Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista
Rosa Luxemburg
Rosa na palavra dos outros: antologia
Vladimir Ilitch Lenin
György Lukács
J. P. Nettl
Hannah Arent
Lelio Basso
Norman Geras
Isabel Maria Loureiro
Rosa na palavra dos outros: antologia
Vladimir Ilitch Lenin
"Ocorre às vezes que as águias voem mais
baixo que as galinhas, mas jamais as galinhas voam na altura das águias. Rosa
Luxemburg errou na questão da independência da Polônia; errou, em 1903, na
avaliação do menchevismo; errou a sua teoria da acumulação do capital; errou
quando, em julho de 1914, ao lado de Plekhanov, Vandervelde, Kautsky, etc.,
defendeu a unificação de bolcheviques e mencheviques; errou nos seus escritos
de prisão de 1918 (por outro lado, ela própria ao sair da prisão no final de
1918 e início de 1919, corrigiu grande parte de seus erros). Mas, apesar
dos seus erros, ela foi e continua a ser uma águia."
(Vladimir Ilitch Lenin, Notes of a Publicist, 1922)
György Lukács
“Fatalismo
econômico e nova fundação ética do socialismo estão estreitamente ligados. Não
é por acaso que os encontramos igualmente em Bernstein, Tugan-Baranovski e Otto
Bauer. E não é apenas pela necessidade de encontrar um substituto subjetivo
para a via objetivo da revolução, via que eles mesmo barraram; é também uma
consequência do seu individualismo metodológico. A nova fundação “ética” do
socialismo é o aspecto subjetivo da ausência da categoria de totalidade, a
única capaz de trazer a coesão. Ao Indivíduo - seja capitalista ou proletário -
o mundo circundante, o meio social (e a natureza que é seu reflexo ou projeção
teórica) aparecem necessariamente como que submetidos a um destino brutal e
absurdo, como algo que lhe é por essência eternamente estranho. Este
mundo não pode ser compreendido por ele a não ser que, na teoria, adquira a
forma de ‘leis eternas da natureza’, isto é, adquira uma racionalidade estranha
ao homem, incapaz de ser influenciada ou penetrada pelas possibilidades de ação
do indivíduo, de maneira que o indivíduo adota a esse respeito uma
atitude puramente contemplativa. Um mundo assim só oferece duas vias
possíveis de ação, de transformação do mundo. A primeira é a utilização para
certas finalidades humanas (a técnica por exemplo) de ‘leis’ imutáveis, aceitas
com fatalismo e conhecidas pelo modo já indicado. A segunda é a ação dirigida
puramente para o interior, a tentativa de realizar a transformação do mundo
pelo único ponto do mundo que permanece livre, pelo homem (a ética). Mas como a
mecanização o mundo mecaniza necessariamente também seu sujeito - o homem -,
esta ética permanece igualmente abstrata, exclusivamente normativa, e não
realmente ativa e criadora de objetos, mesmo em relação à totalidade do homem
isolado do mundo. Ela permanece um simples dever-ser: ela tem apenas o caráter
de um imperativo. A ligação metodológica entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica
da Razão Prática de Kant é uma ligação obrigatória e inelutável. E todo
‘marxista’ que abandonou a consideração da totalidade do processo histórico, o
método de Hegel-Marx, no estudo da realidade econômica e social, para se
aproximar de uma maneira ou de outra da consideração ‘crítica’ [na
acepção kantiana] do método não-histórico de uma ciência particular em
busca de ‘leis’, deve – uma vez que se dedique ao problema da ação – voltar
necessariamente à ética abstrata da escola kantiana.
Ora,
quando se desloca o ponto de vista da totalidade, desloca-se a unidade da
teoria e da prática. Porque a ação, a práxis, nas quais Marx fez culminar
as Teses sobre Feuerbach,
implicam essencialmente uma penetração, uma transformação da realidade. Mas a
realidade não pode ser apreendida e penetrada a não ser como totalidade, e
somente um sujeito que seja ele mesmo uma totalidade é capaz desta penetração.
