Batalha ao pôr-do-sol
D. João I
Estes testamentos de reis, sofrê-los não posso mais, que as medidas todas se me encheram. Mais uma coroa a gemer devoções sopradas pelos biocos d'algum confessor menos devoto que cortês; mais um cetro a planger centos de libera me Domine seguidos de centos de maravedis e não sei quantos marcos d'ouro e prata regalados à clerezia com real franqueza; mais um trono a ditar remissões imploradas numa linha e a remeter gordos legados noutra - e bofé que estouro!
Paciência, porém, com D. João, primeiro do nome, que veio num passo tão bom. "D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito por uma revolução, e confirmado por cinquenta vitórias, era o mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis da Europa" (1) No seu palácio de Sintra, o antigo Mestre de Avis, depois rei-cavaleiro aclamado pelo povo miúdo, lembrava-se que, no ano do Senhor de 1385, quando iriam as tropas portuguesas se bater com as hostes castelhanas numa tarde de agosto, no campo de Aljubarrota, fizera ele a promessa de construir um mosteiro dedicado à Santa Maria. De certo porque pretendia concedê-lo aos cistercienses, relutou el-rey em lho entregar à ordem de São Domingos, mas se deixou convencer pelas mil razões, todas mui angélicas, do frei Lourenço Lampreia - por acaso, dominicano -, e pelo razoar mui douto de João das Regras, pois não se refuga um de quibus supra demonstratum est que venha de Bolonha.
Não longe donde sucedeu, por intercessão de Santa Maria, o milagroso caso d'armas contra os de Castela, mandou el-rey erguer, em cumprimento da promessa, o milagroso Mosteiro de Santa Maria da Vitória, que cedo o vulgo apelidou com a simples voz de Batalha, talvez porque entendesse tratar-se antes de maravilha mundanal que de obra mística. Mas que sei eu? As sendas do Senhor são insondáveis e é estulto o sábio que se assoberba, pois Deus o confundirá.
O que é esse pertencimento que nos ata e reata a umas tantas léguas de lama, seixos e urzes?
Alexandre Herculano responderia que são "duas palavras formosíssimas, palavras de anjos — pátria e glória" desbastadas na pedra, fundidas no bronze, traçadas no chão.
Posto que profundo, o que separa o cá e o lá não é decreto que venha do céu, nem destino proclamado pela estirpe, nem direito do fundo dos tempos. Em verdade, começa com umas linhas no mapa, um inimigo que avança, uma vitória, um monumento. O mosteiro da Batalha não é, para Herculano, apenas o panteão da dinastia nova de Avis. Não é um rival de Alcobaça, mas coisa bem diversa. É o altar da nacionalidade que se forjou em torno de um rei meio plebeu, investido pela gente miúda e consagrado por cinquenta vitórias. É o nó que ata o santíssimo cavaleiro Nun'Álvares Pereira à gordíssima Dona Brites de Almeida, temor da lança castelhana e rainha das padeiras. É a vindicação do queixume dos mortos que vem de todos os vales de Portugal.
E como altar da Pátria, Batalha continua. Sob a abóbada da Sala do Capítulo jazem dois soldados desconhecidos, o que veio das trincheiras lamacentas de Flandres, e aquele trazido das guerras coloniais d'África.
O cá e o lá começa no chão, no ferro e no sangue, prolonga-se na pedra, no bronze, na cal, e ganha contorno na cartografia dos afetos. Mas esses afetos são teimosos e irritáveis. E como resistem à verdade!
De que adianta alertar aos inocentes que a boa Dona Brites nunca existiu e que nenhum castelhano jamais sentiu o peso do seu braço? Que o santarrão do Nun'Álvares fazia má figura como arremedo de Galaaz, e sempre foi muito ciumento de todos as recompensas e glórias humanas? Que Aljubarrota foi apenas um sideshow da Guerra dos Cem Anos? Que a dinastia de Avis era sustentada menos pela gente miúda de Fernão Lopes do que pelos ricos burgueses de Lisboa e do Porto, que faziam negócios com os flamengos de Bruges e Gante? Que o apoio da monarquia inglesa contra as investidas de Castela, apoiada pela França, exigiu o casamento do bastardo D. João com Dona Filipa, uma princesinha inglesa insossa, meio Plantageneta, meio Lancaster?
