Lenin
5. Que Fazer?
“A nós, socialdemocratas revolucionários, desagrada-nos este culto da espontaneidade, quer dizer, do que existe “no momento presente” (idem, p.95)
Contudo, há ainda uma razão não menos importante, que é de natureza conceptual: talvez Lenin não estivesse preparado para entender a história do proletariado tal como exposta por Marx, ou seja, como o movimento pelo qual a consciência se mediatiza no seu confronto com as condições materiais imediatas em que surgiu, tornando-se autoconsciente no processo mesmo de transformação das condições materiais de sua existência. Essa Fenomenologia do Espírito materialista da relação entre trabalho e consciência só viria a ser amplamente estudada com a publicação dos Manuscritos Econômico-Filosóficos na década de 1930, portanto, ela escapava ao horizonte teórico de Lenin e de todos dos marxistas de sua época.
É possível que essa incapacidade de dar conta da dialética do
trabalho, isto é, em apreender o movimento interno das contradições pelo qual a
consciência singular e empírica dos trabalhadores pode se elevar a partido
político, seja a razão pela qual Lenin fez a estranha afirmação de que a classe
operária tendia espontaneamente para o socialismo, mas esse avanço era impedido
por uma força exterior, a ideologia burguesa que se impunha
espontaneamente aos proletários dada a hegemonia burguesa:
“...
A luta de partido dá ao partido força e vitalidade; a maior prova da fraqueza
de um partido é o seu amorfismo e o esbatimento de fronteiras nitidamente
delimitadas; o partido reforça-se depurando-se...”
Carta de
Lassalle a Marx, 24 de junho de 1852
Desde os artigos no jornal Iskra até
a tomada do poder em 1917, Lenin travou uma luta contínua contra o oportunismo,
o inimigo insidioso e proteico que ele identificava no revisionismo de
Bernstein (com seu descaso pelo objetivo final do movimento, aliado à máxima
importância dada às conquistas graduais no plano sindical e parlamentar), no
marxismo legal de Petr Struve (com seu projeto de justificar a modernização
capitalista, acompanhado do ceticismo quanto à possibilidade de uma revolução
proletária), no “economismo” (com sua tese de que a luta de classes deveria se
desenvolver apenas no plano econômico, e não no político) e, a partir de 1914,
no social-chauvinismo (com seu apoio ativo à guerra e ao nacionalismo somente
explicável pelo conúbio entre os partidos social-democratas e os Estados
nacionais).
Para Lenin, oportunista é toda a esquerda que
descrê ou descura das tarefas revolucionárias do proletariado. Os oportunistas
acreditam que o objetivo principal é lutar pela satisfação das necessidades
imediatas do proletariado (aumentos salariais, melhora das condições de
trabalho, seguridade social) através dos meios políticos disponíveis no momento
(os sindicatos e os partidos legais). O problema é que o oportunismo
se limita aos meios e aos objetivos que são possíveis num dado momento. Ele se
rende ao existente, àquilo que se oferece espontaneamente a cada momento:
“É desejável a luta que é possível e é
possível a que se trava neste minuto. É precisamente a tendência do oportunismo
ilimitado, que se adapta passivamente à espontaneidade.” (Que
fazer, Obras Escolhidas, tomo I, p. 113).
O risco dessa adaptação passiva à espontaneidade é
a rendição do proletariado à ideologia burguesa:
“Diz-se frequentemente: a classe
operária tende espontaneamente para o socialismo. Isto é, perfeitamente justo
no sentido de que a teoria socialista, com mais profundidade e exatidão do que
qualquer outra, determina as causas dos males de que padece a classe operária e
é precisamente por isso que os operários a assimilam com tanta facilidade,
desde que esta teoria não retroceda ela mesma antes a espontaneidade, desde que
submeta a si a espontaneidade (...) A classe operária tende espontaneamente
para o socialismo, mas a ideologia burguesa, a mais difundida (e constantemente
ressuscitada sob as formas mais diversas), é contudo aquela que mais se impõe
espontaneamente aos operários.” (idem, p. 109 nota)
O que deveriam fazer os social-democratas russos
para evitar a submissão da classe operária à ideologia burguesa? Como afastar
as práticas oportunistas? Qual era a prática política e o tipo de
organização que corresponderiam verdadeiramente ao objetivo de uma revolução?
