quinta-feira, 3 de julho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #5





Mafra, quando as nuvens se juntam



Sem fausto nem glória



Sítio de triste memória é esta Mafra nevoenta em que desembarcamos num domingo sem vida, junto da mole de pedra erguida em desatinado contraste com a pequenez da vila. Mandou-a erigir D. João V, destinada a basílica e convento dos capuchinhos da Arrábida, como caríssimo ex-voto pela graça alcançada de fazer D. Maria Ana da Áustria parir um varão coroável.  

Não sou dos que increpam de bisonharia o monarca, que mesmo Oliveira Martins tinha como certo não ser sempre bolônio, mas ainda nos consterna e causa espécie a prodigalidade tão oposta a todo cálculo econômico, o suntuário e extravagante de que revestiu todas as liturgias, praticando um ultracatolicismo face ao qual o espírito tridentino da Igreja de Roma, ela mesma tão amiga de pompas e magnificências, figurava austero e mesquinho como um ágape huguenote. 


Se houvéssemos de fazer comparação, inútil buscá-la no fausto do Rei-Sol - monarca em tudo premeditado e astucioso -, antes a acharíamos naqueles selvagens da América do Norte que sacrificavam alegremente suas riquezas no potlatch.  É coisa a se lamentar que nenhum Marcel Mauss tenha buscado inspiração na mole de pedra do Palácio-Convento de Mafra para um novo ensaio sobre a dádiva. Oxalá entenderíamos que os portugueses de então não eram os infames cafres da Europa, mas quem sabe seus simpáticos iroqueses.


Eis que, já a andar perdido nessas cogitações de etnologia imaginária, deixei de fazer menção ao justo direito que D. João V tinha de erguer um monumento como haviam feito seus mais ilustres predecessores, pois que se a dinastia afonsina teve Alcobaça e a casa de Avis, Batalha e os Jerônimos, cabia aos Bragança, sentados sobre o ouro e os diamantes do Brasil, verem sua glória perpetuada nos mármores do Palácio-Convento.  Das pedras das Minas Gerais às pedras de Mafra fechava-se o círculo dessa verdadeira economia da Idade da Pedra. 


Era tarde demais, porém, e a era neolítica corria para o seu final. O que depauperou Portugal não foi o esgotamento das minas mas as razias do Capital, de cujo rationale o embaixador D. Luís da Cunha tinha não pouca compreensão, observador atento das mudanças geopolíticas da Europa a partir de seus postos diplomáticos em Paris e nas poderosas praças financeiras de Amsterdão e Londres. D. Luís viu bem que as proporções diminutas do país não habilitavam o rei de Portugal a parceiro válido e igual nas disputas dinásticas e territoriais, como fora a Guerra da Sucessão Espanhola. No desconcerto das potências europeias, cabia ao reino lusitano apenas um papel ancilar, razão pela qual, ainda nos anos de 1730, o embaixador sugeria à boca pequena (que era de fato audaz o sugerido) o traslado das Cortes de Lisboa para o Rio de Janeiro para fugir à hegemonia marítima inglesa, consagrada pelos tratados de Utrecht (1713-1715) e reforçada pelos investimentos holandeses na Inglaterra nas décadas seguintes.  A sugestão, porém, não foi levada a cabo nem pelo Marquês de Pombal, que devia a D. Luís sua nomeação a secretário do reino de D. José I.  Apenas D. João VI, acoimado com a injusta pecha de fujão, teve a hombridade de tal cometimento, é certo que in extremis e escoltado pela armada do rei Jorge.

O Palácio-Convento de Mafra talvez se pretendesse a imagem do Quinto Império que Portugal aspirava ser, império sacro no paraíso terreal de mil anos, mas é apenas um um Titanic encalhado numa província acanhada, desprovida e erma de beleza. É a ruína de uma ambição desmesurada, desmentida pela expansão do verdadeiro Imperium, o desenhado pelas linhas de circulação do Capital. 


