quinta-feira, 10 de julho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #6






Sintra sem tempo




A 5/ N 247 



Sábado de manhã,  Gi e Antonio nos vieram buscar. Antonio ao volante, tomamos a A5 rumo a Cascais, depois a N 247 até Azoia. Na Praia do Guincho, uma Ferrari Testarossa nos ultrapassou. No alto do espigão rochoso que se estende ao mar formando o Cabo da Roca, almoçamos no Moinho D. Quixote e conversamos a respeito da crise em Portugal e do europessimismo (ver Adendo ao Colóquio do Moinho). No meio da tarde, estávamos a Sintra. Não nos demoramos muito. Voltamos a Lisboa pelo IC 19.




IC 19


"O IC 19 (Itinerário Complementar), que liga Lisboa a Sintra, é a estrada mais perigosa de Portugal com um recorde de acidentes com vítimas, de acordo com o Relatório Anual da Sinistralidade Rodoviária de 2013.

Segundo o relatório divulgado na página da Internet da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) e citado hoje pelo jornal Correio da Manhã, o IC 19 tem seis "pontos negros", três dos quais com o maior indicador de gravidade dos 58 troços analisados.

Os "pontos negros" designam os lanços de estrada com o máximo de 200 metros de extensão, no qual se registaram, pelo menos, cinco acidentes no ano em análise.

O documento da ANSR indica que os seis 'pontos negros' do IC19 causaram no ano passado três mortos, quatro feridos graves e 51 ligeiros.

De acordo com o relatório, o troço mais grave do IC19 situa-se entre os quilómetros 4,6 e 4,8, junto à curva do Palácio de Queluz.

Neste troço registaram-se seis acidentes com um morto, dois feridos graves e sete ligeiros.


O IC19 é considerado a estrada mais perigosa do país, mas o IP7 é a via com mais "pontos negros" (sete), embora com acidentes menos gravosos."


(A estrada mais perigosa de Portugal, 7 de julho de 2014)




Palácio Nacional de Sintra: as janelas manuelinas


Um acidente gravoso no IC 19


"Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim..."

(Álvaro de Campos)



Rua das Padarias: o Castelo dos Mouros acima e ao fundo


Onde mora o perigo



Por que este poema nos parece um resumo da modernidade?

1. Por colocar em cena um automóvel de marca famosa, ainda em atividade, apesar dos percalços econômicos da General Motors.

2. Por representar a dualidade contraditória do automóvel como meio de satisfazer a liberdade individual de movimento e como cela metálica ambulante que isola e aprisiona o indivíduo.   


3. Por mostrar que, promovida a símbolo, a mercadoria "automóvel" reencanta o mundo daqueles que atribuem ao motorista-proprietário, apêndice reificado da coisa metálica fascinante, a faculdade de ser feliz e de corresponder a um papel principesco no imaginário das moças. Contudo, por guiar carro emprestado, o sujeito está ciente de seu status precário. 


4. Porque o livre ir e vir do sujeito individualista e solitário se dá num espaço esvaziado, que ele tenta fingir onírico.  Sua autonomia é vivida como pura errância. Ele tenta inutilmente fugir da falta de sentido e é acossado pela tentação do suicídio.


5. Porque o poema é justamente a declaração da autoconsciência dolorosa de tudo o que foi referido acima.




Mais uma figura do negativo


O poema é uma encenação niilista da condição moderna. Álvaro de Campos costuma ser apresentado como o heterônimo futurista de Fernando Pessoa, mas  ele só toma parte da modernidade subsumido no modo da negação: o não-ser, a ausência, a insatisfação, a destruição de si, o ressentimento quanto ao existente, o desejo impotente de estilhaçar-se numa miríade de sensações:


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
(A Tabacaria)


"Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Subitamente, tremulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
(...)
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas"
(Ode Marítima)



"Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!  
Ser completo como uma máquina!  
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!  
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,  
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento  
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões  
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(...)
Eu podia morrer triturado por um motor  
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.  
Atirem-me para dentro das fornalhas!  
Metam-me debaixo dos comboios!  
Espanquem-me a bordo de navios!  
Masoquismo através de maquinismos!  
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!"
(Ode Triunfal)


Esta subsunção da condição moderna à negatividade parece ter sido feita sob medida para satisfazer a Kulturkritik russo-germânica (Dostoiévski, Nietzsche, Weber, Simmel, Freud, Lukács, Adorno) que constitui a língua franca do pessimismo bem pensante de hoje. Um pessimismo bastante conservador, mas que aparenta ser lúcido e contestatário na medida em que repele a face mais ruidosa e reluzente do Capital, enquanto faz um meneio de cabeça cético diante das promessas do liberalismo político. E nada mais. Apenas o horizonte da crise (1). 