De que adianta avisar que a abóbada da Sala do Capítulo foi feita provavelmente por David Huguet e não por Afonso Domingues? E que ninguém sabe se ele era inglês, francês ou catalão, pois sempre foi fácil cruzar a pé as linhas das nações?
De que adianta lembrar que o próprio Alexandre Herculano só tomou consciência do lugar especial do mosteiro da Batalha por força de suas leituras inglesas? Mas sejamos justos: o que Herculano tomou de empréstimo aos ingleses, a saber, a associação entre arquitetura gótica e afirmação nacional, era feito de matéria-prima portuguesa. O sucesso do gothic revival britânico se devia, em grande parte, à difusão das ilustrações rigorosas que um arquiteto irlandês, James Cavenah Murphy, fez da planta, das elevações laterais e dos pormenores decorativos do Mosteiro de Santa Maria da Vitória.
De que adianta provar que, de fraude em fraude, se tecem as telas dos afetos sobre a qual se bordam, em ouro, as "duas palavras formosíssimas, palavras de anjos — pátria e glória" ?
Porém, se é assim, o que resta do pertencimento que nos ata e reata a umas tantas léguas de lama, seixos e urzes?
O que é cá e o que é lá?
William Beckford
William Beckford, escritor, viajante e esteta excêntrico começou a tomar parte da girândola em 1760 e partiu para o undiscovered country em 1844. A riqueza dos Beckford vinha dos engenhos de açúcar da Jamaica. Seu pai foi Lord Mayor de Londres, sua mãe descendia de Mary Stuart. Na infância teve lições de piano com o menino-prodígio Wolfgang Amadeus Mozart. No final da década de 1770, fez o Grand Tour pelo continente que, para os jovens britânicos desde o filho de William Pitt, passava também por Portugal.
Aos 21 anos, Beckford escreve a sua obra mais famosa, a novela gótico-oriental Vathek, admirada por Byron, Mallarmé, Lovecraft e Borges. Forçado a exilar-se com a esposa e a filha pequena por uma acusação de conduta sexual imprópria, passou dez anos no continente. Quando retornou em 1795, construiu, com ajuda do arquiteto James Wyatt e das ilustrações que Murphy fizera do mosteiro da Batalha, uma morada em feitio de abadia gótica na propriedade de Fonthill, que veio a ser outra das forças inspiradoras do gothic revival inglês.
A casa de Fonthill não sobreviveu à soberba de seus construtores. A torre central de mais de oitenta metros desabou, foi reconstruída e desabou novamente. A falência dos negócios da família obrigou Beckford a vender a propriedade. Quase nada mais resta hoje da famosa "abadia". O escritor excêntrico passou os últimos anos de vida entre sua coleção de obras de arte, lendo a biblioteca de Gibbon, que ele havia adquirido inteira.
Beckford era um caçador do exótico, das coisas de lá, mas em Batalha foi comovido como jamais havia sido antes, pelo sentimento profundo de estar em casa. "The Plantagenet cast of the whole chamber conveyed home to my bosom a feeling so interesting, so congenial, that I could hardly persuade myself to move away (...)".
Notas
(1) Alexandre Herculano, A Abóbada, capítulo 2
(2) O testamento é citado por José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol em Mosteiro da Batalha, p.12
(3) Alexandre Herculano, A Abóbada, capítulo 4
William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (1835) | Encyclopaedia Britannica | Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, Clássicos Jackson, W.M. Jackson Inc., Rio de Janeiro, 1949 | José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol, Mosteiro da Batalha, Ministério da Cultura e Instituto Português do Patrimônio Arquitetônico, Scala Publishers, London 2007 | John Frew and Carey Wallace, Thomas Pitt, Portugal and the Gothic Cult of Batalha, The Burlington Magazine, Vol. 128, No. 1001 (Aug., 1986), pp. 579-580+582-585 Published by: The Burlington Magazine Publications Ltd.
