanos do Partido Radical, de Ledru-Rollin. Desde o final de 1847, a coalizão convocava banquetes públicos nas províncias: um expediente para burlar a proibição de manifestações contra o governo. O banquete culminante se realizaria em Paris, no dia 22 de fevereiro de 1848, e deveria reunir uma multidão imensa.

Quando, na última hora, veio a proibição, os líderes republicanos conclamaram o povo a sair às ruas. A própria Guarda Nacional aderiu aos manifestantes. Rapidamente, o rei exonerou o impopularíssimo ministro Guizot, mas de nada adiantou. A agitação se agravou depois que soldados nervosos da Guarda Nacional dispararam contra manifestantes no bulevar dos Capuchinhos, matando dezenas de pessoas.

Incapaz de fazer face à pressão popular, no dia 24, o rei abdicou e fugiu para a Inglaterra. Um governo provisório foi formado pelos homens do jornal republicano Le National, como Lamartine e Ledru-Rollin, e do jornal socialista La Réforme, como Louis Blanc, Albert, Flocon e Marrast.

Tendo como figura pública mais proeminente o poeta romântico Lamartine, o governo provisório suprimiu a pena de morte e a escravidão, assim como reconheceu a liberdade de reunião e de imprensa. Também convocou eleições – por sufrágio universal masculino - para uma assembleia constituinte. Mas o novo governo não se pretendia apenas republicano: ele também se queria democrático e social. Era preciso satisfazer as demandas da classe trabalhadora através de uma organização estatal do trabalho, como defendia o socialista Louis Blanc, que passou a presidir a recém-criada Comissão do Trabalho, sediada no Palácio Luxemburgo.  O direito ao trabalho foi reconhecido, porém era premente oferecer emprego à multidão de desempregados que a crise econômica havia gerado. Marie, ministro das Obras Públicas, instituiu as oficinas nacionais, que eram frentes de trabalho para manutenção das vias públicas, muito diferentes das unidades de produção sob a tutela do Estado preconizadas por Louis Blanc.

Extremamente mal concebidas, as oficinas nacionais não resolviam o problema do desemprego. As vagas eram insuficientes para a massa que afluía das províncias e até de países vizinhos, os salários eram extremamente baixos e as vagas disponíveis eram todas para tarefas braçais. A população pobre estava inquieta. Formavam-se clubes de oposição. Circulavam panfletos e proclamações iradas. A popularidade do governo provisório se esvaiu rapidamente.

Em meados de março, irromperam distúrbios e protestos populares. Os líderes da extrema-esquerda temiam que a eleição da assembleia constituinte fortalecesse os conservadores das províncias e anulasse a democracia social instaurada em fevereiro. Para ganhar tempo e organizar melhor a esquerda, os manifestantes pediram que as eleições fossem adiadas para 23 de abril. O governo cedeu. No entanto, novas manifestações em abril pedindo mais um adiamento das eleições encontraram o governo inflexível.

Os temores da extrema-esquerda se tornaram realidade: uma maioria de conservadores foi eleita nas províncias. O refluxo da revolução ficou evidente também na composição do poder executivo. No dia 10 de maio, o governo provisório transmitiu sua autoridade a uma Comissão Executiva de cinco membros, dos quais o único de esquerda era Ledru-Rollin, que só foi aceito por insistência de Lamartine.

A extrema-esquerda estava cindida e desorganizada. No 15 de maio, uma manifestação popular em apoio à independência da Polônia, resultou – talvez por instigação de provocadores a serviço da polícia - na invasão do Palácio Bourbon, onde se reunia a assembleia constituinte. Os líderes esquerdistas subiram à tribuna para discursar. Muitos deputados entraram em pânico. Lamartine desapareceu. Enunciaram-se demandas populares, mas os líderes não tinham propostas claras. Proclamou-se um novo governo provisório, a ser instalado no Hôtel de Ville pelos representantes dos trabalhadores. A Guarda Nacional interveio. Os principais líderes da extrema-esquerda - Albert, Raspail, Blanqui e Barbès - foram presos. Os conservadores assumiram as rédeas e, no dia seguinte, dissolveram a comissão de Luxemburgo. Os clubes de extrema esquerda foram fechados.

