sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A claraboia e o holofote #29 (XIII)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista






Rosa Luxemburg



Rosa na palavra dos outros: antologia 



Vladimir Ilitch Lenin


"Ocorre às vezes que as águias voem mais baixo que as galinhas, mas jamais as galinhas voam na altura das águias. Rosa Luxemburg errou na questão da independência da Polônia; errou, em 1903, na avaliação do menchevismo; errou a sua teoria da acumulação do capital; errou quando, em julho de 1914, ao lado de Plekhanov, Vandervelde, Kautsky, etc., defendeu a unificação de bolcheviques e mencheviques; errou nos seus escritos de prisão de 1918 (por outro lado, ela própria ao sair da prisão no final de 1918 e início de 1919,  corrigiu grande parte de seus erros). Mas, apesar dos seus erros, ela foi e continua a ser uma águia."

(Vladimir Ilitch Lenin, Notes of a Publicist, 1922) 




György Lukács



Fatalismo econômico e nova fundação ética do socialismo estão estreitamente ligados. Não é por acaso que os encontramos igualmente em Bernstein, Tugan-Baranovski e Otto Bauer. E não é apenas pela necessidade de encontrar um substituto subjetivo para a via objetivo da revolução, via que eles mesmo barraram; é também uma consequência do seu individualismo metodológico. A nova fundação “ética” do socialismo é o aspecto subjetivo da ausência da categoria de totalidade, a única capaz de trazer a coesão. Ao Indivíduo - seja capitalista ou proletário - o mundo circundante, o meio social (e a natureza que é seu reflexo ou projeção teórica) aparecem necessariamente como que submetidos a um destino brutal e absurdo, como algo que lhe é por essência eternamente estranho.  Este mundo não pode ser compreendido por ele a não ser que, na teoria, adquira a forma de ‘leis eternas da natureza’, isto é, adquira uma racionalidade estranha ao homem, incapaz de ser influenciada ou penetrada pelas possibilidades de ação do indivíduo, de maneira que o indivíduo adota a esse respeito uma atitude  puramente contemplativa. Um mundo assim só oferece duas vias possíveis de ação, de transformação do mundo. A primeira é a utilização para certas finalidades humanas (a técnica por exemplo) de ‘leis’ imutáveis, aceitas com fatalismo e conhecidas pelo modo já indicado. A segunda é a ação dirigida puramente para o interior, a tentativa de realizar a transformação do mundo pelo único ponto do mundo que permanece livre, pelo homem (a ética). Mas como a mecanização o mundo mecaniza necessariamente também seu sujeito - o homem -, esta ética permanece igualmente abstrata, exclusivamente normativa, e não realmente ativa e criadora de objetos, mesmo em relação à totalidade do homem isolado do mundo. Ela permanece um simples dever-ser: ela tem apenas o caráter de um imperativo. A ligação metodológica entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática de Kant é uma ligação obrigatória e inelutável. E todo ‘marxista’ que abandonou a consideração da totalidade do processo histórico, o método de Hegel-Marx, no estudo da realidade econômica e social, para se aproximar de uma maneira ou de outra da consideração ‘crítica’ [na acepção kantiana] do método não-histórico de uma ciência particular em busca de ‘leis’, deve – uma vez que se dedique ao problema da ação – voltar necessariamente à ética abstrata da escola kantiana.

