Lenin
4. Para ler Lenin
Diante
da mole de escritos de Lenin, é preciso afastar desde logo o julgamento errôneo
e pertinaz que faz dele um teórico, ou algo mais do que um teórico: o pensador
genial que chegou à conciliação entre teoria revolucionária e prática
revolucionária.
É
verdade que Lenin tinha preocupações teóricas e chegou mesmo a afirmar
que “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento
revolucionário!” (Que fazer?, Obras Escolhidas, tomo I, p.
96). Isso, porém, não significa que Lenin estivesse comprometido com a
produção de alguma teoria, ou, em outras palavras, com o exercício de elaborar,
inventar ou transformar conceitos e modelos de acordo com inferências
logicamente válidas e racionalmente justificáveis. Mesmo um simples golpe de
vista sobre o índice das obras de Lenin é suficientemente para mostrar que elas
não se enquadram nas formas recorrentes pelas quais se expõem teorias: elas não
são dissertações, nem tratados, nem ensaios, nem série de apontamentos. Ele se
punha antes como um intérprete que, na leitura dos numerosos autores do campo
socialistas, ressaltava os elementos condizentes com a prática revolucionária e
combatia as interpretações não-revolucionárias como “desvios” em relação a um
objetivo final estabelecido por uma teoria fundante que se encontraria nas
obras de Marx e Engels. Para Lenin, portanto, a teoria já estava dada, mas
exigia uma leitura correta.
Assim,
os escritos de Lenin não tinham como objetivo a pesquisa e investigação, mas a
intervenção política direta. Esse primado da prática política tem efeitos
textuais visíveis nas obras de Lenin, seja no predomínio das modalidades
erísticas (a polêmica, a refutação, o vitupério), deliberativas (a apresentação
de propostas práticas) e exortativas (a conclamação à ação); seja no caráter
necessariamente instrumental, local e datado de cada intervenção
discursiva. Cada escrito de Lenin parte de uma situação à qual
procura dar uma resposta política. Cada obra é o exemplo de uma análise
concreta de uma situação concreta, segundo o conhecido preceito
metodológico de Lenin. Ocorre que este preceito admirável constitui a antítese
mesma de uma investigação teórica, ou seja, Lenin se coloca nos antípodas
daqueles que se esforçam por alcançar uma síntese que explique, de maneira
abstrata, geral, um campo de situações possíveis. Mesmo nos momentos em que ele
mais se aproxima do trabalho teórico de largo fôlego o aspecto de intervenção e
combate nunca se perde. O Desenvolvimento do Capitalismo na
Rússia (1899) é um ajuste de contas com as teses narodniks e
uma defesa do ponto de vista marxista ortodoxo (o de Marx, Kautsky e
Plekhanov); Que fazer? (1902) é uma extensa e
minuciosa refutação de várias posições revisionistas que descuravam dos
aspectos teóricos e organizacionais da ação político; Imperialismo:
fase superior do capitalismo (1916) se apresenta como um ensaio
popular contra as correntes socialistas chauvinistas ou pacifistas que não
compreendiam o que estava em jogo na Guerra de 1914 e as oportunidades que esse
conflito abria para uma revolução proletária; O Estado e a Revolução (1917)
é uma grande colagem de citações de Marx e Engels para provar o quanto Kautsky
e a Segunda Internacional haviam se afastado do marxismo.
Se
o próprio Lenin se apresentava apenas como um intérprete fiel de uma teoria
fundante, que lhe fornecia os argumentos de autoridades para desbancar aqueles
que se desviavam; se os escritos de Lenin se afastavam das formas tradicionais
de exposição teórica; se sua prática intelectual consistia em análises pontuais
e concretas, haveria alguma razão para se falar numa teoria
“leninista”? Não, se por isso entendermos um núcleo articulado de
conceitos ou modelos explicativos; sim, se reconhecermos a constância e a
imbricação de certas preocupações na obra de Lenin: a organização partidária,
as tarefas revolucionárias, a luta contra o oportunismo nos meios socialistas.
Nesse
sentido mais alargado, aquilo que se pode chamar de “leninismo” responderia a
três demandas: (1) fazer uma leitura correta de Marx e Engels, ou seja,
proporcionar uma interpretação que dê ênfase aos objetivos revolucionários da
classe operária e que forneça os instrumentos conceptuais para as análises
concretas; (2) examinar, a cada momento, a configuração da luta de classes do
ponto de vista social, político e econômico, tanto no plano nacional quanto no
internacional, para identificar e aproveitar possibilidades de ação
revolucionária; (3) manter aberta a possibilidade de compromissos e composições
políticas de curto prazo, mesmo que fosse preciso fazer concessões aos
adversários.
