sábado, 21 de junho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #4





Em Tomar, quando a névoa se vai


 Uma manhã de nevoeiro 


Lisboa amanheceu no nevoeiro. Do parque Eduardo VII não se via o Tejo e mal se enxergava o Castelo de São Jorge. Mas era um mau dia para a volta de D. Sebastião. Notícias de adesão à greve geral eram divulgadas pela RTP. O Metropolitano só voltaria a funcionar a partir das 11 horas, como pudemos verificar pela multidão ansiosa à qual nos juntamos à entrada da estação  Marquês de Pombal.  A custo, e ainda indecisos, chegamos à estação Santa Apolônia, onde tomaríamos o comboio rumo a Tomar. Já o dia se abria quando embarcamos. Santarém repousava gloriosa ao sol. Não demorou para que Ludmila e eu galgássemos o outeiro do castelo de Tomar, cuja aparência conhecia apenas por um documentário um tanto sensacionalista que o Discovery Channel fizera sobre os Templários. 

Ao percorrermos o claustro da lavagem e o do cemitério a caminho da nossa esperada visita à Charola, ocorreu-me que os impérios universais, como o de Carlos V e o de Filipe de Espanha, que foi aqui levantado rei de Portugal, embaraçam as linhas das nações, mas não abolem, antes reforçam, pela lei da reação, o sentimento de pertencimento à terra. Os impérios são grandes fautores dos nacionalismos.

É isso que desperta em Portugal e noutros países submetidos ao imperialismo da Troika um sentimento de impotência que só encontra escape na derrisão cínica ou na afirmação da nacionalidade contra o cosmopolitismo dos ricos da União Europeia. 

No entanto, eu, mestiço num povo de mestiços que foram sempre súditos de todas as Metrópoles econômicas e culturais, também sei que os impérios, ao enredarem as linhas das nações, misturam o cá e o lá das maneiras mais inesperadas. É verdade que produzem reações nacionalistas violentas, que custam a ser reprimidas, mas também ensinam o que é pertencer a muitos lugares,  o que é ser habitante de si mesmo e cidadão do universo.  

É por isso que agora Tomar é meu cá, tanto quanto Paris, Verona ou Bruxelas, ou tanto quanto o humilde bairro sem fama nem nomeada da maior cidade do Brasil, que me viu crescer e aprender a ler todos os nomes no Atlas.


claustro de D. João III

1314-2014

A história começa em França.

Diante dos inquisidores leais a Felipe o Belo, os templários foram acusados de enriquecimento ilícito, sodomia, obscenidade, recusa dos sacramentos, idolatria, renegação de Cristo. Uma bula do papa Clemente V suprimiu a ordem dos Cavaleiros do Templo.

Os templários nunca chegaram a ser condenados pela Inquisição, mas o rei exigiu que Jacques de Molay, grão-mestre da ordem, e seus companheiros fossem queimados na ponta da Île de la Cité, diante dos jardins do palácio real, no dia 18 de março de 1314.


Nos sete séculos que se passaram, o nome dos templários foi metido no saco de maldades ao qual se lançariam também o dos jesuítas, maçons e sábios do Sião. Sinal certo e claro de que esteve muito ocupada a andar pelo mundo a senhora Difamação, cujas sete bocas falam com fluência todas as línguas dos homens e que nunca se separa de suas irmãs aleijadas e impertérritas: Ignorância, vestida de remendos, e Suspeição, sempre embuçada.



Paris: ponta da Île de la Cité

D. Dinis


Com a dissolução da ordem do Templo, seus bens foram colocados sob sequestro e passaram aos cuidados de administradores eclesiásticos. No reino de Portugal, para evitar que fossem confiscados pela Igreja, D. Dinis os apreendeu e incorporou ao domínio real até que a situação se deslindou em 1319, quando uma bula papal autorizou a criação da Ordem de Cristo, à qual D. Dinis entregou os bens dos templários portugueses, entre eles o Castelo de Tomar.

A fortificação fora construída em 1160 por Gualdim Pais, mestre dos templários portugueses, incumbido por Afonso Henriques de defender a região das investidas dos mouros, recentemente expulsos de Santarém e Lisboa. É bem possível que se tenha iniciado na mesma época a edificação da charola, a igreja "redonda" que é marca da ordem, inspirada nas antigas plantas octogonais do mundo romano tardio das quais são exemplos a Basílica do Santo Sepulcro ou San Vitale de Ravena, que havia servido de modelo para a Capela Palatina de Carlos Magno.



A charola dos templários



a alcáçova do castelo de Tomar



Porta do Sol, junto à alcáçova

D. Henrique


D. João I obteve permissão papal para colocar seus três filhos à frente de cada uma das ordens militares portuguesas: a de Santiago, a de Cristo e a de Avis. Coube ao infante D. Henrique administrar a Ordem de Cristo em 1418. O papa atribuiu à Ordem lutar contra os mouros e expandir a fé cristã na África.

D. Henrique não esquentou lugar em Tomar, que se tornara sede da Ordem de Cristo em 1357.  O Infante se estabeleceu entre Sagres e o Cabo de São Vicente e orientou suas atividades para a exploração marítima. Logo depois de elevado a governador da ordem de Cristo, ele patrocinou a conquista da Ilha da Madeira e, um pouco mais tarde, dos Açores.

Do ano de 1434 em que Gil Eanes dobrou o Cabo do Bojador até 1447, ano seguinte à chegada de Dinis Dias às costas do Senegal, um terço das expedições africanas foram enviadas por iniciativa exclusiva de D. Henrique. Como se ainda fosse pouco, à fama do Infante foram acrescentados outros êxitos marítimos da Ordem de Cristo, da qual foram cavaleiros vários dos navegantes ilustres que dilataram a fé e o império, entre os quais Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.