Não é por outra razão que o jovem Hegel coloca como primeira exigência de sua
filosofia o princípio segundo o qual ‘o verdadeiro deve ser apreendido e
expresso não apenas como substância mas igualmente como sujeito’. Ele
desmascarou assim a falta mais grave, o limite derradeiro da filosofia clássica
alemã, embora o cumprimento real desta exigência tenha sido recusado à sua
própria filosofia; esta permaneceu prisioneira em vários aspectos dos mesmos
limites que a dos seus predecessores. Foi somente a Marx que coube descobrir
concretamente este ‘verdadeiro como sujeito’ e de estabelecer assim a unidade
da teoria e da prática, centrando em e limitando à realidade do processo
histórico a efetivação da totalidade assim reconhecida e determinando a
totalidade cognoscente e aquela a ser conhecida. A superioridade metodológica e
científica do ponto de vista da classe (por oposição àquela do indivíduo) foi
esclarecida no que precede. Agora é o fundamento desta superioridade
que também se torna claro: somente a classe pode, por sua ação, penetrar na
realidade social e transformá-la em sua totalidade. Eis porque,
considerando a totalidade, a ‘crítica’ que se exerce a partir deste ponto de
vista é a unidade dialética da teoria e da práxis. Ela é, numa unidade
indissolúvel, ao mesmo tempo o fundamento e a consequência, o reflexo e o motor
do processo histórico dialético. O proletariado, sujeito do pensamento da
sociedade, desloca com um só golpe o dilema da impotência, isto é, o dilema
entre o fatalismo das leis puras e a ética das intenções puras.
Logo,
se para o marxismo o conhecimento do caráter historicamente limitado do
capitalismo (o problema da acumulação) se torna uma questão vital, é porque
apenas essa ligação, a unidade da teoria e da prática, tem o poder de
manifestar como fundamentada a necessidade da revolução social, da
transformação total da totalidade da sociedade.
(...)
A
consciência de classe do proletariado, que é a verdade do proletariado como
‘sujeito’, não é, porém, de nenhuma maneira estável, sempre semelhante a si
mesma nem está em movimento segundo leis mecânicas. Ela é a consciência do
processo dialético mesmo: ele é igualmente um conceito dialético. Porque o
aspecto prático, ativo, da consciência de classe, sua essência verdadeira,
somente pode se tornar visível na sua forma autêntica quando o processo
histórico exige imperiosamente sua entrada em vigor, quando uma crise aguda da economia
a conduz à ação. Caso contrário ela permanece, de maneira correspondente à
crise permanente e latente do capitalismo, teórica e latente: ela coloca suas
exigências às questões e lutas particulares cotidianas como ‘simples’
consciência, como ‘soma ideal’, segundo a expressão de Rosa Luxembourg.
Contudo,
na unidade dialética da teoria e da práxis, que Marx reconheceu e tornou
consciente na luta emancipatória do proletariado, não pode haver simples
consciência, nem como ‘pura’ teoria nem como simples exigência, dever ou
simples norma de ação. A exigência tem também a sua realidade. Quer dizer que o
nível do processo histórico que imprime à consciência de classe do proletariado
um caráter de exigência, um caráter ‘latente e teórico’, deve se fazer
realidade de modo correspondente e intervir como agente na totalidade do
processo. Esta forma da consciência da luta proletária é o partido. Não é por
acaso que Rosa Luxemburg, que reconheceu mais cedo e mais claramente que muitos
outros o caráter essencialmente espontâneo das ações revolucionárias da massa (sublinhando
assim um outro aspecto desta constatação anterior, segundo a qual as ações são
produtos necessários de um processo econômico necessário), viu de maneira
clara, igualmente antes de muito outros, o papel do partido na revolução. Para
os vulgarizadores mecanicistas, o partido era uma simples forma de organização,
e o movimento das massas, inclusive a revolução, era somente um problema de
organização. Rosa Luxemburg reconheceu cedo que a organização é muito mais uma
consequência do que uma condição prévia do processo revolucionário, da mesma
maneira que o próprio proletariado somente pode se constituir como classe no e
pelo processo. Neste processo, que o partido não pode nem provocar nem evitar,
cabe-lhe o papel de ser o portador da consciência de classe do proletariado, a
consciência de sua missão histórica. Enquanto a atitude aparentemente mais
ativa e em todo caso mais realista para um observador superficial, que atribui
ao partido, antes de tudo ou exclusivamente, tarefas de organização, fica encurralada,
diante do fato da revolução, a uma posição de fatalismo inconsistente, a
concepção de Rosa Luxemburg é a fonte da verdade atividade revolucionária. Se o
partido tem por preocupação ‘que
cada fase e em cada momento da luta a soma total da potência presente e já
engajada, ativa, do proletariado se efetive e se exprima em uma posição de
combate do partido; que a tática da social-democracia não esteja jamais, em
resolução e perspicácia, abaixo do nível efetivo das relações de forças, mas vá
adiante dessa relação’, enquanto o partido transforma, no momento agudo
da revolução, seu caráter de exigência em realidade que age, porque ele faz
penetrar no movimento de massas espontâneo a verdade que lhe é imanente. Ele
eleva a necessidade econômica de sua origem à liberdade da ação consciente.