Em
suma, o leninismo ensina que a prática política de esquerda nunca pode perder de
vista o objetivo final (a tomada de poder pelo proletariado e a construção do
comunismo), mas deve estar atenta aos sinais do presente, às possibilidade indicadas pela análise das situações concretas, possibilidades que devem ser exploradas de maneira flexível e adaptativa. A política leninista era uma realpolitik revolucionária que Lenin opunha aos “oportunistas”, isto é, aos social-democratas que negavam
os objetivos finais da luta de classes, a exemplo de Bernstein: “Eu afirmei
que o movimento era tudo para mim e que aquilo que normalmente é chamado o
objetivo final do socialismo era nada, e nesse sentido eu ainda endosso isso
hoje.” (The Preconditions of Socialism, p. 5). Aqueles que assim
pensavam, acreditavam que era possível melhorar gradualmente a condição da
classe trabalhadora a partir de ganhos imediatos negociados pelos sindicatos e
pelos representantes social-democratas no parlamento. Todavia, como Bernstein
bem o sabia, esse compromisso com os interesses imediatos dos
trabalhadores só poderia ser mantido com o sacrifício da teoria marxista, que
é, essencialmente, uma teoria da luta de classes, do papel revolucionário do
proletariado e da destruição do Estado burguês.
O
gradualismo bernsteiniano, ao defender a evolução ao invés da revolução,
supunha uma situação de estabilidade politica, crescimento econômico contínuo e
colaboração entre a classe trabalhadora e a burguesia nos quadros das
instituições liberais e normas constitucionais do Estado. Essas suposições eram
demasiado otimistas. Forças novas já estavam em movimento, como já percebia
J.A. Hobson que preparava, então, O Imperialismo: um estudo, a
ser publicado em 1902.
Todavia,
o oportunismo, com sua visão curta, não era apanágio dos revisionistas, que ao
menos tinham o mérito de admitir publicamente sua ruptura com a teoria marxista
clássica. A chamada ortodoxia do SPD, tendo Kautsky à frente, embora
repreendesse as posições assumidas por Bernstein, reafirmando no plano
doutrinal a luta de classes e o caráter revolucionário do proletariado, era
complacente com as práticas oportunistas do partido. Cada vez mais
concentrado na administração das tarefas cotidianas e das causas miúdas da vida
política e sindical, o SPD perdia sua combatividade e se burocratizava. Pouco a
pouco, seus membros eram cooptados pela burguesia e pelo Estado, aderindo a
posições chauvinistas. Vários deles acabariam por se tornar “traidores” da
causa socialista, como Lenin não se cansaria de lembrar. O contraste entre a
politica da social-democracia alemã e a de Lenin foi assim resumido por Lukács:
“A
realpolitik da social-democracia, que sempre tratou todos os problemas
imediatos do cotidiano como simples problemas cotidianos, desvinculados do
caminho do desenvolvimento total, sem relação com os problemas últimos da luta
de classes e, portanto, sem jamais apontar de modo real e concreto para além do
horizonte da sociedade burguesa, voltou a conferir ao socialismo, aos olhos dos
operários, um caráter utópico. A separação entre o objetivo final e o movimento
falsifica não apenas a correta perspectiva em relação às questões do cotidiano,
do movimento, mas transforma ao mesmo tempo o objetivo final numa utopia. (...)
De
modo que, quando se busca seu contexto e sua fundamentação, a realpolitik de
Lenin mostra-se como o ponto mais alto atingido pelo materialismo dialético: de
um lado, uma análise rigorosamente marxista, simples e sóbria, mas extremamente
concreta das condições dadas, da estrutura econômica e das relações de classe;
de outro, uma visão clara – não deformada por nenhum tipo de preconceito
teórico e desejo utopista – de todas as tendências que resultam dessas
condições.”
(György
Lukács, Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, pp 87;
89)
Um
dos problemas da descrição demasiado respeitosa e demasiado filosofante de
Lukács é que ela oblitera o caráter ousado, arriscado, aventureiro,
“blanquista” da política de Lenin, capaz de desconcertar seus camaradas mais
chegados. O choque causado pelas Teses de Abril não foi um
caso isolado. É que a prática política de Lenin não era consequência de uma
dedução rigorosa que partisse dos princípios da teoria marxista, descendo à
análise concreta e chegando à ação política pontual. As coisas se passavam de
maneira mais confusa e, muitas vezes, os alegados princípios teóricos nada
tinham a ver com a prática que deveria resultar deles, o que pode ser
comprovado por um mero cotejo entre O Estado e a Revolução e
todas as resoluções que Lenin tomou a partir de outubro/novembro de 1917.
Não
há traquejo dialético que possa legitimar, a partir de premissas marxistas, a
criação da Cheka, a primeira polícia secreta soviética. “Estabelecida em
dezembro de 1917, ela recebeu status extra-judicial por ordem de Lenin. A
onipotente Cheka tinha o poder de prender, investigar, dar sentenças e
cumpri-las. Dezenas de milhares foram fuzilados sem um julgamento nos porões da
Cheka. Como se não fosse o bastante, em 14 de maio de 1921, o Politburo,
presidido por Lenin, aprovou uma moção ‘ampliando os direitos da Cheka em
relação ao uso da pena de morte’.” (Dmitri Volgonov, Lenin: a
new biography, p. 238).
Lukács
escreveu que “o realismo de Lenin, sua realpolitik, é a liquidação decisiva
de todo e qualquer utopismo, a realização concreta do conteúdo do programa de
Marx, uma teoria que se tornou prática, uma teoria da práxis.” (Lenin: um
estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 89). Há uma verdade irônica,
involuntária e dialeticamente perversa na afirmação de que Lenin liquidou todo
e qualquer utopismo.
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein
Ernst Bloch
Из искры возгорится пламя
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