Tenho pena de D. João V. Freirático embora, e ávido espectador da combustão de cristãos-novos inocentes, o homem tinha imaginação ambiciosa, virtude vilipendiada no mundo burguês e militarista que se constituiu desde então; sobretudo virtude que escasseou nos monarcas portugueses posteriores, à exceção de D. Fernando II, que era da estirpe dos príncipes visionários como seu primo maluco Ludwig da Baviera. 

Tenho pena também de D. Manuel II, que antes do exílio em Inglaterra, passou aquela noite de outubro de 1910, a última em Portugal, nesta verdadeira fortaleza da solidão, neste palácio que é o triunfo incerto da desmesura contra os fatos.  O palácio que poderia ser a sede do Quinto Império veio a ser o ponto final de quase oito séculos de monarquia lusitana. 

Percebo que suas proporções imensas impressionam o bom português que é Fernando Henrique, que nele vê não o desperdício de vidas, trabalho e recursos, mas a afirmação de uma grandeza feita para durar. Todavia Mafra não me faz bem. É que eu estou a cavaleiro entre a lógica do Capital que rege minha vida, inclusive a extensão de minhas viagens, e o desatino do rei barroco, tão contrário àquilo ao qual também eu sou intimamente contrário: o conselho prudente do contador, as advertências da agências de rating,  a seriedade solene do dinheiro. Apesar de beato, e beato baboso, D. João V podia proclamar: “Meu avô temia e devia; meu pai devia; eu não temo nem devo.” Essa bazófia, eu a admiro, mas não a suporto.  Impotente para resolver esta contradição, resolvi deixá-la inteira e intacta, expondo em forma de florilégio o desencontro das  vozes e dos pensamentos de quem testemunhou, registrou e pensou o mundo da época de D. João V.

Essa não é para ser uma visita feliz.



Ludmila e Fernando Henrique acabam de deixar o Toyota no estacionamento ao lado do Palácio Convento



1.  A colônia


Ribeirão do Carmo, Tripuí, Rio das Mortes, Diamantina


"Há poucos anos que se começaram a descobrir as minas gerais dos Cataguás, governando o Rio de Janeiro Artur de Sá; e o primeiro descobridor dizem que foi um mulato que tinha estado nas minas de Paranaguá e Curitiba. Este, indo ao sertão com uns paulistas a buscar índios e chegando ao cerro Tripuí desceu abaixo com uma gamela para tirar água do ribeiro que hoje chamam do Ouro Preto, e, metendo a gamela na ribanceira para tomar água, e roçando pela margem do rio, viu depois que havia granitos da cor do aço, sem saber o que eram, nem os companheiros aos quais mostrou os ditos granitos, souberam conhecer e estimar o que se tinha achado tão facilmente, e só cuidaram que aí haveria algum metal não bem formado, e por isso não conhecido. Chegando, porém, a Taubaté, não deixaram de perguntar que casta de metal seria aquele.  E, sem mais exame, venderam a Miguel de Sousa alguns daqueles granitos, por meia pataca e oitava, sem saberem eles o que vendiam, nem o comprador que coisa comprava, até que se resolveram a mandar alguns dos granitos ao governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá; e, fazendo-se exame deles, se achou que era ouro finíssimo.
Em distância de meia légua do ribeiro do Ouro Preto, achou-se outra mina, que se chama a do ribeiro de Antônio Dias; e daí a outra meia légua, a do ribeiro do Padre João de Faria; e, junto desta, pouco mais de uma légua, a do ribeiro do Bueno e a de Bento Rodrigues. E, daí três dias de caminho moderado até o jantar, a do ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, descoberta por João Lopes de Lima, além de outra, que chamam a do ribeiro Ibupiranga. E todas estas tomaram o nome dos seus descobridores, que todos foram paulistas."

André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil (1711), Parte III, capítulo 2 p 164-5


O lugar dos Brasis 


“No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos.”

Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo (1942), p. 25


“Escravismo, tráfico negreiro, formas várias de servidão formam portanto o eixo em torno do qual se estrutura a vida econômica e social do mundo ultramarino valorizado para o mercantilismo europeu. A estrutura agrária fundada no latifúndio se vincula ao escravismo e através dele às linhas gerais do sistema; e as grandes inversões exigidas pela produção só encontram rentabilidade, efetivamente, se organizada em grandes empresas. Daí decorre o atraso tecnológico, o caráter predatório e “cíclico” no espaço e no tempo, que assume a economia colonial. A sociedade se estamentiza em castas incomunicáveis, com os privilégios da camada dominante juridicamente definidos, que de outra forma seria impossível manter a condição escrava dos produtores diretos.”

Fernando A. Novais, O Brasil nos quadros do antigo sistema colonial (1969), p. 62


Mariana:
a antiga vila do Ribeirão do Carmo foi rebatizada em 1745 em homenagem a D. Maria Ana da Áustria, esposa de D. João V


Mariana: Museu de Arte Sacra


Ouro Preto: ao  fundo, a Pedra do Itacolomi, que permitia aos paulistas reconhecer a região das minas do Tripuí


Outro Preto, antiga Vila Rica: Igreja de N. Sª do Carmo


Comarca do Rio das Mortes:
São João del Rey, elevada a vila em 1713, assim nomeada em homenagem a D. João V



Comarca do Rio das Mortes:
Tiradentes, antiga vila de São José del Rey, em homenagem ao D. José, Príncipe do Brasil, sucessor de D. João V


Distrito Diamantino:
Largo da Matriz de Diamantina



2. A metrópole


O absolutismo


"Só a vaidade dos reis é vaidade justa, porque a Providência já quando os formou para a dominação, logo os destinou para a figura de divindade, e com uma semelhança mais que material, e indiferente; porque a mesma essência de que são imagens, parece lhes comunica uma porção da ideia que representam. Por mais que os sucessos sejam regidos pelo acaso, contudo aos reis não os faz a fortuna, nem o valor; mas sim aquela mesma inteligência, que dá os primeiros e principais movimentos ao Universo. Ainda nos orbes celestes vemos alguns corpos, que parece custaram mais cuidado ao Autor do mundo, pois brilham com luz mais firme, mais intensa, e mais constante. Os monarcas parecem-se com os mais homens na humanidade, mas diferem nas qualidades da alma: a coroa, que os cinge, não só lhes ilustra a cabeça, mas também o pensamento; o cetro, que indica a majestade, também inspira o esforço; e a grandeza no poder também influi extensão no espírito; por isso na arte de reinar não há regras que possam ser sabidas por quem não é rei."

Matias Aires, Reflexões sobre a vaidade dos homens (1752), fragmento 51



Um império barroco


“Mesmo em Portugal, a exploração dos recursos minerais brasileiros e o grande florescimento do comércio português com a colônia permitiram à metrópole resolver o problema do balanço deficitário com o resto da Europa por meio do ouro que, em conjunção com os diamantes, enriqueceu a Coroa, a Igreja e a Corte, e forneceu a D. João V recursos suficientes para que não fosse obrigado, durante seu longo reinado (1706-1750), a convocar as Cortes e lhes pedir dinheiro. Conta-se que esse monarca disse, ao tratar do assunto: “Meu avô temia e devia; meu pai devia; eu não temo nem devo.”

Charles R. Boxer, O Império Marítimo Português (1969), p. 171

“Na essência é a falta duma burguesia forte e, por consequência, do capitalismo, elemento de ponderação prática e realista, que explicam esta explosão final e desmedida do barroco, em Portugal. O ouro, prêmio grande duma loteria dissolvente, que enriquecera o Rei e a fidalguia, substituíra-se em Portugal ao bom senso e ganhos trabalhosos duma classe média, que não prestava sem condições o seu apoio e que servia de elemento moderador, na medida em que a partilha do poder evita os desmandos oligárquicos duma classe.” 

Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1950), tomo 2, p.88



A esplanada diante do Palácio-Convento




Parte da fachada de 230 m do Palácio, Basílica e Convento de Mafra



3. O monarca


A paz doméstica de D. João V 


Cenas do cotidiano da família real em 1717, segundo a Gazeta de Notícias, que era publicada uma vez por semana.