Esta passagem da exigência à realidade se torna o fermento da organização
verdadeiramente revolucionária, verdadeiramente conforme à classe do
proletariado. O conhecimento se torna ação, a teoria se torna palavra de ordem,
a massa que age segundo a palavra de ordem se incorpora cada vez mais
fortemente, conscientemente e firmemente às fileiras da vanguarda organizada.
As palavras de ordem corretas dão nascimento de maneira orgânica às condições e
possibilidades de organização do proletariado em luta.
(...)
A
unidade da vitória e da derrota, do destino individual e do processo conjunto
constituíram o fio diretor da teoria de Rosa Luxemburg e de sua conduta: é o
sinal da unidade da teoria com a prática em sua obra e em sua vida.
(...) Sua morte, obra de seus adversários mais profundos e
encarniçados, Scheidemann e Noske, é o coroamento lógico de seu pensamento e de
sua vida. Ela ficou perto das massas no momento de sua derrota na insurreição
de Janeiro (claramente prevista no domínio da teoria há muito tempo e, no
domínio da prática, no instante da ação) e ela partilhou sua sorte; trata-se de
uma consequência tão lógica da unidade da teoria e da práxis na sua ação quanto
o ódio mortal que, de maneira igualmente coerente, lhe votavam seus assassinos,
os oportunistas social-democratas”.
(György
Lukács, Rosa Luxembourg, marxiste [1921] in Histoire
et Conscience de Classe, 1976)
J. P. Nettl
"A
história da longa controvérsia pela herança espiritual e política de Rosa
Luxemburg é ela mesma uma história feita de distorções. A verdade é bastante
simples. Marx legou duas grandes alternativas, uma primária, outra derivada. A
primária dizia respeito ao caráter da revolução: era formal ou real, objetiva
ou subjetiva, um acontecimento que se produzia ou, ao invés, um que deveria ser
feito? (Essas eram as posições extremas, com infinitas variações possíveis
entre uma e outra). A ruptura irreparável, que transformou a possibilidade em
alternativas inconciliáveis, se produziu em 1910: Kautsky e Rosa Luxemburg
sustentaram duas posições contrapostas. (A controvérsia revisionista dizia
respeito ao “como”, não a “o quê”; um pequeno presente, não um grande futuro;
era uma batalha de segunda ordem). Desta primeira ruptura derivava a segunda
alternativa: os socialistas faziam a revolução ou a guiavam? A Revolução de Outubro impediu o
surgimento de posições intermediárias e conduziu imediatamente a uma nova
ruptura. A morte impediu Rosa Luxemburg de colocar-se como dirigente de uma
alternativa marxista revolucionária. No entanto, este papel pertencia a ela por
direito – não a Trotsky ou algum dos outros que mais tarde saíram da
coletividade bolchevista, mas a ela, a mulher impetuosa, a eterna estrangeira,
que pertencia a tantos socialismos e a nenhum. Somente Rosa
Luxemburg participou ativamente nas duas grandes cisões do marxismo moderno e
contribuiu para realizá-las. Este é o lugar que ela ocupa na história e o motivo
deste livro".
(J.
P. Nettl, Rosa Luxemburg [1966], 1978)
Hannah Arent
“Será que o fracasso de todos os seus
esforços, no que se refere ao reconhecimento oficial está de algum modo ligado
ao fracasso da revolução em nosso século?
Embora
a revolução fosse para ela tão próxima e real como para Lenin, não a colocava
como um artigo de fé, como tampouco o marxismo.
Isso
evidentemente significa admitir que ela não era uma marxista ortodoxa e, de
fato tão pouco ortodoxa que até se pode perguntar se, afinal era marxista.