O Infante D.Henrique quase nunca saiu ao mar, mas a posteridade, vezeira em levar a sérios seus próprios gracejos, deu o nome de "Navegador" a este príncipe riquíssimo que navegava apenas nos portulanos e enfrentava a ira do mar Oceano com ambos os pés plantados na boa e firme terra do Algarve. 


O Infante, com sua nau de brinquedo e os pés firmes no chão, sonha em fazer a dura travessia de Belém à longínqua Almada 

entrada da charola de Tomar, decorada no reinado de D. Manuel I




o tambor octogonal no centro da charola 



o exterior do tambor central da charola

D. Sebastião  


O Desejado foi menino solitário num palácio triste e austero, governado pela saias devotas da avó Catarina, regente, e pelas púrpuras cardinalícias do tremebundo tio-avô Henrique. O paço real era uma grande sacristia dirigida pelos padres Luís da Câmara e Amador Rebelo, preceptores da Companhia de Jesus. Pelos cantos, nobres espadas enferrujadas contavam façanhas das antigas jornadas d'África, que o principezito ouvia com o mesmo prazer espantado com que seguia a relação da batalha milagrosa de Ourique ou as aventuras não menos estapafúrdias dos cavaleiros do rei Sagramor, que Jorge Ferreira de Vasconcelos lhe dedicara em 1567. 

A ninguém parecerá estranho, portanto, que o último monarca da dinastia de Avis, do mesmo sangue do Infante Santo D. Fernando, que morreu prisioneiro em Fez; herdeiro de D. Manuel, rei venturoso e governador da Ordem de Cristo; neto de Carlos V, imperador do Sacro Império e rebento dos reis católicos de Castela e Aragão; a ninguém parecerá estranho que o Desejado se tenha feito cruzado.

Foi duas vezes a África. Na última, desembarcou no Marrocos para apoiar o xarife Moulay Mohamed, que disputava com seu tio Moulay Malik o domínio de Fez. Na batalha de Alcácer Quibir, os três monarcas morreram. Aquele dia 4 de agosto de 1578 encerrou a última cruzada do mundo mediterrâneo. 

O rei português desapareceu no areal. Voltará, quem sabe, num dia de nevoeiro.

O Desejado se tornou O Encoberto.




claustro de D. João III

António Sérgio e Oliveira Martins


Leitor de Spinoza, António Sérgio não era paciente com a besteira nem caridoso com os mitos. Do seu exílio espanhol, disposto a conter a maré montante neo-sebastianista, resolveu aquilatar o real valor do rei de carne e osso que sumiu no areal. Com uma fúria que desmente os que o acoimam racionalista, Sérgio exprobou, acérrimo, o último monarca de Avis:

"Não  é propriamente a imprudência o que deploramos em D. Sebastião, mas a estupidez, o desvairamento, a tontaria, a explosividade mórbida, a ferocidade inútil, a pataratice constante desse impulsivo degenerado, que era de todo destituído das qualidades de comando absolutamente indispensáveis para a execução do que ambicionava. Se um acaso, por exemplo, lhe desse a vitória em Alcácer Quibir, logo outras asneiras o haveriam perdido, porque o dom da asneira em jacto era nesse jovem uma propriedade congénita." (1)

No entanto, já na geração anterior, Oliveira Martins percebera que o sebastianismo pouco tinha a ver com o rei desaparecido. O mito sebástico teria raízes na cultura celta dos antigos lusitanos. D. Sebastião era o avatar de outro rei que voltaria das brumas: Artur. Esse suposto legado celta, moldado pelo messianismo judaico-cristão, ressurgia nos tempos de crise na forma de um esperado herói providencial. 

"O sebastianismo era pois uma explosão simples da desesperança, uma manifestação do gênio natural íntimo da raça, e uma abdicação da história. Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a história, desfeito num sonho; envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica." (2)

Com a desaparição do rei sem sucessor, crise derradeira de uma estirpe que começara numa crise, o que restava aos portugueses era o sebastianismo, "prova póstuma da nacionalidade" (3).

Talvez hoje seja mais fácil ter complacência com o mito sebástico do que gastar o verbo em objurgatórias contra um rei morto. Porém os mitos aderem a qualquer suporte em que possam medrar. E medram demasiado depressa, se não se lhes dá uma forte vassourada de quando em quando. Por isso, António Sérgio não exorbitou e certamente daria uns vigorosos golpes de vassoura nas confrarias que saudaram, em plena crise da zona do euro, o retorno à pátria do elmo que o Desejado levou para Alcácer Quibir.

Privilégio dos reis é o serem inimputáveis, como o são os asnos que invadem hortas, razão pela qual não têm que se defender, mas, diante da cara feia que lhe fazem os historiadores, pode ser que o Desejado, seguindo o exemplo do narrador das Proezas da Segunda Távola Redonda e antecipando-se a um fidalgo manchego, de lanza en astillero y rocin flaco, nos fizesse mercê de um simples alvitre a propósito do despropósito de seus atos:

"Muitas culpas houve no mundo de homens graves que, dado que não se louvem nem devam seguir, muitas vezes tirou delas a suma providência por sua bondade louvado fruto; não ficam por isso os autores delas desculpados, mas é louvada a divina habilidade que de males frutifica bens. Donde se culpamos dom Lucidardos por seguir seu Amor vão, louvemos o autor do bem, que de seus trabalhos culpados tira tão heroicas e louvadas obras para exemplo da animosa cavalaria (...)" (4)

Mas será verdade que tudo vale a pena quando a alma não é pequena?


A charola (ao fundo) e a praça de armas vistas do muro a sudeste

Filipe de Espanha


Com o desaparecimento de D. Sebastião, o velho cardeal D. Henrique assume o trono. Nas cortes de Almeirim, em janeiro de 1580, o cardeal morre sem haver nomeado um sucessor. 

D. Antonio, prior do Crato, neto de D. Manuel e combatente de Alcácer Quibir, é proclamado rei em Santarém, Setúbal e Lisboa. 