Essas são as questões que Lenin respondeu em Que fazer? (1902)
A crítica ao espontaneísmo
Como já o dissemos, os escritos
de Lenin são intervenções políticas e não exposições de uma investigação
teórica. Se há um leninismo, ele não consiste num conjunto de teses, mas numa
exigência metodológica: a prática política de esquerda nunca pode perder de
vista o objetivo final (a tomada de poder pelo proletariado e a construção do
comunismo), mas deve estar atenta aos sinais do presente, às possibilidades
indicadas pela análise das situações concretas, possibilidades que devem ser
exploradas de maneira flexível e adaptativa. A política de Lenin é uma realpolitik porque é uma arte do possível, no sentido pleno de
uma prospecção das possibilidades ainda não manifestas, e não no sentido
conformista da limitação ao que parece possível num dado momento. Também é uma realpolitik porque sabe reconhecer, a cada momento, quem
são os amigos e quem são os inimigos. Em 1902, esse inimigo era o culto oportunista da espontaneidade:
“A nós, socialdemocratas revolucionários, desagrada-nos este culto da espontaneidade, quer dizer, do que existe “no momento presente” (idem, p.95)
Combater o espontaneísmo não era negar a importância dos movimentos
espontâneos do proletariado, mas sim mostrar seus limites políticos:
“Os motins primitivos refletiam
já um certo despertar da consciência. Os operários perdiam a fé tradicional na
inamovibilidade do regime que os oprimia; começavam ... não direi a
compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência coletiva e rompiam
resolutamente com a submissão servil às autoridades. Mas isto contudo era mais
uma manifestação de desespero e de vingança do que uma luta. As greves dos anos
90 oferecem-nos muito mais clarões de consciência: formulam-se reivindicações
precisas, calcula-se antecipadamente o momento mais favorável, discutem-se os
casos e exemplos de outras localidades, etc. Se os motins eram simplesmente a
revolta de oprimidos, as greves sistemáticas representavam já embriões – mas
nada mais do que embriões – da luta de classes. Em si mesmas, estas greves eram
luta trade-unionista, não eram ainda luta socialdemocrata; assinalavam o
despertar do antagonismo entre os operários e os patrões, mas os operários não
tinham, nem podiam ter, a consciência da oposição irreconciliável entre os seus
interesses e todo o regime político e social existente, isto é, não tinham
consciência socialdemocrata. Nesse sentido, as greves dos anos 90, apesar do
imenso progresso que representavam em relação aos ‘motins’, continuavam a ser
um movimento nitidamente espontâneo.
Dissemos que os operários nem sequer podiam
ter consciência socialdemocrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A
história de todos os países testemunha que a classe operária, exclusivamente
com suas próprias forças, só é capaz de desenvolver uma consciência
trade-unionista, quer dizer a convicção de que é necessário agrupar-se em
sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo estas ou aquelas leis
necessárias aos operários etc. Por seu lado, a doutrina do socialismo nasceu de
teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas por representantes
instruídos das classes possidentes, por intelectuais. Os próprios fundadores do
socialismo científico moderno, Marx e Engels, pertenciam pela sua situação
social, à intelectualidade burguesa.” (p.
100)
A consciência do proletariado como classe (que
Lenin chamava de “consciência social-democrata”) somente pode surgir quando o
operariado se dá conta da sua oposição irreconciliável com a burguesia, ou
seja, quando a luta de classes se torna uma luta declarada e aberta. Mas é
impossível que a consciência de classe – com a totalidade que ela implica -
advenha da consciência empírica dos proletários em sua luta cotidiana, situada
e parcial (a chamada “consciência trade-unionista”). No limite de sua faina
cotidiana e das lutas locais por melhores condições, os operários podem
enxergar as árvores, mas não podem ver a extensão da floresta. Para isso, é
preciso dispor de um conhecimento teórico, que não pode ser produzido pelos
proletários na medida em que são proletários (ou seja, no exercício do seu
trabalho). O socialismo é esse conhecimento teórico; ele vem de fora do mundo
do trabalho e chega como portador da consciência de classe. Abandonado ao seu
movimento espontâneo, os proletários podem se amotinar às vezes em certos
lugares, mas não podem agir como classe revolucionária autoconsciente. Dito de
outro modo, a consciência em si, empírica e imediata, só pode se tornar
consciência para si se for negada e subsumida pela teoria, a visão da
totalidade com suas mediações. Para os proletários, ter consciência de classe
não é outra coisa que ter consciência de seu papel revolucionário.