Estes testamentos de reis, sofrê-los não posso mais, que as medidas todas se me encheram. Mais uma coroa a gemer devoções sopradas pelos biocos d'algum confessor menos devoto que cortês; mais um cetro a planger centos de libera me Domine seguidos de centos de maravedis e não sei quantos marcos d'ouro e prata regalados à clerezia com real franqueza; mais um trono a ditar remissões imploradas numa linha e a remeter gordos legados noutra - e bofé que estouro!
Paciência, porém, com D. João, primeiro do nome, que veio num passo tão bom. "D. João I, plebeu por herança materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito por uma revolução, e confirmado por cinquenta vitórias, era o mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis da Europa" (1) No seu palácio de Sintra, o antigo Mestre de Avis, depois rei-cavaleiro aclamado pelo povo miúdo, lembrava-se que, no ano do Senhor de 1385, quando iriam as tropas portuguesas se bater com as hostes castelhanas numa tarde de agosto, no campo de Aljubarrota, fizera ele a promessa de construir um mosteiro dedicado à Santa Maria. De certo porque pretendia concedê-lo aos cistercienses, relutou el-rey em lho entregar à ordem de São Domingos, mas se deixou convencer pelas mil razões, todas mui angélicas, do frei Lourenço Lampreia - por acaso, dominicano -, e pelo razoar mui douto de João das Regras, pois não se refuga um de quibus supra demonstratum est que venha de Bolonha.
“Item porque nós prometemos no dia da batalha que houvemos com o rei de Castela, de que Nosso Senhor Deus nos deu vitória, mandar fazer em honra da dita Nossa Senhora Santa Maria, cuja véspera então era, ali acerca de onde ela foi, um Mosteiro, o qual, depois que foi começado, nos requereu o doutor João das Regras, do nosso conselho, e frei Lourenço Lampreia, nosso confessor, estando nós em o cerco da Melgaço, que ordenássemos que fosse da ordem de S. Domingos e nós duvidamos de o fazer, porque assim foi nossa promessa de se fazer em honra da dita Senhora Santa Maria: e responderam-nos que a dita ordem era muito da dita Senhora, declarando-nos as razões porquê. As quais, vistas por nós, acordamos e aprouve-nos ordenar que o dito Mosteiro fosse da dita ordem.” (2)
Não longe donde sucedeu, por intercessão de Santa Maria, o milagroso caso d'armas contra os de Castela, mandou el-rey erguer, em cumprimento da promessa, o milagroso Mosteiro de Santa Maria da Vitória, que cedo o vulgo apelidou com a simples voz de Batalha, talvez porque entendesse tratar-se antes de maravilha mundanal que de obra mística. Mas que sei eu? As sendas do Senhor são insondáveis e é estulto o sábio que se assoberba, pois Deus o confundirá.
Alexandre Herculano
"Vem de todos os vales e montanhas de Portugal o soído desse queixume de mortos"
Em Alcobaça, um rei metido em pelejas sem fim contra os mouros doou a um santo borguinhão, que cá jamais pisou, uma charneca onde os monges de Cister ergueram o que veio a ser o mausoléu de uma dinastia. Em Batalha passou-se bem outra coisa, pelo menos aos olhos do jovem Alexandre Herculano.
Em 1839, quando ainda se sentiam os odores fortes de pólvora e sangue seco da guerra civil, o jovem Herculano publicou o conto "A abóbada".
Era o ano de 1401 e andavam as obras de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado Batalha. O arquiteto inglês David Huguet sucedera ao mestre Afonso Domingues, que traçara o plano do mosteiro. Huguet afastou os operários portugueses, por considerá-los ineptos, e desprezou como contrário às regras da arte o traçado do mestre português, agora velho e cego. A arrogância do estrangeiro foi punida: a abóbada da Sala do Capítulo desabou. Manda D. João I chamar mestre Domingues, mas o velho estava ressentido com el-rey e se recusou a erguer a abóbada. A fúria do rei assoma, mas se desfaz contra o impávido orgulho lusitano do mestre Domingues, veterano de Aljubarrota. Comovido, o rei o abraça e o nomeia de novo mestre das obras do mosteiro.
O que é cá e o que é lá?