O clima em Paris era tenso.  Havia boatos de que os trabalhadores fariam uma demonstração de massa. A resposta dos conservadores foi discutir, no 21 de junho, o fechamento das oficinas nacionais, tidas como sementeiras de agitação, dispendiosas e contrárias ao liberalismo econômico.  A comissão do conde de Falloux decretou que os jovens trabalhadores entre 17 e 25 anos deveriam entrar no exército; quanto aos demais, aqueles que fossem migrantes das províncias deveriam sair de Paris e se reunir em Sologne, supostamente para drenar pântanos insalubres. Os trabalhadores estavam convencidos de que a intenção do governo era mandá-los para a morte.

Quando o decreto oficial apareceu em Le Moniteur no dia 22 de junho, uma delegação de trabalhadores foi protestar junto à Comissão Executiva. O ministro Marie respondeu com ameaças. No dia seguinte, a agitação dos trabalhadores culminou numa grande reunião na praça da Bastilha. Um militante socialista chamado Pujol, aos gritos de “liberdade ou morte”, conclamou a multidão a erguer barricadas. Temerosa, a assembleia chamou o general Cavaignac para organizar a defesa da cidade.

As barricadas impediam a circulação nas regiões populares da cidade – especialmente na área leste, para além da Bastilha, na rua do Faubourg Saint-Antoine, e na margem esquerda, ao longo da rua Saint-Jacques e em torno do Panteão. Havia apenas pequenas passagens para os moradores e para o insurgentes, que eram trabalhadores braçais, artesãos, pequenos lojistas, funcionários das ferrovias e operários das fábricas, que enfrentavam a ameaça da miséria.

No dia 23 de junho, a assembleia constituinte decretou estado de sítio e fez do general Cavaignac chefe do governo com poderes ditatoriais.  A Comissão Executiva, último remanescente legal da revolução de fevereiro, foi desfeita.

Cavaignac mantinha suas tropas no centro de Paris, dispersando-as em grupos para as várias áreas em que fossem necessárias. As tropas atiravam nas barricadas, mas os insurgentes se defendiam com valentia. Muitos soldados morreram. O próprio arcebispo de Paris, Monsenhor Affre, foi atingido por um tiro fatal quando tentava negociar o cessar-fogo. Para os conservadores, ele se tornou mártir da ordem e do espírito cristão diante da barbárie sanguinária dos pobres.

Não se sabe quantos eram os insurgentes, mas acredita-se que eles superavam o número de 40 mil soldados que o general Cavaignac tinha à disposição. Isso explica em parte a violência dos meios usados pelo exército, que disparou bombas incendiárias. Os bairros populares foram queimados. No dia 26 estava tudo acabado. Apesar dos preparativos feitos às vésperas do confronto e apesar dos arsenais saqueados das casernas, logo os insurgentes ficaram sem munição. Milhares de trabalhadores foram fuzilados pelas ruas depois que a revolta tinha acabado. Outros milhares foram presos e deportados. Os números serão sempre incertos.

O General Cavaignac depôs seus poderes ditatoriais no dia 28 de junho, mas a popularidade decorrente de seu êxito levou a assembleia a nomeá-lo primeiro-ministro. O estado de sítio durou até outubro.  O partido da Ordem se fortaleceu, mas não em benefício das duas casas dinásticas que disputavam o poder. Não houve uma restauração dos Bourbon, como queriam os legitimistas, nem a volta dos Orleans. O sobrinho de Bonaparte, o príncipe Luís Napoleão, que fora eleito deputado constituinte, conquistou um séquito de monarquistas, líderes católicos e camponeses, todos saudosos da estabilidade política e econômica do Império, assim como o apoio de muitos trabalhadores ressentidos com a traição da burguesia republicana moderada. Ele foi o vitorioso nas eleições de dezembro de 1848 e tornou-se o presidente Luís Napoleão.

