Lisboa em dia de vento forte
Parte I
A glória lusa segundo os áulicos
Parte II
Agoniado pelas falcatruas patrióticas do Estado - o Novo e o Velho -, tanto o dos salazares quanto o dos dom-manuéis, o quarto ou quinto de lusitanidade de meu coração se revolta e entorna. Não é dessa gente que vim. Não é desses antonios-ferro ou joões-de-barro que procedo. Se Portugal me fala e me diz, se a gente lusa me é tão familiar e simpática, é por me não falecer o sangue ruim da arraia-miúda que mourejava, do povinho que nunca aprendeu a nadar e sempre assistiu - perplexo e famélico - ao desembarque dos tesouros dos Brasis e das Índias, dando por falta dos marinheiros seus parentes que ficaram no fundo do mar a alimentar a profusão dos peixes ou dos que se fartaram de fomes e se enriqueceram de febres no ultramar.
1.
Parte I
A glória lusa segundo os áulicos
O autocarro 727 que tomamos na rua Braamcamp nos deixou em Belém. Sexta-feira de vento forte, ora a ameçar a chuva, ora a sorrir o sol. Um verdadeiro campo de monumentos à glória lusitana diante de nós.
Quando comecei esta viagem, o sentido do cá e do lá me eram ditados pela Canção do Exílio, que todos os brasileiros conheceriam não houvesse tanta gente ágrafa e tantos analfabetos funcionais na terra das palmeiras onde canta o sabiá.
"Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá."
O que o bardo brasileiro não viu nem podia ver, pois não é dado aos bardos enxergar o que está abaixo da linha d'água ou do próprio nariz, é que os Estados-nações têm poderosos dispositivos para polarizar emoções de pertencimento: as mobilizações guerreiras, as vitórias, as conquistas, os heróis. Essas máquinas de glória repousam sobre uma ideia toda factícia, que nos tentam incutir desde cedo: a ideia de pátria, isto é, de uma cena original do pertencimento. À primeira vista, a pátria seria o útero e o seio materno transpostos para a geografia. Melhor então ajustar o significante ao significado, chamando-a "mátria", mas isso já seria cair na armadilha de acreditar num pertencimento original, tão íntimo e umbilical quanto o da vida uterina. O nome "pátria" está certo e diz muito. Pátria é mesmo pátria. Odeio dar razão a Lacan, mas é do nome do pai que se trata, ou seja, da lei, dos imperativos, dos deveres; o campo dos cerceamentos estruturadores; o campo das proscrições; o campo da pergunta decisiva que define os territórios e desenha pela primeira vez o cá e o lá: estás ou não estás conosco, pá?
Paisagens natais, guerras, conquistas e mundiais de futebol são dispositivos que polarizam discursos de pertencimento, os quais podem ser tão suaves como uma berceuse, como o é a Canção do Exílio; tão belicosos e sanguinários como La Marseillaise, ou plenos de exaltação do absurdo auto-sacrifício como o poema de Lord Tennyson:
"When can their glory fade?
O the wild charge they made!
All the world wondered.
Honor the charge they made,
Honor the Light Brigade,
Noble six hundred."
No entanto, Ludmila e eu caminhávamos lentamente pela Praça do Império, tendo às costas o Mosteiro dos Jerônimos, à nossa direita o Centro Cultural, à nossa frente, o Padrão dos Descobrimentos, a nosso redor a Torre de São Vicente de Belém, o Palácio Nacional, a antiga praia do Restelo, as construções remanescentes da Exposição do Mundo Português de 1940 e não sei quantos outros templos da grandeza imaginária. Dava uma vontade louca de declamar aos brados, contra o vento que soprava rijo da barra do Tejo:
Cannon to right of them,
Cannon to left of them,
Cannon behind them
Volley'd and thunder'd;
Storm'd at with shot and shell
Ou então de juntar-me aos áulicos vernáculos do tronco antigo, que faziam o milagre de extrair o mais puro azeite dos frutos mirrados de então, com o qual se esforçavam por untar e doirar a duríssima vida lusitana dos mil e quinhentos:
"E a gente portuguesa, católica por fé e verdadeira adoração do culto que se deve a Deus, arvorando aquela divina bandeira de Cristo, sinal de nossa redenção, de que a igreja canta Vexilla regis prodeunt, não somente à vista dos mouros de África, Pérsia e Índia, pérfidos a ela, mas diante de todo o paganismo destas partes que dela nunca tiveram notícia, e isto navegando por tantas mil léguas que vêm a ser antípodas de sua própria pátria, cousa tão nova e maravilhosa na opinião das gentes que até doutos e mui graves varões em suas escrituras puseram em dúvida de os haver; nas quais partes, ele houveram vitórias de todas as nações, contendendo com os perigos do mar, trabalhos de fome e sede, dores de novas enfermidades e, finalmente, com as malícias, traições e enganos dos homens, que é mais duro de sofrer; assim são próprias todas estas cousas em a nação portuguesa, e as tem por tão natural mantimento depois que nascem, que os faz fastientos do trabalho de as querer contar e escrever, como se tivesse a seus próprios feitos ódio para os ouvir, depois que os faz, como são apetitosos para os cometer e apressados no ato de os fazer, e constantes em os segurar."