Em 1839, quando ainda se sentiam os odores fortes de pólvora e sangue seco da guerra civil, o jovem Herculano publicou o conto "A abóbada".
Era o ano de 1401 e andavam as obras de Santa Maria da Vitória, vulgarmente chamado Batalha. O arquiteto inglês David Huguet sucedera ao mestre Afonso Domingues, que traçara o plano do mosteiro. Huguet afastou os operários portugueses, por considerá-los ineptos, e desprezou como contrário às regras da arte o traçado do mestre português, agora velho e cego. A arrogância do estrangeiro foi punida: a abóbada da Sala do Capítulo desabou. Manda D. João I chamar mestre Domingues, mas o velho estava ressentido com el-rey e se recusou a erguer a abóbada. A fúria do rei assoma, mas se desfaz contra o impávido orgulho lusitano do mestre Domingues, veterano de Aljubarrota. Comovido, o rei o abraça e o nomeia de novo mestre das obras do mosteiro.
"Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abóbada da casa capitular não ficará por terra. Oh meu mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze anos de vida entregues a cogitações, a mais formosa das tuas imagens será realizada, será duradoura como a pedra em que vou estampá-la! Senhor rei, as nossas almas entendem-se: as únicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves, que tenho ouvido há muitos anos, são as que vos saíram da boca: só D. João I compreende Afonso Domingues; porque só ele compreende a valia destas duas palavras formosíssimas, palavras de anjos— pátria e glória. A passada injúria a vossos conselheiros a atribuí sempre, que não a vós, posto que de vós, que éreis rei, me queixasse: varrê-lá-ei da memória, como o entalhador varre as lascas e a pedra moída pelo cinzel de cima do vulto, que entalhou em fuste de coluna arrendada. Que me restituam os meus oficiais e obreiros portugueses; que português sou eu, portuguesa a minha obra! De hoje a quatro meses podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei, ou a casa capitular da Batalha estará firme, como é firme a minha crença na imortalidade e na gloria." (3)
O mestre Domingues jurou que ficaria três dias sem água nem comida, sentado sob o fecho da abóbada reconstruída, para provar sua solidez. O velho não suportou o rigor da provação e ali, no centro da Sala do Capítulo, foi encontrado morto. A abóbada magnífica não ruiu.
O mestre Domingues jurou que ficaria três dias sem água nem comida, sentado sob o fecho da abóbada reconstruída, para provar sua solidez. O velho não suportou o rigor da provação e ali, no centro da Sala do Capítulo, foi encontrado morto. A abóbada magnífica não ruiu.
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O que é cá e o que é lá?
Alexandre Herculano responderia que são "duas palavras formosíssimas, palavras de anjos — pátria e glória" desbastadas na pedra, fundidas no bronze, traçadas no chão.
Posto que profundo, o que separa o cá e o lá não é decreto que venha do céu, nem destino proclamado pela estirpe, nem direito do fundo dos tempos. Em verdade, começa com umas linhas no mapa, um inimigo que avança, uma vitória, um monumento. O mosteiro da Batalha não é, para Herculano, apenas o panteão da dinastia nova de Avis. Não é um rival de Alcobaça, mas coisa bem diversa. É o altar da nacionalidade que se forjou em torno de um rei meio plebeu, investido pela gente miúda e consagrado por cinquenta vitórias. É o nó que ata o santíssimo cavaleiro Nun'Álvares Pereira à gordíssima Dona Brites de Almeida, temor da lança castelhana e rainha das padeiras. É a vindicação do queixume dos mortos que vem de todos os vales de Portugal.
E como altar da Pátria, Batalha continua. Sob a abóbada da Sala do Capítulo jazem dois soldados desconhecidos, o que veio das trincheiras lamacentas de Flandres, e aquele trazido das guerras coloniais d'África.
O cá e o lá começa no chão, no ferro e no sangue, prolonga-se na pedra, no bronze, na cal, e ganha contorno na cartografia dos afetos. Mas esses afetos são teimosos e irritáveis. E como resistem à verdade!