Ora, quando se desloca o ponto de vista da totalidade, desloca-se a unidade da teoria e da prática. Porque a ação, a práxis, nas quais Marx fez culminar as Teses sobre Feuerbach, implicam essencialmente uma penetração, uma transformação da realidade. Mas a realidade não pode ser apreendida e penetrada a não ser como totalidade, e somente um sujeito que seja ele mesmo uma totalidade é capaz desta penetração. Não é por outra razão que o jovem Hegel coloca como primeira exigência de sua filosofia o princípio segundo o qual ‘o verdadeiro deve ser apreendido e expresso não apenas como substância mas igualmente como sujeito’. Ele desmascarou assim a falta mais grave, o limite derradeiro da filosofia clássica alemã, embora o cumprimento real desta exigência tenha sido recusado à sua própria filosofia; esta permaneceu prisioneira em vários aspectos dos mesmos limites que a dos seus predecessores. Foi somente a Marx que coube descobrir concretamente este ‘verdadeiro como sujeito’ e de estabelecer assim a unidade da teoria e da prática, centrando em e limitando à realidade do processo histórico a efetivação da totalidade assim reconhecida e determinando a totalidade cognoscente e aquela a ser conhecida. A superioridade metodológica e científica do ponto de vista da classe (por oposição àquela do indivíduo) foi esclarecida no que precede.  Agora é o fundamento desta superioridade que também se torna claro: somente a classe pode, por sua ação, penetrar na realidade social e transformá-la em sua totalidade.  Eis porque, considerando a totalidade, a ‘crítica’ que se exerce a partir deste ponto de vista é a unidade dialética da teoria e da práxis. Ela é, numa unidade indissolúvel, ao mesmo tempo o fundamento e a consequência, o reflexo e o motor do processo histórico dialético. O proletariado, sujeito do pensamento da sociedade, desloca com um só golpe o dilema da impotência, isto é, o dilema entre o fatalismo das leis puras e a ética das intenções puras.

Logo, se para o marxismo o conhecimento do caráter historicamente limitado do capitalismo (o problema da acumulação) se torna uma questão vital, é porque apenas essa ligação, a unidade da teoria e da prática, tem o poder de manifestar como fundamentada a necessidade da revolução social, da transformação total da totalidade da sociedade.
(...)
A consciência de classe do proletariado, que é a verdade do proletariado como ‘sujeito’, não é, porém, de nenhuma maneira estável, sempre semelhante a si mesma nem está em movimento segundo leis mecânicas. Ela é a consciência do processo dialético mesmo: ele é igualmente um conceito dialético. Porque o aspecto prático, ativo, da consciência de classe, sua essência verdadeira, somente pode se tornar visível na sua forma autêntica quando o processo histórico exige imperiosamente sua entrada em vigor, quando uma crise aguda da economia a conduz à ação. Caso contrário ela permanece, de maneira correspondente à crise permanente e latente do capitalismo, teórica e latente: ela coloca suas exigências às questões e lutas particulares cotidianas como ‘simples’ consciência, como ‘soma ideal’, segundo a expressão de Rosa Luxembourg.