Filipe II,  também pretendente ao trono, dispôs suas tropas em Badajoz, prontas para uma invasão. O Duque de Alba foi convocado para chefiar a operação. O prior do Crato, facilmente derrotado, se exilou na França de Henri IV.

A epidemia de gripe grassava por toda a península ao longo de 1580. Camões morreu em junho; a rainha Ana, esposa de Filipe, grávida, faleceu em outubro. Filipe nunca mais se casou. O luto retardou seus planos a respeito de Portugal. Somente em dezembro atravessou a fronteira e entrou em Elvas, donde enviou convocações para que as Corte de Portugal se reunissem em Tomar, para evitar a epidemia em Lisboa.

Filipe II foi solenemente levantado e jurado como Rei de Portugal nas Cortes de Tomar em 16 de abril de 1581, domingo.  

"Para Espanha, a união ibérica significou antes de mais o cumprimento de um desígnio perfilhado, pelo menos, a partir de Isabel a Católica e que jamais deixou de ter adeptos: congregação política de todo o espaço ibérico debaixo do mesmo cetro, com o epicentro em Castela, bem significado na escolha de Madrid como capital equidistante. Como dirá Pierre Vilar, «em 1580 colocar-se-á o verdadeiro ponto culminante da história peninsular». a anexação de Portugal arrastou o seu vasto império espalhado pelos continentes asiático, africano e americano com as suas enormes riquezas potenciais ou reais.
E o ideal da Monarquia Universal tornou-se real, a Monarquia Universal finalmente chegou. de algum modo refez-se a unidade do mundo que o Tratado de Tordesilhas havia salomonicamente rompido." (5)


Em Tomar, os portugueses exigiram que Portugal fosse tratado como herança e não como conquista do rei Filipe. Essa demanda foi enunciada de maneira cristalina pelo "braço do povo" reunido num capítulo nas Cortes.

"Posto que vossa Majestade herdou estes reinos e senhorios de Portugal, nem por isso se uniram aos de Castela, mas os herdou e principalmente e de per si, pelo que lembramos e pedimos a Vossa Majestade que estes reinos fiquem sempre inteiros e sejam per si em tudo e por tudo se hajam de reger e governar por suas leis, ordenações, foros e costumes, como até agora se fez e usou." (6)

O Estatuto de Tomar reconheceu que Portugal não estava sujeito a Castela. Esse princípio claro de divisão do lá e cá será esquecido mais tarde pelo Conde Duque de Olivares, o todo-poderoso ministro de Filipe IV, braço forte de um rei pasmado. 

A janela da Casa do Capítulo, executada entre 1510 e 1513



Detalhe da decoração manuelina do exterior  da igreja de Tomar



Uma das janelas da igreja 

Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel


Gaspar de Guzmán, futuro Conde-Duque de Olivares, nem mesmo havia nascido quando das Cortes de Tomar. Seu tempo ainda está distante.

No entanto, outro grande do mundo partiu daqui mesmo, em Tomar, em dezembro de 1582. Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, o Duque de Alba, o estrategista militar de Carlos V e de Filipe II, o vencedor da batalha de Mühlberg contra os príncipes luteranos da Liga Esmalcáldica, o carrasco da independência dos Países Baixos, o invasor de Portugal. 

Era um homem duríssimo. Quando Filipe quis investigar os excessos cometidos durante a invasão, o duque de Alba se recusou a colaborar. O rei desistiu, mas queixou-se de que "a arrogância do duque é igual à sua lealdade". (7)

De todas os crimes infames cometidos em nome do poder e da religião, poucos há tão abomináveis quanto as milhares de execuções ordenadas pelo Duque para conter a revolta dos Países Baixos contra o domínio intolerante da Espanha católica. A carnificina culminou na decapitação de Lamoraal, conde de Egmont na Grand-Place de Bruxelas em 1568.

Alba se tornou um nome odiado na Europa protestante, mas Egmont foi transformado em mártir da liberdade num drama de Goethe, que inspirou uma das mais belas aberturas de Beethoven, cujo maior desejo sempre foi o de compor a música da emancipação humana.

De tudo isso, resta que o temível Duque de Alba, cruel cá e lá, morreu às turras com seu rei, às margens do modesto rio Nabão, na pequena Tomar, numa terra em que era odiado. 

Nem sequer me lembrei dele quando, entre as ameias do castelo dos Templários, naquela tarde de sol em que eu sonhava de olhos abertos com todos os nomes do Atlas, eu olhava para Tomar, cidade sem névoas.



Bruxelas: Grand-Place/Grote-Markt  


Notas:

(1) António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, p. 104

(2) Oliveira Martins, História de Portugal, tomo II, p. 82

(3) idem, p. 79

(4) Jorge Ferreira de Vasconcelos, Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, capítulo 43, p. 289

(5) Francisco Ribeiro da Silva, "Felipe II e Portugal" in Quinhentos/Oitocentos (Ensaios de História), p. 251

(6) citado em Rui Ramos (coordenador), História de Portugal, p. 277

(7) Henry Kamen, Filipe da Espanha, p. 260


Alain Demurger, Os Cavaleiros de Cristo: Templários, Teutônicos, Hospitalários e outras ordens militares na Idade Média (sécs. XI-XVI), Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002  |  Encyclopaedia Britannica  | Jacqueline Hermann, No reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII), Companhia das Letras, São Paulo, 1998  |  Henry Kamen, Filipe da Espanha, Record, Rio de Janeiro, 2003  |  Jacques Le Goff (direção), Homens e Mulheres da Idade Média, Estação Liberdade, São Paulo, 2013  |  Eduardo Lourenço, Mitologia da Saudade, Companhia das Letras, São Paulo, 1999  |  J.P. Oliveira Martins, História de Portugal, tomo II, Livraria Bertrand, Lisboa, 1882  |  Rui Ramos (coordenador), HIstória de Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010  |  Antonio Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1983  |  Francisco Ribeiro da Silva, Quinhentos / Oitocentos (Ensaios de História), Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2008 | Jorge Ferreira de Vasconcelos, Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda, ao muito alto e muito poderoso rei Dom Sebastião, primeiro deste nome em Portugal, Nosso Senhor; Impressa pela primeira vez no ano de 1567, Typographia do Panorama, Lisboa, 1867 