Nessa crítica ao espontaneísmo, Lenin seguia de
perto Kautsky, de quem cita um parágrafo retirado do Neue Zeit, (1901-1902,
XX, I, nº 3, p,79):
“Como doutrina, é evidente que o
socialismo tem as suas raízes nas relações econômicas atuais, exatamente do
mesmo modo que a luta de classes do proletariado e, tal como esta o socialismo
deriva da luta contra a pobreza e a miséria das massas, pobreza e miséria
geradas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de classes surgem um ao
lado do outro e não derivam um do outro; surgem de premissas diferentes. A
consciência socialista moderna não pode surgir senão na base de profundos
conhecimentos científicos. Com efeito, a ciência econômica contemporânea é
tanto uma condição da produção socialista como, por exemplo, a técnica moderna,
e o proletariado, por mais que o deseje, não pode criar nem uma nem outra,
ambas surgem do processo social contemporâneo. Mas o portador da ciência não é
o proletariado, mas a intelectualidade burguesa. (...) Desse modo, a
consciência socialista é algo introduzido de fora na luta de classes do
proletariado e não algo que surge espontaneamente no seu seio.” (apud Que
fazer?, p. 107)
No entanto, Lenin vai mais longe do que Kautsky.
Ele não apenas declara que a consciência espontânea dos proletários não poderia
ir além de certo “sentimento” da “necessidade de uma resistência coletiva”, mas
também afirma que, sem a intervenção ativa da teoria socialista, a
espontaneidade dos operários resulta em cooptação pela ideologia burguesa, que
é hegemônica (para usar o famoso conceito gramsciano).
“Mas, por que razão – pergunta o leitor – o
movimento espontâneo, o movimento pela linha da menor resistência, conduz
precisamente à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a
ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a ideologia
socialista, de que está mais completamente elaborada e possui meios de difusão
incomparavelmente mais numerosos. (idem, p. 109)
Em tudo isso, Lenin divergia nitidamente da
descrição que Marx fizera do surgimento da consciência de classe e do partido
operário perto do final da seção I do Manifesto:
“Nessa fase, o proletariado constitui massa
disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência. A coesão maciça dos
operários não é ainda o resultado de sua própria união, mas da união da
burguesia que, para atingir seus próprios fins políticos, é levada a por em
movimento todo o proletariado, o que por enquanto ainda pode fazer. (...)
Mas com o desenvolvimento da indústria,
o proletariado não apenas se multiplica; comprime-se em massas cada vez
maiores, sua força cresce e ele adquire maior consciência dela. Os interesses,
as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida
que a máquina extingue toda a diferença de trabalho e quase por toda a parte
reduz o salário a um nível igualmente baixo. Em virtude da concorrência crescente
dos burgueses entre si e devido às crises comerciais que disso resultam , os
salários se tornam cada vez mais instáveis; o
aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição
de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o
operário singular e o burguês singular tornam cada vez mais o caráter de
confronto entre duas classes. Os operários começam a formar coalizões contra os
burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações
permanentes a fim de se precaverem de insurreições eventuais. Aqui e ali a luta
irrompe em motim.
De tempos em tempos os operários
triunfam, mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é
o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores. Esta união
é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande
indústria e que permitem o contato entre os operários de diferentes
localidades. Basta, porém, este contato para concentrar as numerosas lutas
locais, que têm o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, uma luta
de classes. (...)
A organização do proletariado em classe
e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência
que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais
forte, mas sólida, mais poderosa. Aproveita-se das divisões internas da
burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe
operária, como por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na
Inglaterra. (...)