Contudo, na unidade dialética da teoria e da práxis, que Marx reconheceu e tornou consciente na luta emancipatória do proletariado, não pode haver simples consciência, nem como ‘pura’ teoria nem como simples exigência, dever ou simples norma de ação. A exigência tem também a sua realidade. Quer dizer que o nível do processo histórico que imprime à consciência de classe do proletariado um caráter de exigência, um caráter ‘latente e teórico’, deve se fazer realidade de modo correspondente e intervir como agente na totalidade do processo. Esta forma da consciência da luta proletária é o partido. Não é por acaso que Rosa Luxemburg, que reconheceu mais cedo e mais claramente que muitos outros o caráter essencialmente espontâneo das ações revolucionárias da massa (sublinhando assim um outro aspecto desta constatação anterior, segundo a qual as ações são produtos necessários de um processo econômico necessário), viu de maneira clara, igualmente antes de muito outros, o papel do partido na revolução. Para os vulgarizadores mecanicistas, o partido era uma simples forma de organização, e o movimento das massas, inclusive a revolução, era somente um problema de organização. Rosa Luxemburg reconheceu cedo que a organização é muito mais uma consequência do que uma condição prévia do processo revolucionário, da mesma maneira que o próprio proletariado somente pode se constituir como classe no e pelo processo. Neste processo, que o partido não pode nem provocar nem evitar, cabe-lhe o papel de ser o portador da consciência de classe do proletariado, a consciência de sua missão histórica. Enquanto a atitude aparentemente mais ativa e em todo caso mais realista para um observador superficial, que atribui ao partido, antes de tudo ou exclusivamente, tarefas de organização, fica encurralada, diante do fato da revolução, a uma posição de fatalismo inconsistente, a concepção de Rosa Luxemburg é a fonte da verdade atividade revolucionária. Se o partido tem por preocupação ‘que cada fase e em cada momento da luta a soma total da potência presente e já engajada, ativa, do proletariado se efetive e se exprima em uma posição de combate do partido; que a tática da social-democracia não esteja jamais, em resolução e perspicácia, abaixo do nível efetivo das relações de forças, mas vá adiante dessa relação’, enquanto o partido transforma, no momento agudo da revolução, seu caráter de exigência em realidade que age, porque ele faz penetrar no movimento de massas espontâneo a verdade que lhe é imanente. Ele eleva a necessidade econômica de sua origem à liberdade da ação consciente. Esta passagem da exigência à realidade se torna o fermento da organização verdadeiramente revolucionária, verdadeiramente conforme à classe do proletariado. O conhecimento se torna ação, a teoria se torna palavra de ordem, a massa que age segundo a palavra de ordem se incorpora cada vez mais fortemente, conscientemente e firmemente às fileiras da vanguarda organizada. As palavras de ordem corretas dão nascimento de maneira orgânica às condições e possibilidades de organização do proletariado em luta.
(...)
A unidade da vitória e da derrota, do destino individual e do processo conjunto constituíram o fio diretor da teoria de Rosa Luxemburg e de sua conduta: é o sinal da unidade da teoria com a prática em sua obra e em sua vida. (...)  Sua morte, obra de seus adversários mais profundos e encarniçados, Scheidemann e Noske, é o coroamento lógico de seu pensamento e de sua vida. Ela ficou perto das massas no momento de sua derrota na insurreição de Janeiro (claramente prevista no domínio da teoria há muito tempo e, no domínio da prática, no instante da ação) e ela partilhou sua sorte; trata-se de uma consequência tão lógica da unidade da teoria e da práxis na sua ação quanto o ódio mortal que, de maneira igualmente coerente, lhe votavam seus assassinos, os oportunistas social-democratas”.

(György Lukács, Rosa Luxembourg, marxiste [1921] in Histoire et Conscience de Classe, 1976)






J. P. Nettl


"A história da longa controvérsia pela herança espiritual e política de Rosa Luxemburg é ela mesma uma história feita de distorções. A verdade é bastante simples. Marx legou duas grandes alternativas, uma primária, outra derivada. A primária dizia respeito ao caráter da revolução: era formal ou real, objetiva ou subjetiva, um acontecimento que se produzia ou, ao invés, um que deveria ser feito? (Essas eram as posições extremas, com infinitas variações possíveis entre uma e outra). A ruptura irreparável, que transformou a possibilidade em alternativas inconciliáveis, se produziu em 1910: Kautsky e Rosa Luxemburg sustentaram duas posições contrapostas. (A controvérsia revisionista dizia respeito ao “como”, não a “o quê”; um pequeno presente, não um grande futuro; era uma batalha de segunda ordem). Desta primeira ruptura derivava a segunda alternativa: os socialistas faziam a revolução ou a guiavam? A Revolução de Outubro impediu o surgimento de posições intermediárias e conduziu imediatamente a uma nova ruptura. A morte impediu Rosa Luxemburg de colocar-se como dirigente de uma alternativa marxista revolucionária. No entanto, este papel pertencia a ela por direito – não a Trotsky ou algum dos outros que mais tarde saíram da coletividade bolchevista, mas a ela, a mulher impetuosa, a eterna estrangeira, que pertencia a tantos socialismos e a nenhum.  Somente Rosa Luxemburg participou ativamente nas duas grandes cisões do marxismo moderno e contribuiu para realizá-las. Este é o lugar que ela ocupa na história e o motivo deste livro".