claustro da Hospedaria, à direita, o exterior do coro manuelino da igreja de Tomar




sexta-feira, 13 de junho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #3





Óbidos em noite de inverno



D. Filipa de Lencastre

A fria umidade do fim de domingo esvaziara os becos.  A gente que restara andava metida nas últimas casas de ginja ainda abertas. Já era quase o Ângelus quando entramos na vila. Óbidos sopitava no tédio e no langor costumeiro desde o século do primeiro rei Sancho. Há muito as ameias haviam perdido toda a serventia e a torre de menagem não vibrava ao chamado da tuba belicosa, se é que um dia vibrou essa torre que mais parecia aparato de cena para maravilhar as princesinhas d'antanho que recebiam Óbidos no enxoval de casamento, com as sedas de Bizâncio e as alfombras de Bruges, com uma falange do Menino Jesus e uma rêmige do Espírito Santo.

Uma delas, pálida e insossa, chegou de Álbion para selar a aliança que sustentava  João de Portugal contra outro João, o de Castela. O primeiro, um dos tantos filhos de Pedro, o Justiceiro, cujo amor sem limites por Inês de Castro nunca o impediu de fazer bastardinhos às dúzias e aos centos. O segundo, um monarca da casa de Trastâmara, ramo bastardo de outra casa bastarda, pois de bastardias é que as realezas de sangues são feitas. João de Castela se casara com a filha do D. Fernando, o Formoso, o fraco rei que fizera fraca a gente forte, e tinha tanto direito ao trono de Portugal quanto o Mestre de Avis, ou quanto eu, humilde cronista desses sucessos, ou quanto tu, hypocrite lecteur

Por que era tão intolerável que Portugal fosse governado por um rei castelhano, casado com uma princesa lusa de boa cepa, ao passo que parecia tão legítimo que um bastardo, futuro esposo de uma princesinha que nunca vira um sobreiro ou saboreara uma tigela de tremoços, viesse a governar Portugal? 

Por que tudo, menos os cães de Castela, ainda piores que os sequazes de Mafoma?

Bem sei que a pergunta ofende uns lusitanismos orgulhosos, que ainda os há, prontos a acudir com o broquel da Nacionalidade e a História em riste, a certificar pergaminhos, a compulsar in-folios, a aduzir razões, a lustrar armas e a assinalar barões. 

O que é esse pertencimento que nos ata e reata a umas poucas linhas tiradas no mapa, a um marco de sesmaria e a uma carta de foral? 

O que é cá e o que é lá?











Queiroz & Queirós


O ter vivido um quarto de século longe de Portugal bem poderia ter ensinado a Eça algumas lições sobre o cá e o lá, ou - o que dá no mesmo quando se trata de homens de letras - ter rendido alguns capítulos para o pão dos typographos da Lello & Irmãos. O livro que ele, nos seus anos derradeiros, começou a escrever a propósito não era de todo mau, mas ficou inacabado, dando azo a uma suspeita operação editorial por parte do amigo e velho colaborador Ramalho Ortigão. O que saiu do prelo foi um romancezinho très amusant, conquanto semi-apócrifo: A Cidade e as Serras.

Jacinto era o último descendente de uma família aristocrática portuguesa que fugira para a França com a derrota dos miguelistas. Em Paris onde nascera, o "Príncipe da Grã-Ventura" vivia como dandy riquíssimo, gozando, até os extremos da décadence, os requintes e prazeres de uma civilização ultra-sofisticada e toda avessa à Natureza. Ele se tornara paladino de um hedonismo tão ritualizado e intelectual que mal se distinguia da pura ascese, o que o aproximava tanto daquele outro esteta ultrafino, Jean Floressas des Esseintes, de À Rebours, que J.-K Huysmans publicara em 1884.

Contudo, o admirável maquinismo da sua mansão na Champs-Élysées se insurge contra a vontade do senhor. Os aparatos ultramodernos emperram, as engrenagens desafiam sua paciência, os engenhos esgotam sua confiança positivista no Progresso e na Ciência. Entre os setenta mil volumes da sua biblioteca de Alexandria, Jacinto definhava num niilismo farsesco, donde só foi arrancado quando uma carta prosaica o convocou à herdade ancestral, nos altos de uma serra junto ao Douro. 

A caminho de Portugal, toda a sua bagagem se extravia. Reduzido apenas aos recursos que a quinta rústica lhe podia oferecer, começa a tomar gosto pela vida bucólica. Perde a palidez, revigora, enrijece. Põe-se a remediar a miséria dos campônios e ganha fama de pai dos pobres; casa-se com uma Joaninha serrana e procria dois pimpolhos robustos. Faz-se homem comum, banal, simples e português, mas não abre mão do conforto de um telefone no solar quatrocentista que herdou. Jacinto aprende que estivera exilado em Paris e que a sua terra de pertencimento era a quinta de Tormes.

Entre tantas mentiras às quais nos habituaram os literatos, há poucas tão vergonhosas quanto o mito do retorno à natureza, combinado com o bucolismo factício de presépio e a patriotada das raízes & tradições. Não é estranho que A Cidade e as Serras fosse tão glorificado pelo regime arqui-reacionário de Salazar como prova da reconciliação final de Eça de Queiroz com a terra lusitana.

O que é esse pertencimento de que fala Eça? Apenas o direito senhorial que dura, e ao durar, ganha foros de tradição.