“A Rainha N. Sª acompanhada da Sereníssima Senhora Infanta D. Francisca foi terça feira passada à Igreja de S. Roque em público a oferecer ao glorioso Santo Inácio o novo Infante.” (2 de setembro)

“El-Rei nosso Senhor esteve a semana passada na vila de Sintra donde passou à de Mafra a ver um sítio para um convento de Capuchos Arrábidos que ali quer fundar. Tem-se feito preces públicas em todos os conventos e igrejas de esta cidade para implorar o bom sucesso das armas cristãs na Hungria contra os Infiéis.” (18 de setembro)

“Quarta feira fez-se uma Procissão solene desde a Santa Igreja Patriarcal até à de S. Roque, em ação de graças do bom sucesso da Rainha N. Sª no nascimento do Infante D. Pedro, e concorreram a ela todas as religiões e clero de Lisboa Ocidental, e se fez tudo com muita solenidade e magnificência.” (23 de setembro)

“El-Rei N. S. partiu domingo para Mafra a lançar a primeira pedra do templo e convento que quer edificar naquele sítio para os religiosos capuchos da província da Arrábida.” (18 de novembro)


“Sua Majestade que Deus guarde, foi para Mafra em 14 deste mês assistir à benção que em 17 do mesmo fez o senhor Patriarca, de benzer, e pôr a primeira pedra nos alicerces da Igreja de Santo Antônio, que o mesmo senhor manou edificar junto à dita vila, e esta função se executou com grande magnificência e luzimento.” (25 de novembro)

citado em Manuel Bernardes Branco, Portugal na época de D. João V (1886), pp. 50-1



As liberalidades pias do Fidelíssimo  


"Toda abundância de graças e honras, com que o magnânimo rei D. João V engrandeceu a sua real capela, ainda se não proporcionava com o dilatado de seu pio e régio coração, e assim obtendo da Santidade de Clemente XI a Bula Aurea, que começa: In supremo Apostalatus solio, expedida em 7 de novembro de 1716, fez exaltar a sua insigne colegiada em catedral metropolitana e patriarcal com a invocação de Nossa Senhora da Assunção, dividindo para este efeito esta cidade e seu arcebispado em duas partes, estabelecendo na parte ocidental um patriarca, a quem uniu a dignidade de capelão-mor com jurisdição de metropolita, o qual como patriarca ficou superior a todos os arcebispos, e bispos do reino, e ainda ao de Braga.
Para maior decoro e magnificência da sua dignidade lhe alcançou a regalia de andar vestido em hábito púrpura à maneira do arcebispo Salisburgense, primaz da Alemanha, e outros tantos privilégios e preeminências, unido-lhe também as honras e tratamento de cardeal, que lhe mandou dar por decreto de 17 de fevereiro de 1717. (...) Para tal fim consignou do patrimônio real e do rendimento das quintas de Minas Gerais para sustentação do patriarca e seus sucessores, em perpétua doação, todos os anos 220 marcos d'ouro, e o grande rendimento da Lezíria da Foz de Almonda, para que sem prejuízo dos pobres, pudesse luzir com esplendor de tão alta dignidade. E prosseguindo na ampliação da nova catedral, criou nova dignidade e cônegos para formarem um respeitoso cabido, enchendo-os de grande autoridades e honras, além das que o papa Clemente XI lhes outorgou pela constituição Gregis Dominici, de 3 de julho de 1718.
Continua a exercitar novas grandezas que já pareciam impossíveis à imaginação, e somente sondáveis e factíveis à dilatada esfera da sua ideia. Tornou a unir as duas cidades em uma só, e por constituição do papa Benedicto XIV passada em 13 de dezembro de 1740, e que principia com Salvatoris nostri, fez abrogar e extinguir a antiquíssima Sé de Lisboa Oriental, incorporando e estabelecendo uma só igreja patriarcal, com onímoda jurisdição metropolitana; e para que as dignidades se distinguissem mais especificamente, erigiu um excelentíssimo colégio de 24 principais com hábito cardinalício, e 72 prelados ou ministros de hábito prelatício, divididos em várias hierarquias, a saber - prelados, presbíteros com insígnias episcopais, e exercício do pontifical, protonotários, subdiáconos e acólitos, 20 cônegos, 12 beneficiários de 700$000 réis, 32 beneficiados, 32 clérigos beneficiados e outros mais ministros da igreja patriarcal."