De que adianta alertar aos inocentes que a boa Dona Brites nunca existiu e que nenhum castelhano jamais sentiu o peso do seu braço? Que o santarrão do Nun'Álvares fazia má figura como arremedo de Galaaz, e sempre foi muito ciumento de todos as recompensas e glórias humanas? Que Aljubarrota foi apenas um sideshow da Guerra dos Cem Anos? Que a dinastia de Avis era sustentada menos pela gente miúda de Fernão Lopes do que pelos ricos burgueses de Lisboa e do Porto, que faziam negócios com os flamengos de Bruges e Gante? Que o apoio da monarquia inglesa contra as investidas de Castela, apoiada pela França, exigiu o casamento do bastardo D. João com Dona Filipa, uma princesinha inglesa insossa, meio Plantageneta, meio Lancaster?
De que adianta avisar que a abóbada da Sala do Capítulo foi feita provavelmente por David Huguet e não por Afonso Domingues? E que ninguém sabe se ele era inglês, francês ou catalão, pois sempre foi fácil cruzar a pé as linhas das nações?
De que adianta lembrar que o próprio Alexandre Herculano só tomou consciência do lugar especial do mosteiro da Batalha por força de suas leituras inglesas? Mas sejamos justos: o que Herculano tomou de empréstimo aos ingleses, a saber, a associação entre arquitetura gótica e afirmação nacional, era feito de matéria-prima portuguesa. O sucesso do gothic revival britânico se devia, em grande parte, à difusão das ilustrações rigorosas que um arquiteto irlandês, James Cavenah Murphy, fez da planta, das elevações laterais e dos pormenores decorativos do Mosteiro de Santa Maria da Vitória.
De que adianta provar que, de fraude em fraude, se tecem as telas dos afetos sobre a qual se bordam, em ouro, as "duas palavras formosíssimas, palavras de anjos — pátria e glória" ?
Porém, se é assim, o que resta do pertencimento que nos ata e reata a umas tantas léguas de lama, seixos e urzes?
O que é cá e o que é lá?
William Beckford
"I withdrew from the contemplation of these tombs with reluctance"
William Beckford, escritor, viajante e esteta excêntrico começou a tomar parte da girândola em 1760 e partiu para o undiscovered country em 1844. A riqueza dos Beckford vinha dos engenhos de açúcar da Jamaica. Seu pai foi Lord Mayor de Londres, sua mãe descendia de Mary Stuart. Na infância teve lições de piano com o menino-prodígio Wolfgang Amadeus Mozart. No final da década de 1770, fez o Grand Tour pelo continente que, para os jovens britânicos desde o filho de William Pitt, passava também por Portugal.
Aos 21 anos, Beckford escreve a sua obra mais famosa, a novela gótico-oriental Vathek, admirada por Byron, Mallarmé, Lovecraft e Borges. Forçado a exilar-se com a esposa e a filha pequena por uma acusação de conduta sexual imprópria, passou dez anos no continente. Quando retornou em 1795, construiu, com ajuda do arquiteto James Wyatt e das ilustrações que Murphy fizera do mosteiro da Batalha, uma morada em feitio de abadia gótica na propriedade de Fonthill, que veio a ser outra das forças inspiradoras do gothic revival inglês.
A casa de Fonthill não sobreviveu à soberba de seus construtores. A torre central de mais de oitenta metros desabou, foi reconstruída e desabou novamente. A falência dos negócios da família obrigou Beckford a vender a propriedade. Quase nada mais resta hoje da famosa "abadia". O escritor excêntrico passou os últimos anos de vida entre sua coleção de obras de arte, lendo a biblioteca de Gibbon, que ele havia adquirido inteira.
Beckford era um caçador do exótico, das coisas de lá, mas em Batalha foi comovido como jamais havia sido antes, pelo sentimento profundo de estar em casa. "The Plantagenet cast of the whole chamber conveyed home to my bosom a feeling so interesting, so congenial, that I could hardly persuade myself to move away (...)".
Claustro manuelino |
Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (1835)
Seventh day - 9th June
Um conto gótico ready-made
A delightful morning sun was shining in all its splendour, when I awoke, and ran to the balcony, to look at the garden and wild hills, and to ask myself ten times over, whether the form I had seen, and the voice I had heard, were real or imaginary. I had scarcely dressed, and was preparing to sally forth, when a distinct tap at my door, gentle but imperative, startled me.