(J. P. Nettl, Rosa Luxemburg [1966], 1978)





Hannah Arent



Será que o fracasso de todos os seus esforços, no que se refere ao reconhecimento oficial está de algum modo ligado ao fracasso da revolução em nosso século?

Embora a revolução fosse para ela tão próxima e real como para Lenin, não a colocava como um artigo de fé, como tampouco o marxismo.

Isso evidentemente significa admitir que ela não era uma marxista ortodoxa e, de fato tão pouco ortodoxa que até se pode perguntar se, afinal era marxista.

O ponto principal é que ela aprendera com os conselhos operários revolucionários que ‘a boa organização não precede a ação, mas é seu produto’, que ‘a organização da ação revolucionária pode e deve ser aprendida na própria revolução, assim como só se pode aprender a nadar na água’, que as revoluções não são ‘feitas’ por ninguém, mas irrompem ‘espontaneamente’ e que a ‘pressão para a ação’ sempre vem de baixo.

Além disso, seria contra seu feitio encarar a revolução como beneficiária da guerra e do massacre – coisa que não incomodava minimamente Lenin. E quanto à questão da organização, ela não acreditava numa vitória onde o povo em geral não tomasse parte ou não tivesse voz; na verdade, acreditava tão pouco em tomar o poder a qualquer preço que ‘tinha muito mais medo de uma revolução deformada do que de uma fracassada’ – esta era, de fato, ‘a grande diferença entre ela’ e os bolcheviques.

(Hannah Arendt, “Rosa Luxemburg 1871-1919 [1966] in Homens em Tempos Sombrios, 1987)




Gilbert Badia

De qualquer maneira, não se deve rejeitar a hipótese de que o fracasso parcial da revolução de novembro [de 1918], e as condições do esmagamento do Spartakismo (a aliança dos socialistas majoritários com o Estado-Maior) tornaram possíveis, a longo prazo, o nascimento do Nacional-Socialismo e pesaram muito na orientação da futura república de Weimar, o que explica em parte o fim deste regime”.

(Gilbert Badia, Le Spartakisme et as problématique in Annales Économies, Sociétés, Civilizations, 1966)



Lelio Basso



A obra de Rosa Luxemburg consiste propriamente no esforço de introduzir o método dialético de Marx na vida da luta de classes, de fazer dele não somente um método para a interpretação da história e a análise da sociedade presente, mas um método aplicado também para fazer a história, isto é, aplicado às ações das grandes massas e à construção consciente do futuro. Como poucos outros marxistas, ela sentia a realidade e a história de um modo dialético e, como viria ela mesma a escrever, concebia a dialética histórica como ‘a rocha sobre a qual se apoiava toda a doutrina do socialismo marxista’ ou também como ‘o modo específico de pensar do proletariado consciente’, ‘ a arma intelectual com a qual o proletariado, ainda subjugado materialmente, vence a burguesia dando-lhe a demonstração da sua transitoriedade histórica, mostrando a inevitabilidade de sua própria vitória, atuando até a hora da revolução no reino do espírito’. Em outras palavras, era graças ao pensamento dialético que Rosa Luxemburgo via o futuro socialista já no presente capitalista; isto significava reunir os aspectos contraditórios mas indissolúveis da realidade de hoje, ver o processo histórico, que surgia daquela contraditoriedade e dar-se conta de que a verdadeira essência de cada momento aparece apenas se consideramos aquele momento inserido na continuidade histórica. (...)