“O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de rendas em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.
No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis.” (capítulo 1)

Para o landlord, no entanto, não é a ligação com a terra que constitui a tradição, mas o regime dos privilégios reconhecidos pelo poder reinante. Quando desabam os Anciens Régimes, os aristocratas correm sempre para a Coblença mais próxima, a maldizer a terra em que nasceram: 

“E quando soube que o sr. D. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro – Jacinto Galeão correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando furiosamente:
- Também cá não fico! Também cá não fico!
Não, não queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado e escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos!” (capítulo 1)


Então aquele bondoso e gordíssimo Jacinto Galeão abalou para a França de Luís Felipe, assim como Jacinto deve ter fugido para a Versailles de Adolphe Thiers aos tempos da Comuna, mas o romance de Eça não dá uma só palavra sobre esse desastre da História, que bem pode ter contribuido para que o "Príncipe da Grã-Ventura", um nababo com fumos de pensador, cultivasse aquele estado de futilidade pasmacenta do qual ele só pôde ser curado pelo retorno salutar ao torrão ancestral, ao seu domínio senhorial sobre os pobres mujiques de um rincão perdido em Portugal, tão miserável quanto o eram as estepes russas ou as florestas dos Cárpatos.


O castelo de Óbidos


Karl Marx insiste em ter razão


Óbidos esteve a salvo das investidas da História nos últimos setecentos anos. Por isso, enquanto Ludmila, curiosa, se arriscava cada vez mais junto à borda escarpada, e Fernando Henrique, como um menino, saltitava à procura de ângulos propícios às fotografias, não pude deixar de pensar em lugares menos afortunados, que foram duramente assolados pela fraude dos pertencimentos nacionais, com a chancela da tradição e da História. Meses depois, encontrei finalmente o trecho de Marx que, em vão, esforçava-me por recordar ali:

“Não ousam pretender que o povo da Alsácia-Lorena anseia pelo abraço alemão; muito pelo contrário. Para punir o seu patriotismo francês, Estrasburgo, cidade dominada por uma cidadela autônoma, foi bombardeada durante seis dias de maneira cruel e bárbara, com projéteis e explosivos «alemães» que a incendiaram e mataram grande número dos seus habitantes indefesos! Contudo, o solo daquelas províncias tinha pertencido outrora ao antigo Império alemão. Parece, assim, que o solo e os seres humanos que nele cresceram têm de ser confiscados como propriedade alemã imprescritível. Se alguma vez a carta da Europa tiver de ser refeita segundo a veia de antiquário, não esqueçamos em caso algum que o príncipe eleitor de Brandeburgo foi, para as suas possessões prussianas, o vassalo da República polaca.

(Karl Marx, A Guerra Civil em França, Segunda Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores Sobre a Guerra Franco-Prussiana, 06-09 de Setembro de 1870)



Fernando Henrique e o Sobrinho de Enesidemo a inspecionar um beco de Óbidos


Os dois movimentos de Eça



Em A Cidade e as Serras, o movimento que traz Jacinto do exílio parisiense para a sua verdadeira terra natal, com todo o enraizamento que se segue, é apenas uma fábula fácil e divertida, quando lida à distância de mais de um século. Em certos momentos, Eça ultrapassa o limiar da chantagem sentimentalista:


"Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:
- V. ex.as não tem nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...
Era a minha terra!” (capítulo 8)

Para felicidade dos leitores das melhores letras portuguesas, há o Eça muito mais poderoso de Os Maias, cujo final destrói as ilusões piedosas do "chez nous",  do "cá" tão mentido, e restaura o movimento verdadeiro do mundo burguês moderno, rumo a um "lá" que se evade sempre, deixando cada um de nós entre o desânimo resignado e o ímpeto esperançoso:

“Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saía d'este passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida. 
- Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva. 
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade: 
- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas. 
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memorias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto! 
 - Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem no Bragança pontualmente ás seis! 
Não aparecer por aí uma tipoia!... 
 - Espera! exclamou Ega. Lá vem um «americano», ainda o apanhamos. 
 - Ainda o apanhamos! 
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face: 
 - Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma... 
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras: 
- Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder... 
A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço: 
- Ainda o apanhamos! 
- Ainda o apanhamos! 
De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”

(Os Maias, final)







Karl Marx, A Guerra Civil em França  |  Maria Filomena Mónica, Eça de Queiroz, Tamesis, Woodbridge, 2005  | Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras, Lello & Irmão, Porto, 1955  |  Eça de Queirós, Os Maias, Círculo do Livro, São Paulo  |  Giuliano Lellis Ito Santos, Os três Antônios: a recepção de Eça de Queirós na década de quarenta  |   João Gaspar Simões, Vida e Obra de Eça de Queirós, Livraria Bertrand, Amadora, 1973


sábado, 7 de junho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #2






Batalha ao pôr-do-sol



D. João I

Estes testamentos de reis, sofrê-los não posso mais, que as medidas todas se me encheram. Mais uma coroa a gemer devoções sopradas pelos biocos d'algum confessor menos devoto que cortês; mais um cetro a planger centos de libera me Domine seguidos de centos de maravedis e não sei quantos marcos d'ouro e prata regalados à clerezia com real franqueza; mais um trono a ditar remissões imploradas numa linha e a remeter gordos legados noutra - e bofé que estouro!

Paciência, porém, com D. João, primeiro do nome, que veio num passo tão bom. "D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito por uma revolução, e confirmado por cinquenta vitórias, era o mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis da Europa" (1) No seu palácio de Sintra, o antigo Mestre de Avis, depois rei-cavaleiro aclamado pelo povo miúdo, lembrava-se que, no ano do Senhor de 1385, quando iriam as tropas portuguesas se bater com as hostes castelhanas numa tarde de agosto, no campo de Aljubarrota, fizera ele a promessa de construir um mosteiro dedicado à Santa Maria. De certo porque pretendia concedê-lo aos cistercienses, relutou el-rey em lho entregar à ordem de São Domingos, mas se deixou convencer pelas mil razões, todas mui angélicas, do frei Lourenço Lampreia - por acaso, dominicano -, e pelo razoar mui douto de João das Regras, pois não se refuga um de quibus supra demonstratum est  que venha de Bolonha. 


