Rosa Luxemburg
A ordem reina em Berlim (1919)
‘A
ordem reina em Berlim!’, proclama triunfante a imprensa burguesa, proclamam
Ebert e Noske, proclamam os oficiais das ‘tropas vitoriosas’ que a ralé
pequeno-burguesa de Berlim acolhe nas ruas, acenando com o lenço e gritando
hurra! Perante a história mundial, a glória e a honra das armas alemãs estão
salvas. Os lamentáveis vencidos de Flandres e Argonne restabeleceram sua
reputação com brilhante vitória – sobre 300 ‘spartakistas’ no Vorwärts. Os tempos da
gloriosa invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, os tempos do general Von
Emmich, o vencedor de Liège, empalidecem diante dos feitos dos Reinhardt e cia.
nas ruas de Berlim. Massacre de parlamentares que queriam negociar a rendição
do Vorwärts e que foram mortos a coronhadas pela soldadesca do
governo até ficarem irreconhecíveis, a ponto de a identificação dos corpos ser
impossível; prisioneiros postos contra a parede e assassinados de tal maneira
que o crânio e o cérebro esguicharam. Perante feitos tão memoráveis quem
poderia ainda pensar nas lamentáveis derrotas diante dos franceses, ingleses e
norte-americanos? ‘Spartakus’ é o inimigo, e Berlim, o lugar onde nossos
oficiais pretendem vencer; Noske, o ‘trabalhador’, é o general que sabe
organizar a vitória ali onde Ludendorff foi derrotado.
(...)
‘A
ordem reina em Varsóvia!’, ‘A ordem reina em Paris!’, ‘A ordem reina em
Berlim!’ É assim que a cada meio século, de um centro a outro da luta
histórico-mundial, se propalam os anúncios dos guardiões da ‘ordem’. E os
exultantes ‘vencedores’ não percebem que uma ‘ordem’ que precisa ser
periodicamente mantida com carnificinas sangrentas vai, de maneira inexorável,
ao encontro de seu destino histórico, de sua queda. O que foi essa última
‘semana spartakista’ em Berlim, o que ela trouxe, o que ela nos ensinou? Em meio
à luta, em meio aos gritos de vitória da contrarrevolução, os proletários
revolucionários devem prestar contas sobre o que aconteceu, medir os eventos e
seus resultados por um amplo parâmetro histórico. A revolução não tem tempo a
perder, ela continua se precipitando em direção a seus grandes objetivos – por
cima de túmulos ainda abertos, por cima de ‘vitórias’ e ‘derrotas’. Seguir
conscientemente suas linhas de força, seus caminhos é a primeira tarefa dos que
combatem pelo socialismo internacional.
Era
de se esperar, nesse enfrentamento, uma vitória decisiva do proletariado
revolucionário, podia-se esperar a queda de Ebert-Scheidemann e a instauração
da ditadura socialista? Certamente que não, se se levam em conta todos os
elementos decisivos sobre a questão. Nesse momento, o ponto fraco da causa
revolucionária consiste na imaturidade política da massa de soldados, que
continuam a deixar-se utilizar por seus oficiais em função de objetivos
contrarrevolucionários inimigos do povo; só isso já é uma prova de que neste
conflito não era possível uma vitória duradoura da revolução. Por sua vez, a
imaturidade dos próprios militares é apenas um sintoma da imaturidade geral da
revolução alemã.
O
meio rural, de onde provém uma grande porcentagem da massa dos soldados, quase
não foi tocado, nem antes nem depois da revolução. Até agora Berlim ainda está
praticamente isolada do resto do Reich. É certo que os centros revolucionários
da província – Renânia, costa do Mar do Norte, Brunswick, Saxônia, Wüttemberg –
estão de corpo e alma ao lado do proletariado berlinense. Mas, antes de tudo, o
que falta é a coordenação imediata da ofensiva, a ação comum direta que daria à
investida e à rapidez de resposta do operariado berlinense uma eficácia
incomparavelmente maior. Em seguida – somente nesse contexto mais profundo é
que se encontram as insuficiências políticas da revolução – as lutas
econômicas, a verdadeira fonte vulcânica que alimenta continuamente a luta de
classes, estão somente em seu estágio inicial.