O ponto de vista da totalidade é o ponto de vista no qual Rosa Luxemburg sempre se coloca na consideração de qualquer fenômeno e de qualquer acontecimento, precisamente aquele ponto de vista que Lukács, de resto sob a influência luxemburguiana, considera o essencial do método marxista. Uso naturalmente a palavra totalidade no sentido lukácsiano, ou, para ser mais exato, marxista-luxemburguiano, de totalidade concreta, de um complexo orgânico de relações, no qual cada coisa é referida ao todo e o todo predomina sobre a parte, mas, naturalmente, não um todo fixo, estático e imutável, mas antes um todo que está ele mesmo em transformação contínua. Por isso toda separação entre política, economia, direito, moral, etc. é arbitrária na medida em que se trata de faces diversas do mesmo processo unitário (faces que se podem distinguir como tais, mas que não podem ser separadas de maneira abstrata), assim como é arbitrária toda separação nítida de período e de fases diversas no processo histórico na medida que cada uma compreende em si a raiz dos desenvolvimentos sucessivos e a razão da sua própria superação, como é arbitrária a interpretação de mão única de fatos avulsos, isolados da totalidade do real, como se cada fato, cada ação, cada movimento, cada fenômeno não fosse um elo de uma corrente infinita de ações e reações recíprocas.”

(Lelio Basso, Introduzione a ‘Scritti Politici di Rosa Luxemburg’, 1967)







Norman Geras


A tentação do (ou propensão para o) fatalismo econômico, se é que existe, não se pode confinar aos escritos anteriores à Guerra, tal como não pode ficar limitada à Acumulação do Capital. A ruptura entre essa tentação, por um lado, e a política revolucionária ativista, por outro, essa ruptura, se é que existe de todo, atravessa toda a vida e toda a obra de Rosa Luxemburg duma ponta à outra, sob a forma de uma contradição lógica. Contudo, o ponto da questão é que tanto um como a outra não existem, e esse ponto salta à vista se, na fórmula ‘socialismo ou barbárie’, atendemos no conteúdo da alternativa ao socialismo mais do que ao princípio formal de haver uma alternativa, pois o que então se torna patente é que a ideia do colapso inevitável do capitalismo e a ideia do socialismo ou barbárie, as duas ideias que Nettl e Lowy – e mais geralmente a literatura sobre Rosa Luxemburg – consideram contraditórias, contrapondo-as uma à outra como representantes, respectivamente, do fatalismo e do ativismo – é que estas duas ideias, muito ao contrário de serem contraditórias, não são sequer diferentes. São uma e a mesma ideia. Para Luxemburg, a ‘barbárie’ significa nem mais nem menos do que o colapso do capitalismo.

A equivalência da barbárie e do colapso do capitalismo arrasta consigo que tanto a primeira como o segundo são produtos necessários e inevitáveis das contradições econômicas e que o que é necessário não é o socialismo, mas a barbárie, conclusão que pode parecer paradoxal num marxista revolucionário se a utilizarmos para sugerir a impossibilidade do socialismo. Contudo, o paradoxo desaparece se concebermos o colapso do capitalismo como um processo cuja forma e cujo resultado final são, como tanto um como a outra, uma espécie de barbárie, que era como Rosa concebia esse colapso. Nessas circunstâncias, embora o processo seja realmente inevitável, permanece em aberto a questão de se saber se se deixará que ele siga o seu curso até às últimas e bárbaras consequências ou se, por outro lado, tal processo será detido nos seus estágios iniciais pela intervenção política consciente da classe operária, que impedirá a catástrofe iminente, abolindo as contradições que a ela conduzem e criando uma sociedade socialista. Para Rosa, contudo, o que a inevitabilidade do colapso capitalista prova é, não a redundância, mas a indispensabilidade urgente da luta revolucionária consciente por parte da classe operária. É por força dessa inevitabilidade, e não apesar dela, que tal luta é necessária. É também por causa dessa inevitabilidade que Rosa pode falar com propriedade de haver uma alternativa para o socialismo. Pois que outra coisa pode ser essa alternativa, que não seja a catástrofe?  A indefinida sobrevivência do capitalismo? Alguma nova forma de dominação de classe? Não há uma única linha na sua obra que indique que ela aceitasse em tais possibilidades.