O
ponto principal é que ela aprendera com os conselhos operários revolucionários
que ‘a boa organização não
precede a ação, mas é seu produto’, que ‘a organização da ação
revolucionária pode e deve ser aprendida na própria revolução, assim como só se
pode aprender a nadar na água’, que as revoluções não são ‘feitas’ por
ninguém, mas irrompem ‘espontaneamente’ e que a ‘pressão para a ação’ sempre
vem de baixo.
Além
disso, seria contra seu feitio encarar a revolução como beneficiária da guerra
e do massacre – coisa que não incomodava minimamente Lenin. E quanto à questão
da organização, ela não acreditava numa vitória onde o povo em geral não
tomasse parte ou não tivesse voz; na verdade, acreditava tão pouco em tomar o poder
a qualquer preço que ‘tinha muito mais medo de uma revolução deformada do que
de uma fracassada’ – esta era, de fato, ‘a grande diferença entre ela’ e os
bolcheviques.
(Hannah
Arendt, “Rosa Luxemburg 1871-1919 [1966] in Homens em Tempos Sombrios, 1987)
Gilbert
Badia
“De
qualquer maneira, não se deve rejeitar a hipótese de que o fracasso parcial da
revolução de novembro [de 1918], e as condições do esmagamento do Spartakismo
(a aliança dos socialistas majoritários com o Estado-Maior) tornaram possíveis,
a longo prazo, o nascimento do Nacional-Socialismo e pesaram muito na
orientação da futura república de Weimar, o que explica em parte o fim deste
regime”.
(Gilbert
Badia, Le Spartakisme et as problématique in Annales Économies, Sociétés,
Civilizations, 1966)
Lelio Basso
“A
obra de Rosa Luxemburg consiste propriamente no esforço de introduzir o método
dialético de Marx na vida da luta de classes, de fazer dele não somente um
método para a interpretação da história e a análise da sociedade presente, mas
um método aplicado também para fazer a história, isto é, aplicado às ações das
grandes massas e à construção consciente do futuro. Como poucos outros
marxistas, ela sentia a realidade e a história de um modo dialético e, como
viria ela mesma a escrever, concebia a dialética histórica como ‘a rocha sobre
a qual se apoiava toda a doutrina do socialismo marxista’ ou também como ‘o
modo específico de pensar do proletariado consciente’, ‘ a arma intelectual com
a qual o proletariado, ainda subjugado materialmente, vence a burguesia
dando-lhe a demonstração da sua transitoriedade histórica, mostrando a
inevitabilidade de sua própria vitória, atuando até a hora da revolução no
reino do espírito’. Em outras palavras, era graças ao pensamento dialético que
Rosa Luxemburgo via o futuro socialista já no presente capitalista; isto
significava reunir os aspectos contraditórios mas indissolúveis da realidade de
hoje, ver o processo histórico, que surgia daquela contraditoriedade e dar-se
conta de que a verdadeira essência de cada momento aparece apenas se
consideramos aquele momento inserido na continuidade histórica. (...)
O
ponto de vista da totalidade é o ponto de vista no qual Rosa Luxemburg sempre
se coloca na consideração de qualquer fenômeno e de qualquer acontecimento,
precisamente aquele ponto de vista que Lukács, de resto sob a influência
luxemburguiana, considera o essencial do método marxista. Uso naturalmente a
palavra totalidade no sentido lukácsiano, ou, para ser mais exato,
marxista-luxemburguiano, de totalidade concreta, de um complexo orgânico de
relações, no qual cada coisa é referida ao todo e o todo predomina sobre a
parte, mas, naturalmente, não um todo fixo, estático e imutável, mas antes um
todo que está ele mesmo em transformação contínua. Por isso toda separação
entre política, economia, direito, moral, etc. é arbitrária na medida em que se
trata de faces diversas do mesmo processo unitário (faces que se podem
distinguir como tais, mas que não podem ser separadas de maneira abstrata),
assim como é arbitrária toda separação nítida de período e de fases diversas no
processo histórico na medida que cada uma compreende em si a raiz dos
desenvolvimentos sucessivos e a razão da sua própria superação, como é
arbitrária a interpretação de mão única de fatos avulsos, isolados da totalidade
do real, como se cada fato, cada ação, cada movimento, cada fenômeno não fosse
um elo de uma
corrente infinita de ações e reações recíprocas.”