“Item porque nós prometemos no dia da batalha que houvemos com o rei de Castela, de que Nosso Senhor Deus nos deu vitória, mandar fazer em honra da dita Nossa Senhora Santa Maria, cuja véspera então era, ali acerca de onde ela foi, um Mosteiro, o qual, depois que foi começado, nos requereu o doutor João das Regras, do nosso conselho, e frei Lourenço Lampreia, nosso confessor, estando nós em o cerco da Melgaço, que ordenássemos que fosse da ordem de S. Domingos e nós duvidamos de o fazer, porque assim foi nossa promessa de se fazer em honra da dita Senhora Santa Maria: e responderam-nos que a dita ordem era muito da dita Senhora, declarando-nos as razões porquê. As quais, vistas por nós, acordamos e aprouve-nos ordenar que o dito Mosteiro fosse da dita ordem.” (2)

Não longe donde sucedeu, por intercessão de Santa Maria, o milagroso caso d'armas contra os de Castela, mandou el-rey erguer, em cumprimento da promessa, o milagroso Mosteiro de Santa Maria da Vitória, que cedo o vulgo apelidou com a simples voz de Batalha, talvez porque entendesse tratar-se antes de maravilha mundanal que de obra mística. Mas que sei eu? As sendas do Senhor são insondáveis e é estulto o sábio que se assoberba, pois Deus o confundirá.










Alexandre Herculano 



"Vem de todos os vales e montanhas de Portugal o soído desse queixume de mortos"



Em Alcobaça, um rei metido em pelejas sem fim contra os mouros doou a um santo borguinhão, que cá jamais pisou, uma charneca onde os monges de Cister ergueram o que veio a ser o mausoléu de uma dinastia. Em Batalha passou-se bem outra coisa, pelo menos aos olhos do jovem Alexandre Herculano.

Em 1839, quando ainda se sentiam os odores fortes de pólvora e sangue seco da guerra civil, o jovem Herculano publicou o conto  "A abóbada".

Era o ano de 1401 e andavam as obras de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado Batalha. O arquiteto inglês David Huguet sucedera ao mestre Afonso Domingues, que traçara o plano do mosteiro. Huguet afastou os operários portugueses, por considerá-los ineptos, e desprezou como contrário às regras da arte o traçado do mestre português, agora velho e cego. A arrogância do estrangeiro foi punida: a abóbada da Sala do Capítulo desabou. Manda D. João I chamar mestre Domingues, mas o velho estava ressentido com el-rey e se recusou a erguer a abóbada. A fúria do rei assoma, mas se desfaz contra o impávido orgulho lusitano do mestre Domingues, veterano de Aljubarrota. Comovido, o rei o abraça e o nomeia de novo mestre das obras do mosteiro.


"Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abóbada da casa capitular não ficará por terra. Oh meu mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a cogitações, a mais formosa das tuas imagens será realizada, será duradoura como a pedra em que vou estampá-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se: as únicas palavras harmoniosas e  inteiramente suaves, que tenho ouvido há muitos anos, são as que vos saíram da boca: só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos— pátria e glória. A passada injúria a vossos conselheiros a atribuí sempre, que não a vós, posto que de vós, que éreis rei, me queixasse: varrê-lá-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel de cima do vulto, que entalhou em fuste de coluna arrendada. Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei, ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha crença na imortalidade e na gloria." (3)

O mestre Domingues jurou que ficaria três dias sem água nem comida, sentado sob o fecho da abóbada reconstruída, para provar sua solidez.  O velho não suportou o rigor da provação e ali, no centro da Sala do Capítulo, foi encontrado morto. A abóbada magnífica não ruiu.  



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O que é cá e o que é lá?

O que é esse pertencimento que nos ata e reata a umas tantas léguas de lama, seixos e urzes?

Alexandre Herculano responderia que  são "duas palavras formosíssimas, palavras de anjos — pátria e glória" desbastadas na pedra, fundidas no bronze, traçadas no chão. 

Posto que profundo, o que separa o cá e o lá não é decreto que venha do céu, nem destino proclamado pela estirpe, nem direito do fundo dos tempos. Em verdade, começa com umas linhas no mapa, um inimigo que avança, uma vitória, um monumento. O mosteiro da Batalha não é, para Herculano, apenas o panteão da dinastia nova de Avis. Não é um rival de Alcobaça, mas coisa bem diversa. É o altar da nacionalidade que se forjou em torno de um rei meio plebeu, investido pela gente miúda e consagrado por cinquenta vitórias. É o nó que ata o santíssimo cavaleiro Nun'Álvares Pereira à gordíssima Dona Brites de Almeida, temor da lança castelhana e rainha das padeiras. É a vindicação do queixume dos mortos que vem de todos os vales de Portugal.

E como altar da Pátria, Batalha continua. Sob a abóbada da Sala do Capítulo jazem dois soldados desconhecidos, o que veio das trincheiras lamacentas de Flandres, e aquele trazido das guerras coloniais d'África.

O cá e o lá começa no chão, no ferro e no sangue, prolonga-se na pedra, no bronze, na cal, e ganha contorno na cartografia dos afetos. Mas esses afetos são teimosos e irritáveis. E como resistem à verdade!

De que adianta alertar aos inocentes que a boa Dona Brites nunca existiu e que nenhum castelhano jamais sentiu o peso do seu braço? Que o santarrão do Nun'Álvares fazia má figura como arremedo de Galaaz, e sempre foi muito ciumento de todos as recompensas e glórias humanas? Que Aljubarrota foi apenas um sideshow da Guerra dos Cem Anos? Que a dinastia de Avis era sustentada menos pela gente miúda de Fernão Lopes do que pelos ricos burgueses de Lisboa e do Porto, que faziam negócios com os flamengos de Bruges e Gante? Que o apoio da monarquia inglesa contra as investidas de Castela, apoiada pela França, exigiu o casamento do bastardo D. João com Dona Filipa, uma princesinha inglesa insossa, meio Plantageneta, meio Lancaster? 

