quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A claraboia e o holofote #29 (XII)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista






Rosa Luxemburg


A ordem reina em Berlim (1919)



‘A ordem reina em Berlim!’, proclama triunfante a imprensa burguesa, proclamam Ebert e Noske, proclamam os oficiais das ‘tropas vitoriosas’ que a ralé pequeno-burguesa de Berlim acolhe nas ruas, acenando com o lenço e gritando hurra! Perante a história mundial, a glória e a honra das armas alemãs estão salvas. Os lamentáveis vencidos de Flandres e Argonne restabeleceram sua reputação com brilhante vitória – sobre 300 ‘spartakistas’ no Vorwärts. Os tempos  da gloriosa invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, os tempos do general Von Emmich, o vencedor de Liège, empalidecem diante dos feitos dos Reinhardt e cia. nas ruas de Berlim. Massacre de parlamentares que queriam negociar a rendição do Vorwärts e que foram mortos a coronhadas pela soldadesca do governo até ficarem irreconhecíveis, a ponto de a identificação dos corpos ser impossível; prisioneiros postos contra a parede e assassinados de tal maneira que o crânio e o cérebro esguicharam. Perante feitos tão memoráveis quem poderia ainda pensar nas lamentáveis derrotas diante dos franceses, ingleses e norte-americanos? ‘Spartakus’ é o inimigo, e Berlim, o lugar onde nossos oficiais pretendem vencer; Noske, o ‘trabalhador’, é o general que sabe organizar a vitória ali onde Ludendorff foi derrotado.
(...)
‘A ordem reina em Varsóvia!’, ‘A ordem reina em Paris!’, ‘A ordem reina em Berlim!’ É assim que a cada meio século, de um centro a outro da luta histórico-mundial, se propalam os anúncios dos guardiões da ‘ordem’. E os exultantes ‘vencedores’ não percebem que uma ‘ordem’ que precisa ser periodicamente mantida com carnificinas sangrentas vai, de maneira inexorável, ao encontro de seu destino histórico, de sua queda. O que foi essa última ‘semana spartakista’ em Berlim, o que ela trouxe, o que ela nos ensinou? Em meio à luta, em meio aos gritos de vitória da contrarrevolução, os proletários revolucionários devem prestar contas sobre o que aconteceu, medir os eventos e seus resultados por um amplo parâmetro histórico. A revolução não tem tempo a perder, ela continua se precipitando em direção a seus grandes objetivos – por cima de túmulos ainda abertos, por cima de ‘vitórias’ e ‘derrotas’. Seguir conscientemente suas linhas de força, seus caminhos é a primeira tarefa dos que combatem pelo socialismo internacional.

Era de se esperar, nesse enfrentamento, uma vitória decisiva do proletariado revolucionário, podia-se esperar a queda de Ebert-Scheidemann e a instauração da ditadura socialista? Certamente que não, se se levam em conta todos os elementos decisivos sobre a questão. Nesse momento, o ponto fraco da causa revolucionária consiste na imaturidade política da massa de soldados, que continuam a deixar-se utilizar por seus oficiais em função de objetivos contrarrevolucionários inimigos do povo; só isso já é uma prova de que neste conflito não era possível uma vitória duradoura da revolução. Por sua vez, a imaturidade dos próprios militares é apenas um sintoma da imaturidade geral da revolução alemã.

O meio rural, de onde provém uma grande porcentagem da massa dos soldados, quase não foi tocado, nem antes nem depois da revolução. Até agora Berlim ainda está praticamente isolada do resto do Reich. É certo que os centros revolucionários da província – Renânia, costa do Mar do Norte, Brunswick, Saxônia, Wüttemberg – estão de corpo e alma ao lado do proletariado berlinense. Mas, antes de tudo, o que falta é a coordenação imediata da ofensiva, a ação comum direta que daria à investida e à rapidez de resposta do operariado berlinense uma eficácia incomparavelmente maior. Em seguida – somente nesse contexto mais profundo é que se encontram as insuficiências políticas da revolução – as lutas econômicas, a verdadeira fonte vulcânica que alimenta continuamente a luta de classes, estão somente em seu estágio inicial.