Se é verdade que ela aderia a uma teoria do colapso do capitalismo que, em última análise, se baseava na postulação de desequilíbrios puramente econômicos e que, nesse sentido era economicista, também é verdade que que tal não servia de trampolim para o que vulgarmente se considera ser o ‘economicismo’: o menosprezo ou a subestimação da teoria e da luta ideológica da organização e da direção políticas, a fé acrítica no poder da ‘espontaneidade’, etc. E não servia de trampolim porque não podia servir, pois o colapso do capitalismo e a construção do socialismo não se identificavam um com a outra no espírito de Rosa. ‘Deixado a si próprio’, o capitalismo em colapso não poderia tornar-se uma autêntica sociedade socialista com mais facilidade do que um pedaço de terra abandonado e desprezado poderia se tornar um campo de trigo. O capitalismo não pode tornar-se socialismo apenas pela dinâmica das leis econômicas. Apenas propiciava algumas condições prévias e uma ameaça e seria necessária uma iniciativa concertada por parte do agente histórico para utilizar corretamente as primeiras e evitar a segunda.

(Norman Geras, A Barbárie e o Colapso do Capitalismo [1973] in A Actualidade de Rosa Luxemburgo, 1978)




Oskar Negt


"Espontaneidade e organização não estão em uma relação exterior entre si, mas contém uma dialética imanente própria; quando se tenta isolar uma da outra, ou estabelecer entre elas uma identidade superficial, o resultado é que, em seu movimento histórico, elas podem se transformar no seu contrário. Se a organização proletária se afasta das massas (o que não equivale ao fato de perder membros ou votos), quase inevitavelmente isso dá margem a ações espontâneas dos operários, que podem também se voltar contra ela; se a espontaneidade se afasta da força organizativa da classe operária, recai no fetichismo organizativo de grupos sectários ou no mecanismo das posições de protesto, que irrompem e logo se apagam, dos grupos que não estão dispostos e não são capazes de assumir os esforços de um trabalho teórico de longa duração, nem os esforços de um trabalho prático-organizativo. Durante sua vida, Rosa Luxemburg conduziu uma luta decidida em duas direções: contra o oportunismo burocrático e contra as estratégias sectárias que levam ao isolamento das massas. Não obstante, é-lhe inteiramente estranha a mentalidade de aparelho e o medo próprio às organizações constituídas segundo o modelo da estrutura hierárquica da associação burguesa, que vê uma ameaça em toda ação não controlada ou não empreendida pelo partido; sua confiança na capacidade de experiência das massas implica a convicção de que as massas estão em condições de corrigir seus próprios erros. ‘Os passos falsos que realiza o movimento operário revolucionário real são, no plano histórico, incomensuravelmente mais fecundos e mais preciosos que o melhor comitê central’.
(...)
Rosa Luxemburg concebe o partido não como uma instituição rígida, único centro ativo do processo revolucionário, mas como um processo em que são preservadas, tornadas conscientes e desenvolvidas as experiências coletivas e as múltiplas tentativas de organização da classe operária, e, com a ajuda da dialética materialista, orientadas para o objetivo final. ‘Organizaçao, clarificação e luta não são aqui momentos divididos, mecanicamente e temporalmente separados como um movimento blanquista’, elas formam antes uma unidade contraditória, aspectos diversos do mesmo processo de dialético, Não se pode transformar Rosa Luxemburg, como muitos tentaram fazer, numa iluminista idealista que acha possível superar a sociedade classista com a simples convicção; todavia, o páthos do iluminismo imprime um caráter tão forte ao seu pensamento que é perceptível até mesmo nas questões de organização: assim, para ela, a luta contra o oportunismo no partido proletário e nos sindicatos é essencialmente uma luta intelectual, que não pode ser decidida com medidas organizativas.
(...)
O fundamento da visão da totalidade, em Rosa Luxemburg, não é nem uma imaginária substância de classe (por exemplo, o proletariado como sujeito histórico), nem uma organização, mas a própria classe operária ou, mais exatamente, uma esfera pública proletária, diante da qual se deve demonstrar, antes de mais nada, qual a teoria e qual organização é ou não adequada às experiências que nela tomam forma. Nos escritos de Rosa Luxemburg há muitas referências ao fato de que ela concebe a esfera pública proletária – embora, ao que me conste, não use explicitamente tal conceito – como uma categoria da experiência política e da formação da consciência de classe. Essa esfera pública proletária – apenas no interior da qual as derrotas, as deformações e os erros podem se transformar em juízos construtivos e em experiência que faz avançar – caracteriza-se pelo fato de que não conhece o mecanismo de exclusão, típico da esfera pública burguesa, mediante o qual se excluem dos interesses públicos, enquanto privadas, tanto algumas esferas essenciais da vida quanto esferas como a da produção e da socialização (da educação). (...) A esfera pública proletária, que não pode ser apreendida precisamente no sentido empírico, que não indica um simples quadro das opiniões do proletariado, mas tampouco representa a mais alta instância organizativa, designando antes o centro de um processo dirigido à produção de experiências, parece ter sido a única real instância decisória que Rosa reconheceu: ela não pode ser definida, mas determina o conteúdo da realidade da luta de classes do proletariado. A teoria de Rosa Luxemburg, que se propõe penetrar toda as esferas substanciais da vida da sociedade, não deixa espaço que não seja ocupado pela vontade de mudança do proletariado.
(...)
A classe burguesa pode manipular a espontaneidade, pode criar pretextos para mobilizar as massas, pode levar o novo ao mercado para fazer propaganda dos produtos; mas, no interior de uma opinião pública proletária, este momento significa algo qualitativamente diverso. Quando Rosa Luxemburg afirma que ‘a liberdade é sempre e somente a liberdade de quem pensa de modo diferente’, sua asserção não é um retorno ao liberalismo, mas um elemento, uma parte constitutiva vital de uma opinião pública proletária, que não pode se limitar a reproduzir e a aclamar decisões, programas dados, orientações de pensamento estabelecidas. Não se pode eliminar do mundo o ‘outro’ com a simples violência; ele indica antes as resistências, a gravidade das relações materiais, com as quais toda teoria marxista deve se confrontar, se não quiser cair em uma ontologia inteiramente abstraída dessas relações, ou em uma correção idealista do sistema, no qual se possa subsumir somente o homônimo, no qual predomine o princípio da unificação”.