De que adianta avisar que a abóbada da Sala do Capítulo foi feita provavelmente por David Huguet e não por Afonso Domingues? E que ninguém sabe se ele era inglês, francês ou catalão, pois sempre foi fácil cruzar a pé as linhas das nações? 

De que adianta lembrar que o próprio Alexandre Herculano só tomou consciência do lugar especial do mosteiro da Batalha por força de suas leituras inglesas?  Mas sejamos justos: o que Herculano tomou de empréstimo aos ingleses, a saber, a associação entre arquitetura gótica e afirmação nacional, era feito de matéria-prima portuguesa. O sucesso do gothic revival britânico se devia, em grande parte, à difusão das ilustrações rigorosas que um arquiteto irlandês, James Cavenah Murphy, fez da planta, das elevações laterais e dos pormenores decorativos do Mosteiro de Santa Maria da Vitória.

De que adianta provar que, de fraude em fraude, se tecem as telas dos afetos sobre a qual se bordam, em ouro, as "duas palavras formosíssimas, palavras de anjos — pátria e glória" ?

Porém, se é assim, o que resta do pertencimento que nos ata e reata a umas tantas léguas de lama, seixos e urzes?

O que é cá e o que é lá?



A famosa abóbada da Sala do Capítulo





William Beckford 

"I withdrew from the contemplation of these tombs with reluctance"


William Beckford, escritor, viajante e esteta excêntrico começou a tomar parte da girândola em 1760  e partiu para o undiscovered country em 1844. A riqueza dos Beckford vinha dos engenhos de açúcar da Jamaica. Seu pai foi Lord Mayor de Londres, sua mãe descendia de Mary Stuart.  Na infância teve lições de piano com o menino-prodígio Wolfgang Amadeus Mozart. No final da década de 1770, fez o Grand Tour pelo continente que, para os jovens britânicos desde o filho de William Pitt, passava também por Portugal.

Aos 21 anos, Beckford escreve a sua obra mais famosa, a novela gótico-oriental Vathek, admirada por Byron, Mallarmé, Lovecraft e Borges.  Forçado a exilar-se com a esposa e a filha pequena por uma acusação de conduta sexual imprópria, passou dez anos no continente.  Quando retornou em 1795, construiu, com ajuda do arquiteto James Wyatt e das ilustrações que Murphy fizera do mosteiro da Batalha, uma morada em feitio de abadia gótica na propriedade de Fonthill, que veio a ser outra das forças inspiradoras do gothic revival inglês.

A casa de Fonthill não sobreviveu à soberba de seus construtores. A torre central de mais de oitenta metros desabou, foi reconstruída e desabou novamente. A falência dos negócios da família obrigou Beckford a vender a propriedade. Quase nada mais resta hoje  da famosa "abadia". O escritor excêntrico passou os últimos anos de vida entre sua coleção de obras de arte, lendo a biblioteca de Gibbon, que ele havia adquirido inteira.

Beckford era um caçador do exótico, das coisas de lá, mas em Batalha foi comovido como jamais havia sido antes, pelo sentimento profundo de estar  em casa. "The Plantagenet cast of the whole chamber conveyed home to my bosom a feeling so interesting, so congenial, that I could hardly persuade myself to move away (...)".



Claustro manuelino


Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (1835)

Seventh day  - 9th June

Um conto gótico ready-made

A delightful morning sun was shining in all its splendour, when I awoke, and ran to the balcony, to look at the garden and wild hills, and to ask myself ten times over, whether the form I had seen, and the voice I had heard, were real or imaginary. I had scarcely dressed, and was preparing to sally forth, when a distinct tap at my door, gentle but imperative, startled me.
The door opened, and the Prior of Batalha stood before me. "You were disturbed, I fear," said he, "in the dead of the night, by a wailful voice, loudly proclaiming severe impending judgments. I heard it also, and I shuddered, as I always do when I hear it. Do not, however, imagine that it proceeds from another world. The being who uttered these dire sounds is still upon the earth, a member of our convent - an exemplary, a most holy man - a scion of one of our greatest families, and a near relative of the Duke of Aveiro, of whose dreadful, agonizing fate you must have heard. He was then in the pride of youth and comeliness, gay as sunshine, volatile as you now appear to be. He had accompanied the devoted duke to a sumptuous ball given by your nation to our high nobility: - at the very moment when splendour, triumph, and merriment were at their highest pitch, the executioners of Pombal's decrees, soldiers and ruffians, pounced down upon their prey; he too was of the number arrested - he too was thrown into a deep, cold dungeon: his life was spared; and, in the course of years and events, the slender, lovely youth, now become a wasted, care-worn man, emerged to sorrow and loneliness.
"The blood of his dearest relatives seemed sprinkled upon every object that met his eyes; he never passed Belem without fancying he beheld, as in a sort of frightful dream, the scaffold, the wheels on which those he best loved had expired in torture. The current of his young, hot blood was frozen; he felt benumbed and paralysed; the world, the court, had no charms for him; there was for him no longer warmth in the sun, or smiles on the human countenance: a stranger to love or fear, or any interest on this side the grave, he gave up his entire soul to prayer; and, to follow that sacred occupation with greater intenseness, renounced every prospect of worldly comfort or greatness, and embraced our order.
“Full eight-and-twenty years has he remained within these walls, so deeply impressed with the conviction of the Duke of Aveiro's innocence, the atrocious falsehood of that pretended conspiracy, and the consequent unjust tyrannical expulsion of the order of St. Ignatius, that he believes - and the belief of so pure and so devout a man is always venerable - that the horrors now perpetrating in France are the direct consequence of that event, and certain of being brought home to Portugal; which kingdom he declares is foredoomed to desolation, and its royal house to punishments worse than death.
”He seldom speaks; he loathes conversation, he spurns news of any kind, he shrinks from strangers; he is constant at his duty in the choir - most severe in his fasts, vigils, and devout observances; he pays me canonical obedience - nothing more: he is a living grave, a walking sepulchre. I dread to see or hear him; for every time he crosses my path, beyond the immediate precincts of our basilica, he makes a dead pause, and repeats the same terrible words you heard last night, with an astounding earnestness, as if commissioned by God himself to deliver them. And, do you know, my lord stranger, there are moments of my existence, when I firmly believe he speaks the words of prophetic truth: and who, indeed, can reflect upon the unheard-of crimes committing in France - the massacres, the desecrations, the frantic blasphemies, and not believe them? Yes, the arm of an avenging God is stretched out - and the weight of impending judgment is most terrible.