(Lelio
Basso, Introduzione a ‘Scritti Politici di Rosa Luxemburg’, 1967)
Norman Geras
“A
tentação do (ou propensão para o) fatalismo econômico, se é que existe, não se
pode confinar aos escritos anteriores à Guerra, tal como não pode ficar
limitada à Acumulação
do Capital. A ruptura entre essa tentação, por um lado, e a política
revolucionária ativista, por outro, essa ruptura, se é que existe de todo,
atravessa toda a vida e toda a obra de Rosa Luxemburg duma ponta à outra, sob a
forma de uma contradição lógica. Contudo, o ponto da questão é que tanto um
como a outra não existem, e esse ponto salta à vista se, na fórmula ‘socialismo
ou barbárie’, atendemos no conteúdo da alternativa ao socialismo mais do que ao
princípio formal de haver uma alternativa, pois o que então se torna patente é
que a ideia do colapso inevitável do capitalismo e a ideia do socialismo ou
barbárie, as duas ideias que Nettl e Lowy – e mais geralmente a literatura
sobre Rosa Luxemburg – consideram contraditórias, contrapondo-as uma à outra
como representantes, respectivamente, do fatalismo e do ativismo – é que estas
duas ideias, muito ao contrário de serem contraditórias, não são sequer
diferentes. São uma e a mesma ideia. Para Luxemburg, a ‘barbárie’ significa nem
mais nem menos do que o colapso do capitalismo.
A
equivalência da barbárie e do colapso do capitalismo arrasta consigo que tanto
a primeira como o segundo são produtos necessários e inevitáveis das
contradições econômicas e que o que é necessário não é o socialismo, mas a
barbárie, conclusão que pode parecer paradoxal num marxista revolucionário se a
utilizarmos para sugerir a impossibilidade do socialismo. Contudo, o paradoxo
desaparece se concebermos o colapso do capitalismo como um processo cuja forma
e cujo resultado final são, como tanto um como a outra, uma espécie de
barbárie, que era como Rosa concebia esse colapso. Nessas circunstâncias,
embora o processo seja realmente inevitável, permanece em aberto a questão de
se saber se se deixará que ele siga o seu curso até às últimas e bárbaras
consequências ou se, por outro lado, tal processo será detido nos seus estágios
iniciais pela intervenção política consciente da classe operária, que impedirá
a catástrofe iminente, abolindo as contradições que a ela conduzem e criando
uma sociedade socialista. Para Rosa, contudo, o que a inevitabilidade do
colapso capitalista prova é, não a redundância, mas a indispensabilidade
urgente da luta revolucionária consciente por parte da classe operária. É por
força dessa inevitabilidade, e não apesar dela, que tal luta é necessária. É
também por causa dessa inevitabilidade que Rosa pode falar com propriedade de
haver uma alternativa para o socialismo. Pois que outra coisa pode ser essa
alternativa, que não seja a catástrofe? A indefinida sobrevivência
do capitalismo? Alguma nova forma de dominação de classe? Não há uma única
linha na sua obra que indique que ela aceitasse em tais possibilidades.
Se é verdade que ela aderia a uma teoria do colapso do capitalismo
que, em última análise, se baseava na postulação de desequilíbrios puramente
econômicos e que, nesse sentido era economicista, também é verdade que que tal
não servia de trampolim para o que vulgarmente se considera ser o
‘economicismo’: o menosprezo ou a subestimação da teoria e da luta ideológica
da organização e da direção políticas, a fé acrítica no poder da
‘espontaneidade’, etc. E não servia de trampolim porque não podia servir, pois
o colapso do capitalismo e a construção do socialismo não se identificavam um
com a outra no espírito de Rosa. ‘Deixado a si próprio’, o capitalismo em
colapso não poderia tornar-se uma autêntica sociedade socialista com mais
facilidade do que um pedaço de terra abandonado e desprezado poderia se tornar
um campo de trigo. O capitalismo não pode tornar-se socialismo apenas pela
dinâmica das leis econômicas. Apenas propiciava algumas condições prévias e uma
ameaça e seria necessária uma iniciativa concertada por parte do agente
histórico para utilizar corretamente as primeiras e evitar a segunda.
