sexta-feira, 13 de junho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #3





Óbidos em noite de inverno



D. Filipa de Lencastre

A fria umidade do fim de domingo esvaziara os becos.  A gente que restara andava metida nas últimas casas de ginja ainda abertas. Já era quase o Ângelus quando entramos na vila. Óbidos sopitava no tédio e no langor costumeiro desde o século do primeiro rei Sancho. Há muito as ameias haviam perdido toda a serventia e a torre de menagem não vibrava ao chamado da tuba belicosa, se é que um dia vibrou essa torre que mais parecia aparato de cena para maravilhar as princesinhas d'antanho que recebiam Óbidos no enxoval de casamento, com as sedas de Bizâncio e as alfombras de Bruges, com uma falange do Menino Jesus e uma rêmige do Espírito Santo.

Uma delas, pálida e insossa, chegou de Álbion para selar a aliança que sustentava  João de Portugal contra outro João, o de Castela. O primeiro, um dos tantos filhos de Pedro, o Justiceiro, cujo amor sem limites por Inês de Castro nunca o impediu de fazer bastardinhos às dúzias e aos centos. O segundo, um monarca da casa de Trastâmara, ramo bastardo de outra casa bastarda, pois de bastardias é que as realezas de sangues são feitas. João de Castela se casara com a filha do D. Fernando, o Formoso, o fraco rei que fizera fraca a gente forte, e tinha tanto direito ao trono de Portugal quanto o Mestre de Avis, ou quanto eu, humilde cronista desses sucessos, ou quanto tu, hypocrite lecteur

Por que era tão intolerável que Portugal fosse governado por um rei castelhano, casado com uma princesa lusa de boa cepa, ao passo que parecia tão legítimo que um bastardo, futuro esposo de uma princesinha que nunca vira um sobreiro ou saboreara uma tigela de tremoços, viesse a governar Portugal? 

Por que tudo, menos os cães de Castela, ainda piores que os sequazes de Mafoma?

Bem sei que a pergunta ofende uns lusitanismos orgulhosos, que ainda os há, prontos a acudir com o broquel da Nacionalidade e a História em riste, a certificar pergaminhos, a compulsar in-folios, a aduzir razões, a lustrar armas e a assinalar barões. 

O que é esse pertencimento que nos ata e reata a umas poucas linhas tiradas no mapa, a um marco de sesmaria e a uma carta de foral? 

O que é cá e o que é lá?











Queiroz & Queirós


O ter vivido um quarto de século longe de Portugal bem poderia ter ensinado a Eça algumas lições sobre o cá e o lá, ou - o que dá no mesmo quando se trata de homens de letras - ter rendido alguns capítulos para o pão dos typographos da Lello & Irmãos. O livro que ele, nos seus anos derradeiros, começou a escrever a propósito não era de todo mau, mas ficou inacabado, dando azo a uma suspeita operação editorial por parte do amigo e velho colaborador Ramalho Ortigão. O que saiu do prelo foi um romancezinho très amusant, conquanto semi-apócrifo: A Cidade e as Serras.

Jacinto era o último descendente de uma família aristocrática portuguesa que fugira para a França com a derrota dos miguelistas. Em Paris onde nascera, o "Príncipe da Grã-Ventura" vivia como dandy riquíssimo, gozando, até os extremos da décadence, os requintes e prazeres de uma civilização ultra-sofisticada e toda avessa à Natureza. Ele se tornara paladino de um hedonismo tão ritualizado e intelectual que mal se distinguia da pura ascese, o que o aproximava tanto daquele outro esteta ultrafino, Jean Floressas des Esseintes, de À Rebours, que J.-K Huysmans publicara em 1884.

Contudo, o admirável maquinismo da sua mansão na Champs-Élysées se insurge contra a vontade do senhor. Os aparatos ultramodernos emperram, as engrenagens desafiam sua paciência, os engenhos esgotam sua confiança positivista no Progresso e na Ciência. Entre os setenta mil volumes da sua biblioteca de Alexandria, Jacinto definhava num niilismo farsesco, donde só foi arrancado quando uma carta prosaica o convocou à herdade ancestral, nos altos de uma serra junto ao Douro. 

A caminho de Portugal, toda a sua bagagem se extravia. Reduzido apenas aos recursos que a quinta rústica lhe podia oferecer, começa a tomar gosto pela vida bucólica. Perde a palidez, revigora, enrijece. Põe-se a remediar a miséria dos campônios e ganha fama de pai dos pobres; casa-se com uma Joaninha serrana e procria dois pimpolhos robustos. Faz-se homem comum, banal, simples e português, mas não abre mão do conforto de um telefone no solar quatrocentista que herdou. Jacinto aprende que estivera exilado em Paris e que a sua terra de pertencimento era a quinta de Tormes.

Entre tantas mentiras às quais nos habituaram os literatos, há poucas tão vergonhosas quanto o mito do retorno à natureza, combinado com o bucolismo factício de presépio e a patriotada das raízes & tradições. Não é estranho que A Cidade e as Serras fosse tão glorificado pelo regime arqui-reacionário de Salazar como prova da reconciliação final de Eça de Queiroz com a terra lusitana.