Em 13 de junho do ano seguinte, a esquerda republicana na assembleia constituinte – também conhecida como a Montanha – decidiu organizar uma marcha de protesto contra a decisão do presidente Luís Napoleão de enviar tropas francesas para derrubar o governo republicano de Mazzini em Roma. Tratava-se de uma ação que violava o artigo da Constituição que proibia a República Francesa de atentar contra a liberdade de outras nações. A passeata republicana, com pouca adesão popular, se transformou numa tentativa de revolução, que foi logo contida e resultou na fuga dos líderes republicanos de esquerda (uma esquerda moderada, já que a extrema-esquerda tinha sido presa em maio do ano anterior). Os que não fugiram, foram presos.  Agora estava aberto o caminho para a reação que definiria o cenário político da década de 1850. O próximo passo seria o 18 Brumário de Luís Bonaparte.


2. Quatro visões sobre as jornadas de junho


a. Um quadro sinótico didático e politicamente cauteloso

Roger Price, A concise history of France, Cambridge University Press, 2005

The Parisian left was to be decapitated for a generation. Whatever the precise sociological character of the conflict, and despite the fact that workers fought on both sides, contemporaries saw it as one between bourgeoisie and people, as a form of class struggle. According to de Tocqueville the insurrection was a ‘brutal, blind but powerful attempt by the workers to escape from the necessities of their condition, which had been described to them as an illegitimate oppression… It was this mixture of cupidity and false theory which rendered the insurrection so formidable… These poor people had been assured that the well-being of the rich was in some way based upon theft from themselves.’ The conservative press depicted the events as an outbreak of mindless savagery, as a rising fought for “pillage and rape”. Their initial cry of triumph at the ‘victory gained by the cause of order’, of the family, of humanity, of civilization’ was mixed with fear, however, and was soon followed by demands for more thorough repression. Political activity was severely restricted.  (p. 204)



b. O relato clássico da historiografia marxista: a insurreição de junho foi um momento agudo da luta de classes; a derrota foi resultado das condições imaturas do proletariado.

E.J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, London, 1977

From the moment the barricades went up in Paris, all moderate liberals (and, as Cavour observed, a fair proportion of radicals) were potential conservatives. As moderate opinion more or less rapidly changed sides or dropped out, the workers, the intransigents among the democratic radicals, were left isolated or, what was even more fatal, to face a union of conservatives and formerly moderate forces with the old regimes: a ‘party of order’, as the French called it. Eighteen forty-eight failed because it turned out that the decisive confrontation was not between the old regimes and the united ‘forces of progress’, but between ‘order’ and ‘social revolution’. Its crucial confrontation was not that of Paris in February but that of Paris of June, when the workers, manoeuvred into isolated insurrection, were defeated and massacred. They fought and died hard. About 1500 fell in the street-fighting – some two-thirds of them on the government side. It is characteristic of the ferocity of the hatred of the rich for the poor that some thousand were slaughtered after defeat, while another twelve thousand were arrested, mostly to be deported to Algerian labour camps. (p. 30)
As for the laboring poor, they lacked the organization, the maturity, the leadership, perhaps most of all the historical conjuncture, to provide a political alternative. Strong enough to make the prospect of social revolution look real and menacing, they were too weak to do more than frighten their enemies. Their forces were disproportionately effective, in so far as they were concentrated in hungry masses in the politically most sensitive spots, the large and especially the capital cities. This concealed some substantial weakness: in the first place, their numerical deficiency – they were not always even a majority in the cities, which themselves generally included only a modest minority of the population – and in the second place, their political and ideological maturity. The most politically conscious and activist stratum among them consisted of the pre-industrial artisans. (…) The poor and unskilled in the cities and, outside Britain, the industrial and mining proletariat as a whole, had hardly any developed political ideology as yet. (p. 35)
There was to be no second edition of 1848 in western and central Europe. The working class, as he soon recognized, would have to follow a different road. (p. 37)



c. Uma defesa do ponto de vista republicano: Junho foi, de fato, uma batalha de classes sociais, mas a burguesia defendia as instituições da República e não a opressão do proletariado.