(Norman
Geras, A Barbárie e o Colapso do Capitalismo [1973] in A
Actualidade de Rosa Luxemburgo, 1978)
Oskar Negt
"Espontaneidade e organização não
estão em uma relação exterior entre si, mas contém uma dialética imanente
própria; quando se tenta isolar uma da outra, ou estabelecer entre elas uma
identidade superficial, o resultado é que, em seu movimento histórico, elas
podem se transformar no seu contrário. Se a organização proletária se afasta
das massas (o que não equivale ao fato de perder membros ou votos), quase
inevitavelmente isso dá margem a ações espontâneas dos operários, que podem
também se voltar contra ela; se a espontaneidade se afasta da força
organizativa da classe operária, recai no fetichismo organizativo de grupos
sectários ou no mecanismo das posições de protesto, que irrompem e logo se
apagam, dos grupos que não estão dispostos e não são capazes de assumir os
esforços de um trabalho teórico de longa duração, nem os esforços de um
trabalho prático-organizativo. Durante sua vida, Rosa Luxemburg conduziu uma
luta decidida em duas direções: contra o oportunismo burocrático e contra as
estratégias sectárias que levam ao isolamento das massas. Não obstante, é-lhe
inteiramente estranha a mentalidade de aparelho e o medo próprio às
organizações constituídas segundo o modelo da estrutura hierárquica da
associação burguesa, que vê uma ameaça em toda ação não controlada ou não
empreendida pelo partido; sua confiança na capacidade de experiência das massas
implica a convicção de que as massas estão em condições de corrigir seus
próprios erros. ‘Os
passos falsos que realiza o movimento operário revolucionário real são, no
plano histórico, incomensuravelmente mais fecundos e mais preciosos que o
melhor comitê central’.
(...)
Rosa Luxemburg concebe o partido não
como uma instituição rígida, único centro ativo do processo revolucionário, mas
como um processo em que são preservadas, tornadas conscientes e desenvolvidas
as experiências coletivas e as múltiplas tentativas de organização da classe
operária, e, com a ajuda da dialética materialista, orientadas para o objetivo
final. ‘Organizaçao,
clarificação e luta não são aqui momentos divididos, mecanicamente e
temporalmente separados como um movimento blanquista’, elas formam antes uma unidade contraditória, aspectos diversos do
mesmo processo de dialético, Não se pode transformar Rosa Luxemburg, como
muitos tentaram fazer, numa iluminista idealista que acha possível superar a
sociedade classista com a simples convicção; todavia, o páthos do iluminismo
imprime um caráter tão forte ao seu pensamento que é perceptível até mesmo nas
questões de organização: assim, para ela, a luta contra o oportunismo no
partido proletário e nos sindicatos é essencialmente uma luta intelectual, que
não pode ser decidida com medidas organizativas.
(...)
O fundamento da visão da totalidade, em
Rosa Luxemburg, não é nem uma imaginária substância de classe (por exemplo, o
proletariado como sujeito histórico), nem uma organização, mas a própria classe
operária ou, mais exatamente, uma esfera pública proletária, diante da qual se
deve demonstrar, antes de mais nada, qual a teoria e qual organização é ou não
adequada às experiências que nela tomam forma. Nos escritos de Rosa Luxemburg
há muitas referências ao fato de que ela concebe a esfera pública proletária –
embora, ao que me conste, não use explicitamente tal conceito – como uma
categoria da experiência política e da formação da consciência de classe. Essa
esfera pública proletária – apenas no interior da qual as derrotas, as
deformações e os erros podem se transformar em juízos construtivos e em
experiência que faz avançar – caracteriza-se pelo fato de que não conhece o
mecanismo de exclusão, típico da esfera pública burguesa, mediante o qual se
excluem dos interesses públicos, enquanto privadas, tanto algumas esferas
essenciais da vida quanto esferas como a da produção e da socialização (da educação).
(...) A esfera pública proletária, que não pode ser apreendida precisamente no
sentido empírico, que não indica um simples quadro das opiniões do
proletariado, mas tampouco representa a mais alta instância organizativa,
designando antes o centro de um processo dirigido à produção de experiências,
parece ter sido a única real instância decisória que Rosa reconheceu: ela não
pode ser definida, mas determina o conteúdo da realidade da luta de classes do
proletariado. A teoria de Rosa Luxemburg, que se propõe penetrar toda as
esferas substanciais da vida da sociedade, não deixa espaço que não seja
ocupado pela vontade de mudança do proletariado.
(...)