The door opened, and the Prior of Batalha stood before me. "You were disturbed, I fear," said he, "in the dead of the night, by a wailful voice, loudly proclaiming severe impending judgments. I heard it also, and I shuddered, as I always do when I hear it. Do not, however, imagine that it proceeds from another world. The being who uttered these dire sounds is still upon the earth, a member of our convent - an exemplary, a most holy man - a scion of one of our greatest families, and a near relative of the Duke of Aveiro, of whose dreadful, agonizing fate you must have heard. He was then in the pride of youth and comeliness, gay as sunshine, volatile as you now appear to be. He had accompanied the devoted duke to a sumptuous ball given by your nation to our high nobility: - at the very moment when splendour, triumph, and merriment were at their highest pitch, the executioners of Pombal's decrees, soldiers and ruffians, pounced down upon their prey; he too was of the number arrested - he too was thrown into a deep, cold dungeon: his life was spared; and, in the course of years and events, the slender, lovely youth, now become a wasted, care-worn man, emerged to sorrow and loneliness.
"The blood of his dearest relatives seemed sprinkled upon every object that met his eyes; he never passed Belem without fancying he beheld, as in a sort of frightful dream, the scaffold, the wheels on which those he best loved had expired in torture. The current of his young, hot blood was frozen; he felt benumbed and paralysed; the world, the court, had no charms for him; there was for him no longer warmth in the sun, or smiles on the human countenance: a stranger to love or fear, or any interest on this side the grave, he gave up his entire soul to prayer; and, to follow that sacred occupation with greater intenseness, renounced every prospect of worldly comfort or greatness, and embraced our order.
“Full eight-and-twenty years has he remained within these walls, so deeply impressed with the conviction of the Duke of Aveiro's innocence, the atrocious falsehood of that pretended conspiracy, and the consequent unjust tyrannical expulsion of the order of St. Ignatius, that he believes - and the belief of so pure and so devout a man is always venerable - that the horrors now perpetrating in France are the direct consequence of that event, and certain of being brought home to Portugal; which kingdom he declares is foredoomed to desolation, and its royal house to punishments worse than death.
”He seldom speaks; he loathes conversation, he spurns news of any kind, he shrinks from strangers; he is constant at his duty in the choir - most severe in his fasts, vigils, and devout observances; he pays me canonical obedience - nothing more: he is a living grave, a walking sepulchre. I dread to see or hear him; for every time he crosses my path, beyond the immediate precincts of our basilica, he makes a dead pause, and repeats the same terrible words you heard last night, with an astounding earnestness, as if commissioned by God himself to deliver them. And, do you know, my lord stranger, there are moments of my existence, when I firmly believe he speaks the words of prophetic truth: and who, indeed, can reflect upon the unheard-of crimes committing in France - the massacres, the desecrations, the frantic blasphemies, and not believe them? Yes, the arm of an avenging God is stretched out - and the weight of impending judgment is most terrible.
Uma tapeçaria de luz
As soon as we drew near, the valves of a huge oaken door were thrown open, and we entered the nave, which reminded me of Winchester in form of arches and mouldings, and of Amiens in loftiness. There is a greater plainness in the walls, less panelling, and fewer intersections in the vaulted roof; but the utmost richness of hue, at this time of day at least, was not wanting. No tapestry, however rich - no painting, however vivid, could equal the gorgeousness of tint, the splendour of the golden and ruby light which streamed forth from the long series of stained windows: it played flickering about in all directions, on pavement and on roof, casting over every object myriads of glowing mellow shadows ever in undulating motion, like the reflection of branches swayed to and fro by the breeze. We all partook of these gorgeous tints - the white monastic garments of my conductors seemed as it were embroidered with the brightest flowers of paradise, and our whole procession kept advancing invested with celestial colours.