Maurice Agulhon, The Republican Experiment 1848-1852, Cambridge University Press, 1993  
(tradução de 1848 ou l’apprentissage de la République 1848-1852, Seuil, 1972)

The spontaneity of the worker’s revolt, now known as the ‘June days’, was in fact its most striking characteristic. Despite Pujol’s abstract and romantic cry, the motivation behind it was starkly social: workers reduced to unemployment by the crisis, and thereafter dependent for their livehood upon public funds, found themselves literally driven to despair when those funds were abolished. It is with good reason that history retains the cry uttered by an anonymous worker in the place du Panthéon (addressed to Arago while he was attempting to reason with a crowd on 22 June): ‘Ah! Monsier Arago, you have never been hungry!’ Although a few militants of minor reputation, such as Pujol, emerged, there was virtually no political leadership. The organizational efforts made during the weeks immediately preceding by no means offset the effects of the imprisonment, on 15 May, of the better-known leaders of the old secret societies and of the clubs. The June days, more than any other period before or since in French history, remain a class battle pure and simple. It was certainly no mere chance that Marx and Engels, following the developments of the revolution in France with the most rapt attention, now roughed out the basis of their theory that the class struggle was the most profound historical reality of all.
But before the June days unconsciously became the source of that grandiose extrapolation, much blood was to flow.
(…)
Another reason for the bloodshed was the equally impressive determination evinced in the ‘bourgeois” camp. In those days the ideals of order, property and liberty still retained a freshness and brilliance that they were later to lose. They were credited with a value that was absolute; it was only much later that this was gradually perceived to be no more than relative. (…) Furthermore, even in the camp of the worker’s enemies there were plenty of men who believed passionately in the Republic. Now, for the ordinary republican citizen, unaware of the manoeuvers and provocations of men like Marrast and Falloux, only one thing was abundantly clear: a decision about which there was nothing irregular, emanating from powers freely elected by universal suffrage, was being contested by rebels. They were just as shocked by this disobedience as they would have been (and were to be) by a military coup d´État. The final phrase in the official communiqué which was soon to announce victory to the departments (‘Order has triumphed over Anarchy, Long live the Republic’) was not nearly as hypocritical or cynical as were similar phrases used in 1871 or at later dates.
This makes it easy to understand the unanimous resolution of the Assembly and the fact that were many loyal democrats who agreed to resist the workers. (pp. 56-57)



d. Um esforço marxista-benjaminiano de recuperar o caráter único dos massacres de Junho, como evento traumático recalcado da modernidade.

Dolf Oehler, O Velho mundo desce aos infernos, Cia das Letras, 1999

A respeito das jornadas de junho, “alguns poderiam supor que se trata de impressões momentâneas dos contemporâneos e que, de uma distância maior, o acontecimento teria sido medido com outros critérios. Esse não é ocaso, porém, a menos que se perca totalmente a memória das jornadas de junho de 1848: essa data-chave da modernidade só perde em relevância quando recalcada. Donoso Cortés, o conservador espanhol que Carl Schmitt quis reabilitar como um dos mais lúcidos pensadores da história, um dos grandes homens “mantidos em silêncio no século XIX”, qualificou a batalha de Junho, num discurso que se tornou célebre diante do Parlamento de Madrid, em janeiro de 1849, como a mais sangrenta de que os séculos já tiveram notícia no interior dos muros de uma cidade. No mesmo ano, Alfred Meissner, jovem alemão de Praga, define ‘aquela monstruosoa batalha do proletariado’ como o ‘maior e mais imponente acontecimento da nova era’.  O liberal Alexis de Tocqueville, em seus Souvenirs, qualifica a insurreição de junho como “a maior e mais singular que ocorreu em nossa história, e talvez em qualquer outra’. Dez anos mais tarde, em Les Misérables, Victor Hugo sentencia que junho foi “a maior guerra de rua vista pela história’, ‘um fato à parte, e quase impossível de classificar na filosofia da história’. Os romancistas republicanos Erckmann-Chatrian julgam a batalha de junho ‘mil vezes mais terrível do que a de Waterloo’, e ‘Tomaso di Lampedusa apazigua o herói de seu Gattopardo, pouco antes de estourar a revolução siciliana, com a ideia de que todas as revoluções logo se transformam em comédia e que, mesmo na França, ‘com ressalva de junho de 1848’, no fundo nunca se deu nada de sério. Herzen, Baudelaire e Flaubert – e também Heine – não economizam superlativos (...)
Não é exagero algum afirmar que a repressão sangrenta do verão de 1848 influenciou a evolução da sociedade francesa até a Quinta República, e isso não a despeito, mas justamente porque foi recalcada e nunca trabalhada teoricamente. Além disso, essa repressão influiu – para muito além das fronteiras da França – na formação da teoria e da ideologia tanto burguesa quanto socialistas, e marca, finalmente um ponto de inflexão decisivo da literatura moderna. (p. 29-31)