Finalmente, nos períodos em que a luta
de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe
dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo,
que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta, ligando-se à
classe revolucionária, à classe que traz nas mãos o futuro. Do mesmo modo que
outrora uma parte da nobreza passou para a burguesia, em nossos dias uma parte
da burguesia passa para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos
burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu
conjunto.”
(Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do
Partido Comunista, p 47-49)
Na análise de Marx, a consciência de classe do
proletariado é resultado da própria luta cotidiana do proletariado contra as
condições do trabalho industrial e, ao mesmo tempo, aproveitando das condições
de coesão impostas por este trabalho. A organização do proletariado como classe
é, ao mesmo tempo, sua organização como partido. O aguçamento da luta de
classes provoca a dissidência de certa fração da burguesia, a dos ideólogos que
compreenderam o movimento da luta de classes e, por isso, aderem à
classe-partido dos proletários, “do mesmo modo que outrora uma parte da
nobreza passou para a burguesia” (e ninguém afirma que a consciência
de classe da burguesia tivesse sido trazida de fora pelos ideólogos da
nobreza).
Por que Lenin, sempre tão preocupado em ser fiel ao sentido e à letra dos escritos
de Marx, não seguiu aqui os passos do Manifesto? Há várias razões
históricas importantes que justificam essa diferença de perspectiva:
- O meio século que transcorrera entre 1848 e 1902, com exceção do
acontecimento isolado e anômalo da Comuna de Paris, assistira a um refluxo do
ativismo revolucionário dos trabalhadores em proveito da luta sindical e
parlamentar;
- Struve, na Rússia, e Bernstein, na Alemanha, levantaram fortes
argumentos contra o caráter espontaneamente revolucionário do proletariado;
- As condições da industrialização na Rússia, a violência da
autocracia e a própria imensidão do território russo, estavam longe de permitir
a formação de uma ampla massa de proletários em comunicação por todo o país,
capaz de mobilizar-se por si mesma num partido.
Contudo, há ainda uma razão não menos importante, que é de natureza conceptual: talvez Lenin não estivesse preparado para entender a história do proletariado tal como exposta por Marx, ou seja, como o movimento pelo qual a consciência se mediatiza no seu confronto com as condições materiais imediatas em que surgiu, tornando-se autoconsciente no processo mesmo de transformação das condições materiais de sua existência. Essa Fenomenologia do Espírito materialista da relação entre trabalho e consciência só viria a ser amplamente estudada com a publicação dos Manuscritos Econômico-Filosóficos na década de 1930, portanto, ela escapava ao horizonte teórico de Lenin e de todos dos marxistas de sua época.
“A classe operária tende espontaneamente para o
socialismo, mas a ideologia burguesa, a mais difundida (e constantemente
ressuscitada sob as formas mais diversas), é contudo aquela que mais se impõe
espontaneamente aos operários.” (Que fazer?, p. 109 nota)
Por isso, em flagrante divergência com Marx, Lenin
era obrigado a admitir que a consciência de classe revolucionária do
proletariado também deveria ser trazida pelo socialismo dos intelectuais
burgueses, isto é, por uma força exterior ao proletariado, mas
em proveito dos seus objetivos históricos e de seus interesses mais elevados:
“Só a mais grosseira incompreensão do marxismo
(ou a sua ‘compreensão’ no sentido do ‘struvismo’) pode levar à opinião de que
o aparecimento espontâneo de massas nos exime da obrigação de criar uma
organização de revolucionários tão boa como ados partidários de ‘Terra e
Liberdade’, ou até incomparavelmente melhor. Esse movimento, pelo contrário,
impõe-nos precisamente esta obrigação porque a luta espontânea do proletariado
não se transformará na sua verdadeira ‘luta de classes’ enquanto não for
dirigida por uma forte organização de revolucionários.” (idem,
p. 174)
Um partido revolucionário para a Rússia
Como estrategista político, Lenin considerava que a questão mais urgente era
preparar o partido social-democrata russo para as tarefas revolucionárias vindouras. Para isso, ele preciso combater as vertentes pelas quais se
manifestava o espontaneísmo na vida político-partidária: o ecletismo, o
praticismo (isto é, o desinteresse pela questões práticas em detrimento das teóricas) e o
relaxamento organizacional.