O que é esse pertencimento de que fala Eça? Apenas o direito senhorial que dura, e ao durar, ganha foros de tradição.

“O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de rendas em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.
No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis.” (capítulo 1)

Para o landlord, no entanto, não é a ligação com a terra que constitui a tradição, mas o regime dos privilégios reconhecidos pelo poder reinante. Quando desabam os Anciens Régimes, os aristocratas correm sempre para a Coblença mais próxima, a maldizer a terra em que nasceram: 

“E quando soube que o sr. D. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro – Jacinto Galeão correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando furiosamente:
- Também cá não fico! Também cá não fico!
Não, não queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado e escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos!” (capítulo 1)


Então aquele bondoso e gordíssimo Jacinto Galeão abalou para a França de Luís Felipe, assim como Jacinto deve ter fugido para a Versailles de Adolphe Thiers aos tempos da Comuna, mas o romance de Eça não dá uma só palavra sobre esse desastre da História, que bem pode ter contribuido para que o "Príncipe da Grã-Ventura", um nababo com fumos de pensador, cultivasse aquele estado de futilidade pasmacenta do qual ele só pôde ser curado pelo retorno salutar ao torrão ancestral, ao seu domínio senhorial sobre os pobres mujiques de um rincão perdido em Portugal, tão miserável quanto o eram as estepes russas ou as florestas dos Cárpatos.


O castelo de Óbidos


Karl Marx insiste em ter razão


Óbidos esteve a salvo das investidas da História nos últimos setecentos anos. Por isso, enquanto Ludmila, curiosa, se arriscava cada vez mais junto à borda escarpada, e Fernando Henrique, como um menino, saltitava à procura de ângulos propícios às fotografias, não pude deixar de pensar em lugares menos afortunados, que foram duramente assolados pela fraude dos pertencimentos nacionais, com a chancela da tradição e da História. Meses depois, encontrei finalmente o trecho de Marx que, em vão, esforçava-me por recordar ali:

“Não ousam pretender que o povo da Alsácia-Lorena anseia pelo abraço alemão; muito pelo contrário. Para punir o seu patriotismo francês, Estrasburgo, cidade dominada por uma cidadela autônoma, foi bombardeada durante seis dias de maneira cruel e bárbara, com projéteis e explosivos «alemães» que a incendiaram e mataram grande número dos seus habitantes indefesos! Contudo, o solo daquelas províncias tinha pertencido outrora ao antigo Império alemão. Parece, assim, que o solo e os seres humanos que nele cresceram têm de ser confiscados como propriedade alemã imprescritível. Se alguma vez a carta da Europa tiver de ser refeita segundo a veia de antiquário, não esqueçamos em caso algum que o príncipe eleitor de Brandeburgo foi, para as suas possessões prussianas, o vassalo da República polaca.

(Karl Marx, A Guerra Civil em França, Segunda Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores Sobre a Guerra Franco-Prussiana, 06-09 de Setembro de 1870)



Fernando Henrique e o Sobrinho de Enesidemo a inspecionar um beco de Óbidos


Os dois movimentos de Eça



Em A Cidade e as Serras, o movimento que traz Jacinto do exílio parisiense para a sua verdadeira terra natal, com todo o enraizamento que se segue, é apenas uma fábula fácil e divertida, quando lida à distância de mais de um século. Em certos momentos, Eça ultrapassa o limiar da chantagem sentimentalista:


"Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:
- V. ex.as não tem nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...
Era a minha terra!” (capítulo 8)

Para felicidade dos leitores das melhores letras portuguesas, há o Eça muito mais poderoso de Os Maias, cujo final destrói as ilusões piedosas do "chez nous",  do "cá" tão mentido, e restaura o movimento verdadeiro do mundo burguês moderno, rumo a um "lá" que se evade sempre, deixando cada um de nós entre o desânimo resignado e o ímpeto esperançoso:

“Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saía d'este passinho lento, prudente, correto, seguro, que é o único que se deve ter na vida. 
- Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva. 
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade: 
- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas. 
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memorias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto! 
 - Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem no Bragança pontualmente ás seis! 
Não aparecer por aí uma tipoia!... 
 - Espera! exclamou Ega. Lá vem um «americano», ainda o apanhamos. 
 - Ainda o apanhamos! 
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face: 
 - Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma... 
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras: 
- Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder... 
A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço: 
- Ainda o apanhamos! 
- Ainda o apanhamos! 
De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”

(Os Maias, final)







Karl Marx, A Guerra Civil em França  |  Maria Filomena Mónica, Eça de Queiroz, Tamesis, Woodbridge, 2005  | Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras, Lello & Irmão, Porto, 1955  |  Eça de Queirós, Os Maias, Círculo do Livro, São Paulo  |  Giuliano Lellis Ito Santos, Os três Antônios: a recepção de Eça de Queirós na década de quarenta  |   João Gaspar Simões, Vida e Obra de Eça de Queirós, Livraria Bertrand, Amadora, 1973


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