3.  Marx e a revolução de junho

Em Colônia, onde chegara em março, Marx recebia avidamente as notícias de Paris e comentava-as nos artigos da Nova Gazeta Renana. A edição de 29 de junho de 1848 contém um artigo dedicado à “revolução de junho”.

Para Marx, junho não foi um acidente conjuntural, mas a revelação de uma cisão que permanecia oculta sob as esperanças despertadas em fevereiro:

"O triunfo momentâneo da força brutal foi pago pela aniquilação de todas as ilusões e quimeras da revolução de fevereiro, pela desagregação completa do partido dos velhos republicanos, pela cisão da nação francesa em duas nações, a nação dos possuidores e a nação dos trabalhadores." (“A revolução de junho”, 29 de junho 1848 Neue Rheinische Zeitung)

No artigo de Marx, tudo o que havia de positivo em fevereiro revelou seu aspecto negativo em junho. O poético se tornou prosaico, as declarações plenas de sentimentalismo deram lugar às ações mais brutais; a retórica cedeu à realidade; as máscaras caíram:

“Os fogos de artifício de Lamartine se transformaram nas bombas incendiárias de Cavaignac.

A fraternidade, essa fraternidade das classes opostos das quais uma explora a outra, essa fraternidade proclamada em fevereiro, escrita com maiúsculas sobre a fronte de Paris, sobre cada prisão, sobre cada caserna – sua expressão verdadeira, autêntica e prosaica é a guerra civil, a guerra civil na sua forma mais apavorante, a guerra do trabalho e do capital. Essa fraternidade ardeu diante de todas as janelas de Paris na noite de 25 de junho, quando a Paris da burguesia se iluminava ao passo que a Paris do proletariado queimava, sangrava e gemia até o esgotamento.

A revolução de fevereiro foi a bela revolução, a revolução da simpatia geral, uma vez que todas as contradições (entre a burguesia e o povo) que eclodiram contra a realeza não tinham ainda se desenvolvido e continuavam adormecidas, unidas, lado a lado, já que a luta social que formava o pano de fundo dessa revolução tinha atingido apenas uma existência inconsistente, uma existência puramente verbal. A revolução de junho é feia; é a revolução repulsiva, porque a realidade tomou o lugar das palavras, porque a República desmascarou a cabeça do monstro arrancando-lhe a coroa que a protegia e a escondia.” (op. cit.)

Junho foi, portanto, o momento em que a luta de classes se tornou explícita, em que as contradições ganharam gume. O momento em que ficou evidente que a luta social dos trabalhadores ameaçava a ordem burguesa, que se mantinha a despeito de todas a variedade de formas políticas que se alternaram na França desde 1789:

“Nenhuma das numerosas revoluções da burguesia francesa desde 1789 tinha sido jamais um atentado contra a Ordem, porque todas deixavam subsistir a dominação de classe, a escravidão dos trabalhadores, a ordem burguesa, a despeito da mudança frequente da forma política desse dominação e dessa escravidão. Junho tocou nessa ordem. Desgraçado seja junho!” (op. cit.)

Os massacres de junho mostraram que a questão política da forma de Estado não pode ser separada da questão social da luta de classes. A luta de classes não pode ser eliminada por declarações retóricas de unidade e fraternidade, isto é, ele não pode ser resolvida no plano simbólico ou imaginário.

"Os conflitos que nascem das condições da própria sociedade burguesa, é preciso conduzi-los até o fim; não se pode eliminá-los por meio da imaginação. A melhor forma de Estado é aquela em que as contradições sociais não são esfumadas, não são estranguladas pela força, isto e, artificialmente e, assim, apenas em aparência. A melhor forma de governo é aquele em que as contradições entram em luta aberta e encontram deste modo sua solução." (op. cit.)