O
que resulta de tudo isso é que não se podia contar nesse momento com uma
vitória definitiva, duradoura. Será que por isso a luta das últimas semanas foi
um ‘erro’? Sim, caso se tratasse de uma ‘investida’, de um assim chamado
‘golpe’! Mas o que foi o ponto de partida das últimas semanas de
combate? Como em todos os casos precedentes (...) – uma brutal provocação do
governo! (...) A revolução não opera à sua vontade, em campo raso, segundo um
plano preparado por hábeis ‘estrategistas’. Seus adversários também tomam a iniciativa,
sim, em regra geral, muito mais que a própria revolução.
Posto
diante da grosseira provocação dos Ebert-Scheidemann, o operariado
revolucionário era compelido a pegar em armas. Sim, para a revolução era uma
questão de honra rechaçar imediatamente o ataque com toda a energia, se não se
quisesse encorajar o contínuo avanço da contrarrevolução, se não se quisesse
que as fileiras revolucionárias do proletariado e o crédito moral da revolução
alemã na Internacional fossem abalados.
De
resto, a imediata resistência das massas berlinenses surgiu espontaneamente com
uma energia tão natural que, desde o primeiro arranque, a vitória moral ficou
do lado da ‘rua’.
Ora,
a lei vital interna da revolução consiste em nunca parar no estágio atingido,
em não cair na inatividade, na passividade. A melhor parada é um golpe
certeiro. Essa regra elementar da luta domina justamente todos os passos da
revolução. É muito compreensível – e mostra o instinto sadio, o frescor da
força intrínseca do proletariado berlinense – que ele não se contentasse em
reinstalar Eichhorn em seu posto [*Eichhorn, membro do USPD, havia sido afastado da chefia de policia em Berlim por ser leal aos companheiros operários revoltosos], que avançasse espontaneamente para a ocupação
de outros postos de poder da contrarrevolução: a imprensa burguesa, o
escritório oficioso da agência de notícias, o Vorwärts. Todas essas medidas tomadas
pelas massas eram consequência do conhecimento instintivo de que, por sua vez,
a contrarrevolução não se satisfaria com a derrota que lhe fora infligida, mas
que preparava uma demonstração de força geral.
(...)
Assim que o problema fundamental da revolução foi posto claramente – e nesta
revolução ele consiste na queda do governo Ebert-Scheidemann como primeiro
obstáculo para a vitória do socialismo -, esse problema ressurge em toda a sua
atualidade e, com a fatalidade de uma lei natural, cada episódio isolado da
luta põe o problema em toda a sua abrangência, mesmo que a revolução ainda
esteja muito pouco madura. (...)
Dessa
contradição, numa fase inicial do desenvolvimento revolucionário, entre o
agravamento da tarefa e a falta de condições prévias para sua solução, resulta
que as lutas isoladas da revolução acabem formalmente em derrota. Mas a
revolução é a única forma de ‘guerra’ – esta é também uma de suas peculiares
leis vitais – em que a vitória final só pode ser preparada por uma série de
‘derrotas’!
O
que nos mostra toda a história das revoluções modernas e do socialismo? A
primeira labareda da luta de classes na Europa, a rebelião dos tecelões de seda
de Lyon em 1831, terminou com uma pesada derrota; o movimento cartista na
Inglaterra – com uma derrota. O levante do proletariado parisiense nas jornadas
de junho de 1848 acabou numa derrota esmagadora. A Comuna de Paris terminou com
uma derrota terrível. O caminho do socialismo – levando em consideração as
lutas revolucionárias – está inteiramente pavimentado de derrotas.
E, no entanto, essa mesma história leva irresistivelmente, passo a
passo à vitória final! Onde estaríamos nós hoje sem essas ‘derrotas’ das quais
extraímos experiência histórica, conhecimento, poder, idealismo? Hoje, que
estamos no limiar da batalha final da luta de classes proletária, nós nos apoiamos
precisamente nessas derrotas, sem poder prescindir de nenhuma delas, pois cada
uma faz parte de nossa força e de nossa clareza de objetivos.