Padre João Batista de Castro, Mappa de Portugal (1763) citado em Manuel Bernardes Branco, Portugal na épocha de D. João V, pp. 146-147



interior da Basílica de Nossa Senhora e Santo Antonio de Mafra



altar da Basílica


Um dos seis órgãos da Basílica, feitos em pau-santo, com ferragens de bronze feitas no Arsenal de Lisboa



4. As finanças do reino


Os que se exasperavam

"D. João V não regateava o preço das cousas; antes, como rei brasileiro, rico sem saber como, punha a honra na despesa, imaginando espantar o mundo com o modo perdulário com que dissipava. Mais de duzentos milhões de cruzados foram para Roma; não tem conta o que deu pelo reino às igrejas, aos conventos de frades e freiras; e na sua fúria de ser o esmoler-mor do catolicismo, lembrava-se de todos, derramando por toda a parte o ouro do Brasil: Santo Antão de Benavente, S. Francisco de Badajoz, a capela dos portugueses de Londres, o presepe de Belém na Palestina, os templos de Jerusalém, para não falar nos de Roma. - Alexandre de Gusmão, atônito, apertava a cabeça com ambas as mãos, exclamando: a fradaria absorve-nos, a fradaria suga tudo, a fradaria arruína-nos!"  

Oliveira Martins, História de Portugal (1879) tomo II, p. 150



“Ficou o rei, que está em casa, agora esperando que regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes in-fólios, Então diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar, ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nosso sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer que afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas, graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda (...)

José Saramago, Memorial do Convento (1982), p 283




Será mesmo?

Se é verdade que a maior parte do ouro brasileiro que chegava a Portugal tinha como destino final a Inglaterra, ou era transformado nas pedras de Mafra, ou desperdiçado nas igrejas e no patriarcado de Lisboa, parte dele infiltrou-se no campo, como provam as quintas e os solares encantadores construídos ou reconstruídos nesse período. (...)
Um balanço realizado em 1750 referente ao império português do Atlântico sul teria apresentado mais lucro do que perdas, se o reinado de dom João V fosse considerado como um todo. De fato, o governador de Angola em 1749-53, em sua correspondência particular, denunciava esse território como uma colônia corrupta e viciada, à beira da ruína total, mas, na correspondência oficial, afirmava que a exportação de escravos para o Brasil aumentara acentuadamente durante o seu mandato (...) No Brasil, apesar de vários conselheiros municipais de Minas informarem à Coroa em 1750-1 que a produção de ouro estava decrescendo de forma desastrosa e que o número de escravos importados diminuíra de modo alarmante, as frotas anuais do Rio de Janeiro continuavam ricamente carregadas. Da mesma maneira, embora os senhores de engenho da Bahia e de Pernambuco se queixassem mais do que nunca de problemas econômicos, cargas substanciais de açúcar continuavam sendo enviadas para Lisboa nas frotas de Salvador e Recife.


Charles R. Boxer, O Império Marítimo Português (1969), p. 187-8



Santo Elias: uma das esculturas encomendadas na Itália por D. João V


Os corredores do Palácio



5. A parte pensante do reino



Os estrangeirados


"Com mão larga e escolha segura, [D. João V] soube pôr estrangeiros e estrangeirados ao serviço de suas preocupações de senhor dum império.
Não foram poucos os estrangeiros que chamou a Portugal, para saciar a sua sede de fausto e de teatro: arquitetos, músicos, pintores e gravadores, empresários de ópera e cantores sacros e profanos.
(...) Mais nítida e predominante foi, todavia, a sua tendência a aproveitar os estrangeirados na defesa diplomática, na administração e na solução os problemas da soberania portuguesa no além-mar e, em particular, no Brasil.
(...) Estrangeirados, é certo, mas sem deixar de ser, por isso, portugueses. De todos esses diplomatas o mais estrangeirado foi seguramente D. Luis da Cunha (...) Todavia, ele permanece português, com a marca indelével da genuidade de origem."

Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1950), tomo 2 p. 93


D. Luís da Cunha, médico consultante mas não consultado



"Grande seria a minha fortuna se erigindo-me em médico consultante, ainda que não consultado, e só pelo amor que tenho ao doente, indico os remédios que se me oferecem, não aprendidos na escola de Avicena,, mas nas observações que tenho feito em semelhantes enfermidades"

"Se pois V. A. quiser dar um a volta aos seus reinos, observará em primeiro lugar a estreiteza dos seus limites, à proporção do seu vizinho. Achará, não sem espanto, muitas terras usurpadas ao comum, outras incultas, muitíssimos caminhos impraticáveis, de que resulta faltar o que elas podiam produzir, e não haver entre as províncias a comunicação necessária para o seu comércio: achará muitas e grandes povoações quase desertas, com as suas manufaturas arruinadas, perdidas, e extinto totalmente o seu comércio: achará que a terça parte de Portugal está, possuída pela Igreja, que não contribui para a despesa e segurança do Estado, quero dizer, pelos cabidos das dioceses, pelas colegiadas, pelos priorados, pelas abadias, pelas capelas, pelos conventos de frades e freiras: e, enfim, achará que o seu reino não é povoado como pudera ser, para prover de gente as suas largas e ricas conquistas, de que separadamente tratarei.
(...)
Da mesma sorte dissera que V. A. Acharia certas boas povoações quase desertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da Covilhã, Fundão, e cidade da Guarda e de Lamego; em Trás-os-Montes a cidade de Bragança, e destruídas as suas manufacturas. E se V. A. perguntar a causa desta dissolução, não sei se alguma pessoa se atreverá a dizer-lha com a liberdade que eu terei a honra de fazê-lo; e vem a ser que a Inquisição prendendo uns por crime de judaísmo e fazendo fugir outros para fora do reino com os seus cabedais, por temerem que lhos confiscassem, se fossem presos, foi preciso que as tais manufacturas caíssem, porque os chamados cristãos-novos os sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam, eram em grande número, foi necessário que se espalhassem e fossem viver em outras partes e tomassem outros os ofícios para ganharem o seu pão, porque ninguém se quis deixar morrer de fome.
A segunda parte da causa, que não é irreparável, como em seu lugar direi, foi a permissão que S. Majestade deu aos ingleses para meterem em Portugal os seus lanifícios, principalmente os panos, havendo doze anos que o dito senhor os tinha proibido, de que resultava que as nossas manufaturas se iam aperfeiçoando de tal maneira, que eu mesmo vim a França e passei a Inglaterra vestido de pano fabricado na Covilhã ou no Fundão. Para esta desgraça concorreram três coisas, a primeira querer o senhor rei D. Pedro comprazer com a rainha de Inglaterra, com a qual acabava de fazer um tratado de perpétua aliança defensiva e lhe pedia que levantassem pragmática; a segunda ser D. João Methuen [no original Matuen], seu embaixador, irmão de um grande mercador de panos e assim trabalhou em causa própria, sem embargo de que sempre lhe fui contrário; e a terceira, que pôs a foice à raiz, foi que o dito embaixador fez conceber a certos senhores, cujas fazendas pela maior parte consistem em vinhos, que estes teriam melhor consumo em Lisboa pela grande quantidade que deles sairia para fora, se por equivalente desta permissão, Inglaterra se obrigasse a que os vinhos de Portugal pagassem de direitos a terça parte menos que os de França; e isto bastou para que o tratado se concluísse e para que as nossas fábricas, como acima digo, totalmente se perdessem 
Não há dúvida que a extração dos nossos vinhos cresceu incomparavelmente, mas sujeita a que a poderemos perder todas as vezes que os ingleses deixarem de se conformar ao pé da letra com o mesmo tratado, isto é, que os vinhos de França não paguem de direitos a terça parte de mais do que os de Portugal, porque logo não terão [a] saída que agora têm, enquanto os primeiros pagam não só a dita parte de mais, mas metade; e nem por isso se deixe de tirar de Bordéus uma excessiva quantidade por serem melhores, mais baratos e ser mais breve o seu transporte.
Contudo esta grande exportação de vinhos não é tão utilíssima como se imagina, porque os particulares converteram em vinhas as terras de pão, tirando assim delas maior lucro, mas em desconto a generalidade padece maior falta de trigo, de centeio e cevada, de sorte que se o vinho sai de Portugal, é necessário que de fora lhe venha maior quantidade de pão."