Não há proclamações de ordem ou de fraternidade que não sejam expressões disfarçadas de posições no interior da própria luta de classes. Não há reivindicações políticas que não sejam reivindicações de classe ou de fração de classe, que não sejam meios de obter vantagens no jogo de forças conflitantes. A questão da forma política somente ganha sua devida relevância quando é remetida à conjuntura das forças na luta de classes. 

Essa é a razão pela qual mesmo as práticas políticas mais progressistas podem ser distorcidas. Em 1848, a instituição do sufrágio universal - componente fundamental da prática republicana e democrática - serviu de instrumento para os conservadores conquistarem o poder, tanto na eleição da assembleia constituinte quanto na eleição presidencial. Os democratas que defendiam a ampliação do direito ao voto levavam água para os moinhos da reação.


Portanto, uma das lições de junho é que as formas políticas não podem ser dissociadas de seu sentido social, definido pela conjuntura da  luta de classes:


"O abismo profundo que se abriu a nossos pés pode desorientar os democratas? Pode nos fazer crer que as lutas pela forma do Estado são vazias, ilusórias e nulas?

Somente os espíritos fracos e frouxos poderiam levantar semelhante questão." (op. cit.)

Ou, como Marx definirá um pouco mais tarde:

"Depois de junho, revolução quer dizer: derrubada da sociedade burguesa, ao passo que antes de fevereiro significava: derrubada da forma do Estado." ( As lutas de classes na França, De junho de 1848 a 13 de junho de 1849,  início).

No plano profundo da luta de classes, todas concessões sociais obtidas da boa-vontade dos setores progressistas da burguesia dirigente são efêmeras e estão sujeitas ao desmentido dos fatos. Elas são apenas o que são: concessões e não conquistas. Eis por que Marx nunca teve pelo socialista Louis Blanc o respeito que tinha pelo revolucionário Auguste Blanqui. 


*******


O historiador Maurice Agulhon afirmou que “It was certainly no mere chance that Marx and Engels, following the developments of the revolution in France with the most rapt attention, now roughed out the bases of their theory that the class struggle was the most profound historical reality of all.” (The Republican Experiment 1848-1852, p. 56). Do ponto de vista cronológico, Agulhon está errado. O caráter fundamental da luta de classes já aparecia como premissa da primeira seção do Manifesto do Partido Comunista, antes da revolução de fevereiro. Contudo, do ponto de vista teórico, tudo indica que, antes das jornadas revolucionárias de 48, Marx tinha apenas uma compreensão livresca da luta de classes, aprendida de historiadores burgueses conservadores, como Guizot e Thierry (cf. Carta a Weydemeyer, 5 de março de 1852; Carta a Engels, 27 de julho de 1854).

Quando Marx realmente compreendeu a forma violenta que a luta de classes podia assumir, ele deixou de acreditar em belas revoluções e passou a desconfiar da força dos levantes espontâneos da classe operária. Essas não foram as únicas lições de 1848. O processo revolucionário na Alemanha, do qual Marx participou de maneira intensa e direta, também lhe reservou muitos ensinamentos que ele teria tempo para assimilar no exílio em Londres, como veremos no próximo capítulo de nosso folhetim.


******


Maurice Agulhon, The Republican Experiment 1848-1852, Cambridge University Press, 1993  |  E.J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, London, 1977  |  Karl Marx, La révolution de juin n° 29, 29 juin 1848 La Nouvelle Gazette Rhénane  |  Karl Marx, Les luttes de classes en France  |  Oehler, Dolf, O Velho Mundo desce aos Infernos, Cia das Letras, 1999  |  Roger Price, A concise history of France, Cambridge University Press, 2005  |  Michel Winock, Vozes da Liberdade, Bertrand Brasil, 2006 | Vários, Encyclopedia of Revolutions of 1848


******

Nas fotos de 2010, a rua do faubourg Saint-Antoine, que começa na Bastilha. Centro de agitação revolucionária em 1789, 1793, 1830, 1848, 1871; palco de barricadas e assassinatos em massa em junho de 48; cenário de inumeráveis manifestações e greves; um dos focos de resistência à ocupação alemã.






Nenhum comentário:

Postar um comentário