O que resulta de tudo isso é que não se podia contar nesse momento com uma vitória definitiva, duradoura. Será que por isso a luta das últimas semanas foi um ‘erro’? Sim, caso se tratasse de uma ‘investida’, de um assim chamado ‘golpe’!  Mas o que foi o ponto de partida das últimas semanas de combate? Como em todos os casos precedentes (...) – uma brutal provocação do governo! (...) A revolução não opera à sua vontade, em campo raso, segundo um plano preparado por hábeis ‘estrategistas’. Seus adversários também tomam a iniciativa, sim, em regra geral, muito mais que a própria revolução.

Posto diante da grosseira provocação dos Ebert-Scheidemann, o operariado revolucionário era compelido a pegar em armas. Sim, para a revolução era uma questão de honra rechaçar imediatamente o ataque com toda a energia, se não se quisesse encorajar o contínuo avanço da contrarrevolução, se não se quisesse que as fileiras revolucionárias do proletariado e o crédito moral da revolução alemã na Internacional fossem abalados.

De resto, a imediata resistência das massas berlinenses surgiu espontaneamente com uma energia tão natural que, desde o primeiro arranque, a vitória moral ficou do lado da ‘rua’.

Ora, a lei vital interna da revolução consiste em nunca parar no estágio atingido, em não cair na inatividade, na passividade. A melhor parada é um golpe certeiro. Essa regra elementar da luta domina justamente todos os passos da revolução. É muito compreensível – e mostra o instinto sadio, o frescor da força intrínseca do proletariado berlinense – que ele não se contentasse em reinstalar Eichhorn em seu posto [*Eichhorn, membro do USPD, havia sido afastado da chefia de policia em Berlim por ser leal aos companheiros operários revoltosos], que avançasse espontaneamente para a ocupação de outros postos de poder da contrarrevolução: a imprensa burguesa, o escritório oficioso da agência de notícias, o Vorwärts. Todas essas medidas tomadas pelas massas eram consequência do conhecimento instintivo de que, por sua vez, a contrarrevolução não se satisfaria com a derrota que lhe fora infligida, mas que preparava uma demonstração de força geral.

(...) Assim que o problema fundamental da revolução foi posto claramente – e nesta revolução ele consiste na queda do governo Ebert-Scheidemann como primeiro obstáculo para a vitória do socialismo -, esse problema ressurge em toda a sua atualidade e, com a fatalidade de uma lei natural, cada episódio isolado da luta põe o problema em toda a sua abrangência, mesmo que a revolução ainda esteja muito pouco madura. (...)

Dessa contradição, numa fase inicial do desenvolvimento revolucionário, entre o agravamento da tarefa e a falta de condições prévias para sua solução, resulta que as lutas isoladas da revolução acabem formalmente em derrota. Mas a revolução é a única forma de ‘guerra’ – esta é também uma de suas peculiares leis vitais – em que a vitória final só pode ser preparada por uma série de ‘derrotas’!

O que nos mostra toda a história das revoluções modernas e do socialismo? A primeira labareda da luta de classes na Europa, a rebelião dos tecelões de seda de Lyon em 1831, terminou com uma pesada derrota; o movimento cartista na Inglaterra – com uma derrota. O levante do proletariado parisiense nas jornadas de junho de 1848 acabou numa derrota esmagadora. A Comuna de Paris terminou com uma derrota terrível. O caminho do socialismo – levando em consideração as lutas revolucionárias – está inteiramente pavimentado de derrotas.

E, no entanto, essa mesma história leva irresistivelmente, passo a passo à vitória final! Onde estaríamos nós hoje sem essas ‘derrotas’ das quais extraímos experiência histórica, conhecimento, poder, idealismo? Hoje, que estamos no limiar da batalha final da luta de classes proletária, nós nos apoiamos precisamente nessas derrotas, sem poder prescindir de nenhuma delas, pois cada uma faz parte de nossa força e de nossa clareza de objetivos.