A cúpula octogonal da Capela do Fundador


Uma tapeçaria de luz

As soon as we drew near, the valves of a huge oaken door were thrown open, and we entered the nave, which reminded me of Winchester in form of arches and mouldings, and of Amiens in loftiness. There is a greater plainness in the walls, less panelling, and fewer intersections in the vaulted roof; but the utmost richness of hue, at this time of day at least, was not wanting. No tapestry, however rich - no painting, however vivid, could equal the gorgeousness of tint, the splendour of the golden and ruby light which streamed forth from the long series of stained windows: it played flickering about in all directions, on pavement and on roof, casting over every object myriads of glowing mellow shadows ever in undulating motion, like the reflection of  branches swayed to and fro by the breeze. We all partook of these gorgeous tints - the white monastic garments of my conductors seemed as it were embroidered with the brightest flowers of paradise, and our whole procession kept advancing invested with celestial colours.

Capela do Fundador: Túmulo de Dom João I e Dona Filipa de Lencastro


Albion por toda a parte

I withdrew from the contemplation of these tombs with reluctance; every object in the chapel which contains them being so pure in taste, so harmonious in colour; every armorial device, every mottoed lambel, so tersely and correctly sculptured, associated also so closely with historical and English recollections - the garter, the leopards, the fleur-de-lis, "from haughty Gallia torn;" the Plantagenet cast of the whole chamber conveyed home to my bosom a feeling so interesting, so congenial, that I could hardly persuade myself to move away, though my reverend conductors began to show evident signs of impatience.



Lavabo


O Palácio do Graal

I could not fail observing the admirable order in which every - the minutest nook and corner of this truly regal monastery is preserved: not a weed in any crevice, not a lichen on any stone, not a stain on the warm-coloured apparently marble walls, not a floating cress on the unsullied waters of the numerous fountains. The ventilation of all these spaces was most admirable; it was a luxury to breathe the temperate delicious air, blowing over the fresh herbs and flowers, which filled the compartments of a parterre in the centre of the cloister, from which you ascend by a few expansive steps to the chapter-house, a square of seventy feet, and the most strikingly beautiful apartment I ever beheld. The graceful arching of the roof, unsupported by console or column, is unequalled; it seems suspended by magic; indeed, human means failed twice in constructing this bold unembarrassed space.


Sala do Capítulo: interior


Capelas Imperfeitas: exterior

Os de cá

Foi há trezentos anos. Eu ia começar a dar aulas de literatura num curso pré-vestibular em Sorocaba. Na véspera, eu tinha passado a tarde na varanda da casa do Wan, no Embu, lendo "A Abóbada", de Alexandre Herculano. Fazia dois anos que Wan e Marina tinham voltado da sua primeira viagem a Portugal. 


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Aquela primeira aula foi a primeira de muitas. A necessidade facilmente se torna ofício e até vocação. 


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Nos momentos de cansaço, muitas vezes me passou pela cabeça a imagem de um velho teimoso sentado sob a abóbada ousada que construiu.  No entanto, não fiquei mais do que um minuto debaixo do fecho da abóbada da Sala do Capítulo. O claustro manuelino me atraía para a luz oblíqua da tarde que findava.

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Ludmila dava voltas e voltas a fotografar cada aresta do mosteiro.  Eu tentava calcular quão longe estávamos de tudo. Pouco afeito à geografia da Estremadura, ignorava que a toponímia da região oferecia tesouros não menos requintados que os lavores góticos da Capela do Fundador. 



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A Norte, Azoia e Alcogulhe; a Leste, a Cova de Iria, em Ourém, onde a Virgem milagrosa contava segredos para os pastorezinhos  e  quase fez cair o Sol sobre a Terra em outubro de 1917, enquanto Lênin, Einstein e Freud estavam ocupados em mudar a face do mundo. Mas o que importa é que, a Sudeste, ficam Reguengo do Fetal e Alqueirão da Serra. A Sul, Porto de Mós e Aljubarrota, que atravessamos com Fernando Henrique; a Sudoeste, Calvaria de Cima; a Oeste, a pequena A do Barbas, para a qual eu gostaria de voar, saltando das Capelas Imperfeitas, depois de tirar um cochilo à sombra da tumba de Dom Duarte, o Eloquente.


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Todos os nomes. Cá e lá.




Capelas Imperfeitas



Capelas Imperfeitas



Notas

(1) Alexandre Herculano,  A Abóbada, capítulo 2


(2) O testamento é citado por  José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol em Mosteiro da Batalha, p.12

(3) Alexandre Herculano, A Abóbada, capítulo 4



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William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (1835) | Encyclopaedia Britannica  |  Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, Clássicos Jackson, W.M. Jackson Inc., Rio de Janeiro, 1949  |   José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol, Mosteiro da Batalha, Ministério da Cultura e Instituto Português do Patrimônio Arquitetônico, Scala Publishers, London 2007 | John Frew and Carey Wallace, Thomas Pitt, Portugal and the Gothic Cult of Batalha, The Burlington Magazine, Vol. 128, No. 1001 (Aug., 1986), pp. 579-580+582-585 Published by: The Burlington Magazine Publications Ltd.