D. Luís da Cunha, Testamento Político (1747)


"... considerei que sua Majestade se achava em idade de ver florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil, se nele, tomando o título de Imperador do Ocidente, quisesse ir estabelecer naquela região a sua Corte, levando consigo todas as pessoas que, de ambos os sexos a quisessem acompanhar, que não seriam poucas, com infinitos estrangeiros; e na minha opinião o lugar mais próprio de sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro, que em pouco tempo viria a ser mais opulenta que a de Lisboa. (...)

Qual a residência para a monarquia será mais vantajosa, aquela em que pode viver precariamente esperando ou temendo, que cada dia o queiram despojar do seu diadema ou aquela em que pode dormir o seu sono descansado e sem algum receio de que o venham inquietar? Problema que em duas palavras resolvo dizendo, que o dito príncipe para poder conservar Portugal necessita totalmente das riquezas do Brasil e de nenhuma maneira das de Portugal, que não tem para sustentar o Brasil, de que se segue, que é mais cômodo e mais seguro estar onde se tem o que sobeja, que onde se espera o de que se carece". 

D Luís da Cunha, Instruções inéditas a Marco Antônio de Azevedo Coutinho (cerca de 1730-1740), p.211; 217-218










A biblioteca joanina de Mafra



6. O sistema-mundo


A satisfação do sagaz brichote

"Os ingleses tiram de Portugal, vinhos em grande quantidade, azeite moderadamente, couros da Bahia, pau do Brasil, laranjas, limões, romãs, figos, passas, amêndoas, bengalas do Brasil, casquinha da ilha da Madeira, vinho da mesma ilha, tabaco do Brasil em rolo.
Mandam para Portugal panos, estamenha, droguetes, sarjas, sempiternas, baetas, meias de seda e de laia, chapéus, couros preparados, carnes salgadas, manteiga, roupa de Silésia, estanho, cortiça, trigo, centeio, cevada, farinha, gesso, carvão, fivelas, machados, enxadas, ferramentas diversas, alfinetes, agulhas e outras mais coisas." 

D. Luís da Cunha, Testamento Político (1747)


“O papel essencial desempenhado pelo ouro brasileiro no aumento das exportações inglesas para Portugal durante o reinado de D. João V com frequência foi enfatizado pelos ingleses ali domiciliados. Em 1706, o cônsul em Lisboa escreveu que o comércio dos fabricantes de lã ingleses “melhora dia a dia e melhorará mais à medida que seu país for se tornando mais rico, o que necessariamente tem de acontecer se puderem continuar a importar tanto ouro do Rio todos os anos". Em 1711, os mercadores residentes em Lisboa atribuíram o crescimento do seu negócio principalmente “ao incremento do comércio português com os Brasis e à grande quantidade de ouro que de lá é trazida.”

Charles R. Boxer, O Império Marítimo Português (1969), p. 179



O verdadeiro Imperium

"No mar, sem nenhuma frota principal inimiga para enfrentar, a Marinha inglesa e a decadente esquadra holandesa podiam demonstrar a flexibilidade de um poderio naval superior. O novo aliado, Portugal, podia ser assistido pelo mar, enquanto Lisboa, por sua vez, proporcionava uma base naval avançada, e o Brasil, uma fonte de ouro. Era possível enviar soldados para o hemisfério ocidental para atacar as possessões francesas nas Antilhas e América do Norte, e esquadras podiam caçar navios espanhóis que transportavam metais preciosos. A tomada de Gibraltar não só deu à marinha inglesa uma base para controlar a saída do Mediterrâneo, como dividiu as bases franco-espanholas e as frotas."