(Oskar Negt, Rosa Luxemburg e a renovação do marxismo in História do Marxismo [1979], O marxismo na época da Segunda Internacional – Segunda Parte, 1984)




Slavoj Žižek


A grandeza de Lenin residiu em, nessa situação catastrófica, não ter medo de triunfar – em contraste com o páthos negativo discernível em Rosa Luxemburg e Adorno, para quem o ato autêntico em última instância era a admissão do fracasso que traz à luz a verdade da situação”.

(Slavoj Žižek, Entre duas revoluções [2002], Prefácio de Às Portas da Revolução – escritos de Lenin de 1917 , 2005)




Isabel Maria Loureiro



"Rosa fica continuamente enredada na mesma teia: como é possível  assegurar um futuro emancipado com um sujeito histórico alienado? Ou, em outras palavras, de que modo fazer os escravos desejarem a liberdade? Recusar as massas reais significaria cair no mais arbitrário vanguardismo, eficiente como Realpolitik, mas de resultados desastrosos como política emancipadora. Donde um pé na canoa da necessidade histórica - garantia da vitória contra ventos e marés - e outro na da atividade da massa popular, oscilante, submetida aos caprichos da fortuna. Para forçar a fortuna a favor dos revolucionários é essencial o trabalho infatigável do Aufklärer, aliado à necessidade histórica, a chamar à razão as forças emancipadoras passageiramente iludidas. (...)

Deste ponto de vista, não há oposição entre revolução como processo lento e como insurreição armada. Tanto que, nos meses de novembro-janeiro, defende simultaneamente uma tática radical quando apela às massas e outra moderada ao dirigir-se às bases esquerdistas do recém-fundado KPD.  Em outras palavras, vemos conviver a teórica marxista, para quem o momento da ruptura revolucionária está relacionado a um complexo conjunto de fatores, impossível de determinar com precisão, e a agitadora, querendo criar condições para tornar possível a ruptura. Sob esse aspecto, talvez sua tática possa ser caracterizada como ‘voluntarista’.