Os combates revolucionários estão em
oposição direta com as lutas parlamentares. Na Alemanha, durante quatro
décadas, tivemos gritantes ‘vitórias’ parlamentares, caminhávamos literalmente
de vitória em vitória. E o resultado na grande prova histórica de 4 de agosto
de 1914 foi uma esmagadora derrota política e moral, um colapso inaudito, uma
bancarrota sem precedentes. As revoluções trouxeram-nos até agora derrotas
gritantes, mas essas derrotas inevitáveis são justamente a garantia reiterada
da futura vitória final.
Contudo,
com uma condição! É preciso perguntar em que condições cada derrota se seu: se
resultou do fato de que a energia bélica das massas, avançando, se chocou
contra a falta de maturidade das condições históricas prévias, ou se a própria
ação revolucionária foi paralisada por meias medidas, indecisões, fraquezas
internas.
Os
exemplos clássicos de ambos os casos são, de um lado, a Revolução de Fevereiro
na França, e, de outro a Revolução de Março na Alemanha. A ação heroica do
proletariado parisiense em 1848 tornou-se fonte viva de energia de classe para
todo o proletariado internacional. As ridicularias da Revolução de Março alemã
são como uma bola de ferro presa aos pés de todo moderno desenvolvimento
alemão. Elas atuam, por meio da história particular da social-democracia alemã
oficial, até os recentes acontecimentos da revolução alemã, até a crise
dramática que acabamos de vivenciar.
Como
aparece, à luz da questão histórica mencionada, a derrota da assim chamada
‘semana spartakista’? Será que foi uma derrota por causa da impetuosidade da energia
revolucionária e da insuficiência maturidade da situação ou por causa da
fraqueza e da irresolução da ação?
Ambas!
O duplo caráter dessa crise, a contradição entre a atitude vigorosa, resoluta,
ofensiva das massas berlinenses e a indecisão, a hesitação, as meias medidas da
direção, eis as características particulares desse último período.
A
direção fracassou. Mas a direção pode e deve ser novamente criada pelas massas
e a partir delas. As massas são o decisivo, o rochedo sobre o qual se
estabelecerá a vitória final da revolução. As massas estiveram à altura, elas
fizeram dessa ‘derrota’ um elo daquelas derrotas históricas que constituem o
orgulho e a força do socialismo internacional. E por isso a vitória futura
florescerá dessa ‘derrota’.
‘A
ordem reina em Berlim!” Esbirros estúpidos! A sua ‘ordem’ está construída sobre
areia. Amanhã a revolução ‘se levantará de novo ruidosamente’, proclamando ao
som de trompa:
Ich war, ich
bin, ich werde sein
(Eu
era, eu sou, eu serei! – Ferdinand Freiligrath)
(A ordem reina em Berlim in Textos
Escolhidos, volume II, pp. 395-401)
Nota
Nota
Este
artigo - o último de Rosa Luxemburg - foi publicado no jornal spartakista Die
Rote Fahne em 14 de janeiro de 1919. No dia seguinte, ela e Karl
Liebknecht foram presos e assassinados pelos Freikorps, as
brutais milícias de voluntários que Gustav Noske - social-democrata
“especialista” em assuntos militares - utilizava para manter a “ordem” em
Berlim. Os corpos dos dois grandes líderes spartakistas foram jogados no canal
Landwehr.
Sobre
esse duplo assassinato, Nettl comenta: “Sem
dúvida nenhuma, o governo [*encabeçado pelos social-democratas Ebert e
Scheidemann] não ordenou explicitamente que os dois líderes sparkistas fossem
mortos. Todavia, Noske não fez nada para frear os seus colaboradores sedentos
de sangue. Os membros do Freikorps estavam convencidos, na época e mais tarde,
de que podiam contar com o apoio de Noske no decurso de um eventual processo.
Além disso, já havia o precedente de fuzilamentos que tinham permanecido impunes.
(...)
Depois
da derrota de janeiro, começou uma nova fase na relação entre Spartakus e o
restante da sociedade. O abismo do qual até aquele momento os comunistas tinham
falado em termos teóricos, com os assassinatos se tornou real: era o abismo da
tumba. Se o SPD não tinha instigado de maneira direta o assassinato dos dois
grandes dirigentes, pelo menos o havia tolerado. Esta culpa pesava mais do que
qualquer divergência sobre a teoria e a tática revolucionária.” (J.P.
Nettl, Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano, 1978, pp.
386 e 390)
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.