Paul Kennedy, Ascensão e queda das grandes potências (1987), p. 108



"Embora a fuga do capital excedente dos investimentos holandeses para os ingleses só se tenha tornado maciça nessa época, a transferência já havia começado uns trinta anos antes, quando chegava ao fim a Guerra da Sucessão Espanhola. Essa guerra mostrara, sem sombra de dúvida, que a ascensão do poderio inglês no mar e do poderio francês em terra havia criado uma situação em que os holandeses não tinham nenhuma vantagem competitiva na luta europeia pelo poder. (...)
Não havia muito mais que um credor pudesse desejar, de modo que, na década de 1710, o capital excedente holandês começou a saltar do apinhado barco holandês para o inglês, na esperança de conseguir uma carona para o comércio e a colonização do Atlântico, ambos em expansão."

Giovanni Arrighi, O longo século XX (1994), p. 210-11 


Os petrechos prosaicos do Palácio de Mafra



 7. Antes de partir


 O Palácio-Convento julgado por Herculano  e Oliveira Martins


"Colocai pela imaginação Mafra ao pé da Batalha, e podereis entender quanto é clara e precisa a linguagem destas crônicas, lidas de poucos, em que as gerações escrevem misteriosamente a história de seu viver (...) A Batalha representa uma geração enérgica, moral, crente. Mafra, uma geração efeminada, que se finge de forte e grande. A Batalha é um poema de pedra: Mafra é uma sensaboria de mármore. Ambas, ecos perenes que repercutem, nos séculos que vão passando, a expressão complexa, e todavia clara e exata, de duas épocas históricas do mesmo povo, sua juventude viçosa e robusta, e sua velhice caquética."

Alexandre Herculano, revista "Panorama" (1843)  cit. Manuel Bernardes Branco, Portugal na épocha de D. João V, pp. 156-157


"Mafra devorou, em dinheiro e gente, mais do que Portugal valia."

Oliveira Martins, História de Portugal (1879), tomo II, p. 151



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Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, Martins Fontes, São Paulo, 1993  |  André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil, Editora Itatiaia Ltda, Belo Horizonte, 1997  |  Giovanni  Arrighi, O longo século XX, Contraponto e Editora da Unesp, Rio de Janeiro e São Paulo, 1996  |  Charles R. Boxer, O Império Marítimo Português, Companhia das Letras, São Paulo, 2002  |  Manuel Bernardes Branco, Portugal na Epocha de D.João V, Livraria de Antonio Maria Ferreira Editor, Lisboa, 1886  | Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Ministério das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, Rio de Janeiro, 1956  |  D. Luís da Cunha, Testamento Político  | D Luís da Cunha, Instruções inéditas a Marco Antônio de Azevedo Coutinho, Academia de Ciências de Lisboa/Imprensa da Universidade, Coimbra, 1929  |  Júnia Ferreira Furtado, Os oráculos da geopolítica iluminista: D. Luís da Cunha e Jean-Baptiste Bourguignon D’Anville na construção da cartografia européia sobre o Brasil  |  Paul Kennedy, Ascensão e queda das grandes potências, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1989  | Joaquim Romero Magalhães, O projecto de D. Luís da Cunha para o império português in Estudos em homenagem a Luís Antonio de Oliveira Ramos, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004  |  J.P. Oliveira Martins, História de Portugal, tomo II, Livraria Bertrand, Lisboa, 1882  |  Rui Moura (coordenador), História de Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010  |  Fernando A. Novais, O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial in Brasil em Perpectiva, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1971  | Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia, Editora Brasiliense Ltda, São Paulo, 1957  |   José Saramago, Memorial do Convento, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1996  | Ronaldo Vainfas (direção), Dicionário do Brasil Colonial, Objetiva, Rio de Janeiro, 2000



Mafra vista da escadaria do Palácio-Convento






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