É muito tentador ver em Álvaro de Campos uma figura autenticamente moderna e aplicar-lhe quase mecanicamente os conceitos hauridos da Kulturkritik, mas isso deixaria passar o que mais importa, pois  não é a modernidade em si que Álvaro de Campos representa, mas a imagem negativa que o antimoderno Fernando Pessoa fazia dela no Portugal pobre e socialmente acanhado nas primeiras décadas do século XX, quando procurava ardentemente uma elevação mística da nação, fundada na recusa anti-materialista do industrialismo anglo-saxônico e da revolução bolchevique. 

Na verdade, Álvaro no seu Chevrolet, zanzando à noite pelas curvas da estrada de Sintra, é parente de certo cantor brasileiro que fez muito sucesso com esta canção:


Se você pretende saber quem eu sou
Eu posso lhe dizer
Entre no meu carro na Estrada de Santos
E você vai me conhecer

Você vai pensar que eu
Não gosto nem mesmo de mim
E que na minha idade
Só a velocidade anda junto a mim

Só ando sozinho e no meu caminho
O tempo é cada vez menor
Preciso de ajuda, por favor, me acuda
Eu vivo muito só

Se acaso numa curva
Eu me lembro do meu mundo
Eu piso mais fundo, corrijo num segundo
Não posso parar
(Roberto Carlos e Erasmo Carlos, "As curvas da estrada de Santos", álbum "Roberto Carlos", de 1969)


Se há proximidade entre a lírica da canção popular e a alta cogitação existencial do heterônimo de Pessoa é porque nelas a modernidade só é vivida como projeto autodestrutivo, que orgulhosamente volta as costas para o mundo existente. Em 1969, Roberto Carlos estava tão alheio aos atos institucionais do comando militar que governava o Brasil quanto aos atos anti-institucionais dos outros dois Carlos, Marighella e Lamarca.  O preço dessa consciência existencial - moderna à maneira de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos - é o alheamento abstrato, que deriva facilmente para a lamúria raivosa, para o sonho, induzido ou não pelo ópio, e para a especulação metafísico-social de rédeas soltas, do qual o Ultimatum é exemplo.

Se há quem tome por verdadeiras essas exasperadas caricaturas da modernidade é justamente porque a modernidade abre a possibilidade de ser vivida de maneira caricatural e exasperada. Mas isso é apenas uma das possibilidades de ser moderno (2).



Largo Rainha D. Amélia


Sábado à noite em Lisboa


É preciso lutar contra o consenso russo-alemão, contra esse Pacto Ribbentrop-Molotov metafísico. É preciso reconhecer nele não o diagnóstico de uma doença (metáfora tão ao gosto desses médicos), mas uma ilusão a ser desfeita. Tudo isso, porém, só pensei meses depois (ver a seção final de A claraboia e o holofote #12). Ainda estava anestesiado pela recordação de Álvaro de Campos no seu Chevrolet e de Roberto Carlos descendo as curvas da estrada velha de Santos, como eu fiz tantas vezes com meu pai. 

O colóquio sobre os impasses da União Europeia havia me chateado muito. Dentro do vagão do metro, voltando do Rossio, eu via as alças em que se apoiam os passageiros como pequenas forcas, mas a tristeza se desfez nas garfadas com que devoramos gulosamente o bacalhau à Braz no Laurentina. Na noite nublada, devidamente saciados e elevados pelas taças do Cartuxa de Évora 2009, Ludmila e eu descemos a Antonio Augusto de Aguiar e a Fontes Pereira de Melo até a Praça Marquês de Pombal. 

No dia seguinte, conforme o combinado, Fernando Henrique nos levaria a Mafra, Alcobaça, Batalha e Óbidos, não em um Chevrolet emprestado, mas no Toyota de sua propriedade, como o era o apartamento a Almada, segundo nos relatou com o orgulho de trabalhador que venceu.



*******



Notas:

(1) Há exatos dois anos, este blog teve início com um texto intitulado Dois Destinos, um exemplo do consenso russo-alemão que agora acredito necessário criticar e superar urgentemente.

(2) Todos os aspectos, mesmo os mais extremos, do que se convencionou chamar de post/hyper/ultra/liquid modernity  já estavam enfaticamente descritos na seção I do Manifesto Comunista como traços essenciais da modernidade capitalista, que viriam a ser dramatizados de modo metafísico-existencial pelo consenso russo-alemão. A novidade que pegou de surpresa muitos filósofos e sociólogos (em geral conservadores) a partir da década de 1950 foi constatar a difusão mundial e a transposição para a esfera do consumo de massa daqueles fenômenos que eram motivo de inquietação de uns poucos pensadores do século XIX e das elites culturais europeias do começo do século XX. "Pós-modernidade" não é, portanto, um nome para a dissolução recente da modernidade, mas sim um conceito que encobre a efetiva continuação do processo dissolvente/construtivo da modernidade capitalista segundo linhas que já eram vislumbradas desde o século XIX.  


Castelo dos Mouros


10 de julho

2012-2014

O Sobrinho de Enesidemo

2 anos

80ª edição




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