Albion por toda a parte
I withdrew from the contemplation of these tombs with reluctance; every object in the chapel which contains them being so pure in taste, so harmonious in colour; every armorial device, every mottoed lambel, so tersely and correctly sculptured, associated also so closely with historical and English recollections - the garter, the leopards, the fleur-de-lis, "from haughty Gallia torn;" the Plantagenet cast of the whole chamber conveyed home to my bosom a feeling so interesting, so congenial, that I could hardly persuade myself to move away, though my reverend conductors began to show evident signs of impatience.
O Palácio do Graal
I could not fail observing the admirable order in which every - the minutest nook and corner of this truly regal monastery is preserved: not a weed in any crevice, not a lichen on any stone, not a stain on the warm-coloured apparently marble walls, not a floating cress on the unsullied waters of the numerous fountains. The ventilation of all these spaces was most admirable; it was a luxury to breathe the temperate delicious air, blowing over the fresh herbs and flowers, which filled the compartments of a parterre in the centre of the cloister, from which you ascend by a few expansive steps to the chapter-house, a square of seventy feet, and the most strikingly beautiful apartment I ever beheld. The graceful arching of the roof, unsupported by console or column, is unequalled; it seems suspended by magic; indeed, human means failed twice in constructing this bold unembarrassed space.
Foi há trezentos anos. Eu ia começar a dar aulas de literatura num curso pré-vestibular em Sorocaba. Na véspera, eu tinha passado a tarde na varanda da casa do Wan, no Embu, lendo "A Abóbada", de Alexandre Herculano. Fazia dois anos que Wan e Marina tinham voltado da sua primeira viagem a Portugal.
Aquela primeira aula foi a primeira de muitas. A necessidade facilmente se torna ofício e até vocação.
***
Aquela primeira aula foi a primeira de muitas. A necessidade facilmente se torna ofício e até vocação.
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Nos momentos de cansaço, muitas vezes me passou pela cabeça a imagem de um velho teimoso sentado sob a abóbada ousada que construiu. No entanto, não fiquei mais do que um minuto debaixo do fecho da abóbada da Sala do Capítulo. O claustro manuelino me atraía para a luz oblíqua da tarde que findava.
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Ludmila dava voltas e voltas a fotografar cada aresta do mosteiro. Eu tentava calcular quão longe estávamos de tudo. Pouco afeito à geografia da Estremadura, ignorava que a toponímia da região oferecia tesouros não menos requintados que os lavores góticos da Capela do Fundador.
A Norte, Azoia e Alcogulhe; a Leste, a Cova de Iria, em Ourém, onde a Virgem milagrosa contava segredos para os pastorezinhos e quase fez cair o Sol sobre a Terra em outubro de 1917, enquanto Lênin, Einstein e Freud estavam ocupados em mudar a face do mundo. Mas o que importa é que, a Sudeste, ficam Reguengo do Fetal e Alqueirão da Serra. A Sul, Porto de Mós e Aljubarrota, que atravessamos com Fernando Henrique; a Sudoeste, Calvaria de Cima; a Oeste, a pequena A do Barbas, para a qual eu gostaria de voar, saltando das Capelas Imperfeitas, depois de tirar um cochilo à sombra da tumba de Dom Duarte, o Eloquente.
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A Norte, Azoia e Alcogulhe; a Leste, a Cova de Iria, em Ourém, onde a Virgem milagrosa contava segredos para os pastorezinhos e quase fez cair o Sol sobre a Terra em outubro de 1917, enquanto Lênin, Einstein e Freud estavam ocupados em mudar a face do mundo. Mas o que importa é que, a Sudeste, ficam Reguengo do Fetal e Alqueirão da Serra. A Sul, Porto de Mós e Aljubarrota, que atravessamos com Fernando Henrique; a Sudoeste, Calvaria de Cima; a Oeste, a pequena A do Barbas, para a qual eu gostaria de voar, saltando das Capelas Imperfeitas, depois de tirar um cochilo à sombra da tumba de Dom Duarte, o Eloquente.
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Todos os nomes. Cá e lá.
Capelas Imperfeitas |
Capelas Imperfeitas |
Notas
(1) Alexandre Herculano, A Abóbada, capítulo 2
(2) O testamento é citado por José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol em Mosteiro da Batalha, p.12
(3) Alexandre Herculano, A Abóbada, capítulo 4
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