Os combates revolucionários estão em oposição direta com as lutas parlamentares. Na Alemanha, durante quatro décadas, tivemos gritantes ‘vitórias’ parlamentares, caminhávamos literalmente de vitória em vitória. E o resultado na grande prova histórica de 4 de agosto de 1914 foi uma esmagadora derrota política e moral, um colapso inaudito, uma bancarrota sem precedentes. As revoluções trouxeram-nos até agora derrotas gritantes, mas essas derrotas inevitáveis são justamente a garantia reiterada da futura vitória final.

Contudo, com uma condição! É preciso perguntar em que condições cada derrota se seu: se resultou do fato de que a energia bélica das massas, avançando, se chocou contra a falta de maturidade das condições históricas prévias, ou se a própria ação revolucionária foi paralisada por meias medidas, indecisões, fraquezas internas.

Os exemplos clássicos de ambos os casos são, de um lado, a Revolução de Fevereiro na França, e, de outro a Revolução de Março na Alemanha. A ação heroica do proletariado parisiense em 1848 tornou-se fonte viva de energia de classe para todo o proletariado internacional. As ridicularias da Revolução de Março alemã são como uma bola de ferro presa aos pés de todo moderno desenvolvimento alemão. Elas atuam, por meio da história particular da social-democracia alemã oficial, até os recentes acontecimentos da revolução alemã, até a crise dramática que acabamos de vivenciar.

Como aparece, à luz da questão histórica mencionada, a derrota da assim chamada ‘semana spartakista’? Será que foi uma derrota por causa da impetuosidade da energia revolucionária e da insuficiência maturidade da situação ou por causa da fraqueza e da irresolução da ação?

Ambas! O duplo caráter dessa crise, a contradição entre a atitude vigorosa, resoluta, ofensiva das massas berlinenses e a indecisão, a hesitação, as meias medidas da direção, eis as características particulares desse último período.

A direção fracassou. Mas a direção pode e deve ser novamente criada pelas massas e a partir delas. As massas são o decisivo, o rochedo sobre o qual se estabelecerá a vitória final da revolução. As massas estiveram à altura, elas fizeram dessa ‘derrota’ um elo daquelas derrotas históricas que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. E por isso a vitória futura florescerá dessa ‘derrota’.

‘A ordem reina em Berlim!” Esbirros estúpidos! A sua ‘ordem’ está construída sobre areia. Amanhã a revolução ‘se levantará de novo ruidosamente’, proclamando ao som de trompa:
Ich war, ich bin, ich werde sein
(Eu era, eu sou, eu serei! – Ferdinand Freiligrath)

(A ordem reina em Berlim in Textos Escolhidos, volume II, pp. 395-401)



Nota


Este artigo - o último de Rosa Luxemburg -  foi publicado no jornal spartakista Die Rote Fahne em 14 de janeiro de 1919. No dia seguinte, ela e Karl Liebknecht foram presos e assassinados pelos Freikorps, as brutais milícias de voluntários que Gustav Noske - social-democrata “especialista” em assuntos militares - utilizava para manter a “ordem” em Berlim. Os corpos dos dois grandes líderes spartakistas foram jogados no canal Landwehr. 

Sobre esse duplo assassinato, Nettl comenta: Sem dúvida nenhuma, o governo [*encabeçado pelos social-democratas Ebert e Scheidemann] não ordenou explicitamente que os dois líderes sparkistas fossem mortos. Todavia, Noske não fez nada para frear os seus colaboradores sedentos de sangue. Os membros do Freikorps estavam convencidos, na época e mais tarde, de que podiam contar com o apoio de Noske no decurso de um eventual processo. Além disso, já havia o precedente de fuzilamentos que tinham permanecido impunes.
(...)
Depois da derrota de janeiro, começou uma nova fase na relação entre Spartakus e o restante da sociedade. O abismo do qual até aquele momento os comunistas tinham falado em termos teóricos, com os assassinatos se tornou real: era o abismo da tumba. Se o SPD não tinha instigado de maneira direta o assassinato dos dois grandes dirigentes, pelo menos o havia tolerado. Esta culpa pesava mais do que qualquer divergência sobre a teoria e a tática revolucionária.” (J.P. Nettl, Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano1978pp. 386 e 390)







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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.






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