“Quanto mais poderoso for a ascensão
espontâneo das massas, quanto mais amplo se tornar o movimento, tanto maior,
incomparavelmente maior, será a rapidez com que aumenta a necessidade de uma
elevada consciência, quer no trabalho teórico quer no político e no de
organização da socialdemocracia.” (Que fazer?, p.
116)
Sem o cuidado com as questões teóricas e a
organização prática, perder-se-ia o nexo entre a teoria revolucionária
(fornecida pelos intelectuais) e a luta prática (no qual o proletariado estava
adestrado). Sem a ligação com a luta prática, os intelectuais revolucionários
espontaneamente pendem para o terrorismo; sem a ligação com a teoria
revolucionária, a luta prática se limita espontaneamente à luta sindical por
melhores condições e aumentos salariais:
“Os ‘economistas’ e os terroristas
prestam culto a dois polos opostos da corrente espontânea: os “economistas” à
espontaneidade do “movimento nitidamente operário” e os terroristas à
espontaneidade da mais ardente indignação dos intelectuais, que não sabem ou
não têm a possibilidade de ligar num todo o trabalho revolucionário e o
movimento operário.” (idem, p.133)
1. A necessidade de uma teoria revolucionária
“Sem teoria revolucionária não pode
haver também movimento revolucionário. Nunca se insistirá demasiadamente nesta
ideia numa altura em que a prédica em voga do oportunismo aparece acompanhada
de uma atração pelas formas mais estreitas da atividade prática.” (pp 96-97)
“Só um partido guiado por uma teoria de
vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda.” (p.97)
2. Objetivos
diferentes requerem organizações diferentes
“A organização de um partido
socialdemocrata deve ser, inevitavelmente, de um gênero diferente da
organização dos operários para a luta econômica. A organização de operários
deve ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar, deve ser a mais ampla
possível; em terceiro lugar, deve ser menos clandestina possível. (…) Pelo
contrário, a organização dos revolucionários deve englobar, antes de tudo e
sobretudo, pessoas cuja profissão seja a atividade revolucionária (por isso
falo de uma organização de revolucionários, pensando nos revolucionários
sociais-democratas). Perante esta característica geral dos membros de uma tal
organização, deve desaparecer por completo toda a distinção entre
operários e intelectuais, para não falar já da distinção entre as diferentes
profissões de uns e outros. Necessariamente, esta organização não deve ser
muito extensa, e é preciso que seja a mais clandestina possível”. (p. 158)
3. Uma organização revolucionária num país autocrático
“Pela sua forma, uma tal
organização revolucionária firme num país autocrático também pode ser chamada
organização de ‘conjurados’ (...) e o caráter conspirativo é imprescindível, no
mais elevado grau, a uma organização deste tipo.” ( p. 175)
“O único princípio de organização sério
a que se devem subordinar os dirigentes do nosso movimento deve ser: o mais
severo secretismo, a mais severa seleção de filiados, e a preparação de
revolucionários profissionais. Estando reunidas estas qualidades, estará assegurada
uma coisa mais importante do que a ‘democracia’, a saber: a plena e fraternal
confiança mútua entre os revolucionários.” (p.
178)
“Nos países que gozam de liberdade
política, esta condição [o caráter eletivo dos cargos] subentende-se por si
própria. ‘Considera-se membro do partido todo aquele que aceite os princípios
do seu programa e ajuda o partido na medida de suas forças’, diz o artigo
primeiro dos Estados de organização do Partido Social-Democrata Alemão. (...)
Mas tentai encaixar essa moldura na nossa autocracia!” (p.177)
4. Objeções a uma tal organização e
resposta às objeções
(a) uma organização fortemente centralizada e
rigorosamente secreta pode lançar-se com muita facilidade a ataques impensados (à maneira supostamente blanquista)
Resposta: Ocorre justamente o contrário: “uma
forte organização revolucionária é absolutamente necessária precisamente para
dar estabilidade ao movimento e preservá-lo da possibilidade de ataques
irrefletidos.” (p. 175)
(b) uma organização deste tipo contradiz o
princípio democrático.