A classe burguesa pode manipular a
espontaneidade, pode criar pretextos para mobilizar as massas, pode levar o
novo ao mercado para fazer propaganda dos produtos; mas, no interior de uma
opinião pública proletária, este momento significa algo qualitativamente
diverso. Quando Rosa Luxemburg afirma que ‘a liberdade é sempre e somente a
liberdade de quem pensa de modo diferente’, sua asserção não é um retorno ao
liberalismo, mas um elemento, uma parte constitutiva vital de uma opinião
pública proletária, que não pode se limitar a reproduzir e a aclamar decisões,
programas dados, orientações de pensamento estabelecidas. Não se pode eliminar
do mundo o ‘outro’ com a simples violência; ele indica antes as resistências, a
gravidade das relações materiais, com as quais toda teoria marxista deve se
confrontar, se não quiser cair em uma ontologia inteiramente abstraída dessas
relações, ou em uma correção idealista do sistema, no qual se possa subsumir
somente o homônimo, no qual predomine o princípio da unificação”.
(Oskar Negt, Rosa Luxemburg e a
renovação do marxismo in História do Marxismo [1979], O marxismo na
época da Segunda Internacional – Segunda Parte, 1984)
Slavoj Žižek
“A grandeza de Lenin residiu em, nessa situação catastrófica, não ter medo de triunfar – em contraste com o páthos negativo discernível em Rosa Luxemburg e Adorno, para quem o ato autêntico em última instância era a admissão do fracasso que traz à luz a verdade da situação”.
(Slavoj Žižek, Entre duas revoluções [2002], Prefácio de Às Portas da Revolução – escritos de Lenin de 1917 , 2005)
Isabel Maria Loureiro
"Rosa fica continuamente enredada na mesma teia: como é possível
assegurar um futuro emancipado com um sujeito histórico alienado? Ou, em
outras palavras, de que modo fazer os escravos desejarem a liberdade? Recusar
as massas reais significaria cair no mais arbitrário vanguardismo, eficiente
como Realpolitik, mas de resultados desastrosos como política emancipadora.
Donde um pé na canoa da necessidade histórica - garantia da vitória contra
ventos e marés - e outro na da atividade da massa popular, oscilante, submetida
aos caprichos da fortuna. Para forçar a fortuna a favor dos revolucionários é
essencial o trabalho infatigável do Aufklärer, aliado à necessidade histórica,
a chamar à razão as forças emancipadoras passageiramente iludidas. (...)
Deste ponto de vista, não há oposição entre revolução como
processo lento e como insurreição armada. Tanto que, nos meses de
novembro-janeiro, defende simultaneamente uma tática radical quando apela às
massas e outra moderada ao dirigir-se às bases esquerdistas do recém-fundado
KPD. Em outras palavras, vemos conviver a teórica marxista, para quem o
momento da ruptura revolucionária está relacionado a um complexo conjunto de
fatores, impossível de determinar com precisão, e a agitadora, querendo criar
condições para tornar possível a ruptura. Sob esse aspecto, talvez sua tática
possa ser caracterizada como ‘voluntarista’.
Tal ‘voluntarismo’, entretanto, não se fundaria, como pretendem
certos autores, numa concepção fatalista da história, mesmo porque dificilmente
se pode caracterizar sua concepção de história como fatalista ou mesmo
determinista. Ela navegou a vida inteira entre dois escolhos, procurando
insistentemente manter unidos os dois polos da teoria revolucionária ou, dito
de outro modo, mostrando de que modo se dá a intervenção revolucionária no
processo evolutivo da história.
Essa unidade é elaborada, já na juventude, quando explica que
tanto Marx quanto Lassalle adotam a concepção materialista da história, embora
com ênfases diferentes: enquanto para Marx os homens fazem a história, mas não
arbitrariamente, para Lassalle, os homens não fazem arbitrariamente a história,
mas fazem-na eles mesmos. Ambos têm razão. Marx, para longos períodos de tempo,
em que as condições objetivas determinam fundamentalmente a ação subjetiva.
Lassalle, para curtos períodos, quando é essencial instigar a vontade das
massas, levando-as a agir.
A ‘ação audaz’, a ‘decisão individual’, isto é, a ‘política
prática’, num espaço de tempo breve, vale mais que a consideração das leis da
história. Mas, simultaneamente, elas não podem ser ignoradas, sob pena de cair
no aventureirismo”.
(Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação
revolucionária [1995], 2004)
Foto: Santa Fabiola: instalação de Francis Alÿs, Pinacoteca do Estado, São Paulo, 2013
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