João de Barros, Década Primeira, livro IV, capítulo XI (1552)
O Padrão dos Descobrimentos |
O Padrão dos Descobrimentos e a Ponte 25 de Abril |
A Torre de Belém vista do Padrão dos Descobrimentos |
A Torre de Belém |
A Torre de Belém |
O Tejo visto das ameias da Torre |
O mosteiro dos Jerônimos |
O claustro do mosteiro |
Corredores do andar superior do claustro |
O gótico manuelino |
O corredor térreo do claustro |
O assim chamado túmulo de Camões |
A igreja dos Jerônimos: colunas e nervuras da nave central |
A igreja dos Jerônimos: o coro |
A nave central vista do cruzeiro do coro |
O mosteiro dos Jerônimos ao anoitecer |
Parte II
Os antípodas de sua própria pátria
ou
"E quando não tiveres o que comer?"
ou
"E quando não tiveres o que comer?"
Agoniado pelas falcatruas patrióticas do Estado - o Novo e o Velho -, tanto o dos salazares quanto o dos dom-manuéis, o quarto ou quinto de lusitanidade de meu coração se revolta e entorna. Não é dessa gente que vim. Não é desses antonios-ferro ou joões-de-barro que procedo. Se Portugal me fala e me diz, se a gente lusa me é tão familiar e simpática, é por me não falecer o sangue ruim da arraia-miúda que mourejava, do povinho que nunca aprendeu a nadar e sempre assistiu - perplexo e famélico - ao desembarque dos tesouros dos Brasis e das Índias, dando por falta dos marinheiros seus parentes que ficaram no fundo do mar a alimentar a profusão dos peixes ou dos que se fartaram de fomes e se enriqueceram de febres no ultramar.
"Sou capelão dum fidalgo
que não tem renda nem nada;
quer ter muitos aparatos
e a casa anda esfaimada;
toma ratinhos por pajens,
anda já a cousa danada.
(...)
Se vossas mercês não hão
cordel para tantos nós,
vivei vós aquém de vós,
e não compreis gavião,
pois que não tendes piós."
Gil Vicente, Farsa dos Almocreves (1526)
2.
"Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que, com muita razão, me posso queixar da ventura, que parece que tomou particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória, porque vejo que, não contente de me pôr na minha pátria, logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde, em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos."
Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, capítulo 1 (1614)
3.
- "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
- "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, 96-97 (1572)
4.
"Dom Fulano — diz a piedade bem-intencionada — é um fidalgo pobre: dê-se-lhe um governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contém nesta piedade? Se é pobre, dêem-lhe uma esmola honestada com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas por que é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar? E para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico? Isto quer quem o elege por este motivo. Vamos aos do prêmio, e também aos do castigo. Certo capitão mais antigo tem muitos anos de serviço: dêem-lhe uma fortaleza nas conquistas. Mas se estes anos de serviço assentam sobre um sujeito que os primeiros despojos que tomava na guerra, eram a farda e a ração dos seus próprios soldados, despidos e mortos de fome, que há de fazer em Sofala ou em Mascate? Tal graduado em leis leu com grande aplauso no Paço; porém, em duas judicaturas e uma correição não deu boa conta de si: pois vá degradado para a Índia com uma beca. E se na Beira e Além-Tejo, onde não há diamantes nem rubis, se lhe pegavam as mãos a este doutor, que será na relação de Goa?
Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo."
Padre Antonio Vieira, Sermão do Bom Ladrão, VIII (1655)
um graffiti no Chiado |
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