Resposta: O princípio democrático implica a
publicidade completa e o caráter eletivo de todos os cargos (p. 176). A
publicidade completa é impossível por se tratar de uma organização secreta.
Além disso, para que os candidatos pudessem ser escolhidos por eleição, seria
preciso que houvesse um amplo conhecimento do que eles fazem e do que eles são,
o que é incompatível com a atuação secreta dos revolucionários. Qualquer
aplicação do princípio democrático facilitaria o trabalho da polícia e o
desmantelamento do grupo.
5. Entre
a organização e as massas deve haver um instrumento de comunicação que funcione
de maneira contínua.
“Só uma tal organização assegurará à
organização de combate social-democrata a flexibilidade indispensável, isto é,
a capacidade de se adaptar imediatamente às mais variadas condições de luta,
que mudam rapidamente; saber ‘por uma lado, evitar as batalhas em campo aberto
contra um inimigo que tem uma superioridade esmagadora de forças, quando este
concentra toda a sua força num ponto, e, por outro lado, aproveitar a lentidão
de movimentos desse inimigo para o atacar no local e no momento em que menos se
espera ser atacado’. Seria gravíssimo erro estruturar a organização do partido
contando apenas com explosões e lutas de ruas ou só com a ‘marcha ascendente da
cinzenta luta cotidiana’. Devemos desenvolver sempre o nosso trabalho cotidiano
e estar sempre dispostos a tudo, porque muitas vezes é quase impossível prever
como alternarão os períodos de explosões com os de calma, e mesmo que fosse
possível prever isso não se poderia aproveitar a previsão para reconstruir a
organização, porque num país autocrático essas mudanças se produzem com
assombrosa rapidez, às vezes como consequência de uma incursão noturna dos
janízaros czaristas. E a própria revolução não deve ser imaginada como um ato
único (...), mas como uma rápida sucessão de explosões mais ou menos violentas,
alternando com períodos de calma mais ou menos profunda. Por isso, o conteúdo
fundamental das atividades da organização do nosso partido, o foco destas
atividades deve consistir num trabalho que é possível e necessário tanto
durante o período de explosão mais violenta como durante o da calma mais
completa, a saber: um trabalho de agitação política unificada em toda a Rússia,
que lance luz sobre todos os aspectos da vida e se dirija às mais amplas
massas. E este trabalho é inconcebível na Rússia atual sem um jornal para toda
a Rússia e que apareça com muita frequência. A organização que se formar por si
mesma em torno desse jornal, a organização dos seus colaboradores (no sentido
lato do termo, isto é, de todos aqueles que trabalhem para ele) estará
precisamente disposta a tudo, desde salvar a honra, o prestígio e a
continuidade do partido no momento de maior ‘depressão revolucionária’, até
preparar, fixar e levar à prática a insurreição armada de todo o povo.” (p.
203-204)
***
Quanto disso estava em Marx? Certamente,
a formação de um grupo de vanguarda era reconhecida explicitamente na seção 2
do Manifesto:
“Na prática, os comunistas constituem a
fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que
impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem
de uma compreensão mais nítida das condições, do curso e dos fins gerais do
movimento proletário” (p. 51)
Quanto ao mais, seria preciso procurar na Mensagem
do Comitê Central à Liga dos Comunistas (cf. A claraboia e o holofote #18), certas sugestões como a de um comitê secreto altamente
centralizado, disposto a comandar ações radicais, inclusive a insurreição armada
dos trabalhadores.
Todavia, enquanto a Mensagem do Comitê
Central esboçava um plano de ação para os comunistas numa revolução
que parecia próxima e jamais aconteceu, Que fazer? tinha um
alcance mais modesto, mas que se mostrou mais efetivo a longo prazo. Ao invés
de planejar insurreições e atiçar levantes, Lenin queria organizar um grupo pronto
para se lançar à revolução quando o momento chegasse. Tratava-se do núcleo do que se tornaria o partido bolchevique.
********
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein
Ernst Bloch
Из искры возгорится пламя
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