Tal ‘voluntarismo’, entretanto, não se fundaria, como pretendem certos autores, numa concepção fatalista da história, mesmo porque dificilmente se pode caracterizar sua concepção de história como fatalista ou mesmo determinista. Ela navegou a vida inteira entre dois escolhos, procurando insistentemente manter unidos os dois polos da teoria revolucionária ou, dito de outro modo, mostrando de que modo se dá a intervenção revolucionária no processo evolutivo da história.

Essa unidade é elaborada, já na juventude, quando explica que tanto Marx quanto Lassalle adotam a concepção materialista da história, embora com ênfases diferentes: enquanto para Marx os homens fazem a história, mas não arbitrariamente, para Lassalle, os homens não fazem arbitrariamente a história, mas fazem-na eles mesmos. Ambos têm razão. Marx, para longos períodos de tempo, em que as condições objetivas determinam fundamentalmente a ação subjetiva. Lassalle, para curtos períodos, quando é essencial instigar a vontade das massas, levando-as a agir.

A ‘ação audaz’, a ‘decisão individual’, isto é, a ‘política prática’, num espaço de tempo breve, vale mais que a consideração das leis da história. Mas, simultaneamente, elas não podem ser ignoradas, sob pena de cair no aventureirismo”.

(Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária [1995], 2004)





Foto: Santa Fabiola:  instalação de Francis Alÿs, Pinacoteca do Estado, São Paulo, 2013



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Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, Companhia das Letras, São Paulo, 1987  |  Gilbert Badia, Le Spartakisme et sa problématique, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 21e Année, No. 3 (May - Jun., 1966), pp. 654-667  |  Lelio Basso, Scritti Politici di Rosa Luxemburg, Introduzione, 1967  |  Riccardo Bellofiore, Rosa Luxemburg and the Critique of Political Economy, Routledge, Abindgon, New York, 2009  | George Castellan, A propos de Rosa Luxemburg, Revue d'histoire moderne et contemporaine (1954) T.23e, No. 4 (Oct. - Dec,. 1976), pp. 573-582  |  Charles F. Elliott, Lenin, Rosa Luxemburg and the dilemma of non-revolutionary proletariat, Midwest Journal of Political Science, vol. IX number 4 november 1965  |  Paul Frölich, Rosa Luxemburgo: vida y obra, Editorial Fundamentos, Madrid, 1976 | Norman Geras, A Actualidade de Rosa Luxemburgo, AntídotoLisboa 1978  |  J. W. von Goethe, Fausto, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1987  |  Daniel Guérin, Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982  | Eric J. Hobsbawn (org), História do Marxismo, O Marxismo na época da Segunda Internacional (3 volumes), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982, 1984  |  Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840-1945, Princeton University Press, Princeton, 1982 | M.C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989  |  Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 | Vladimir Ilitch Lenin, Notes of a Publicist, 1922  |  Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária, Editora Unesp, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2004  |  Georg Lukács, Histoire et Conscience de Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, Paris, 1976  | Ralph Haswell Lutz, The German Revolution 1918-1919, Cambridge University Press, 1967  |  Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, 3 volumes, Isabel Loureiro (org.), Editora Unesp, São Paulo, 2011  |  Rosa Luxemburg, A Acumulação do Capital e Anticrítica, 2 volumes, coleção "Os Economistas", Nova Cultural, São Paulo, 1988  |  Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Boitempo, São Paulo, 1998  |  J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, Ediciones Era, México, 1974; Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano, 1978 |  Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014 | H. Schurer, The Russian Revolution of 1905 and the Origins of German CommunismThe Slavonic and East European Review, Vol. 39. N. 93 (Jun. 1961) pp. 459-471  |  Slavoj Zizek, Às Portas da Revolução - escritos de Lenin de 1917, Boitempo, São Paulo, 2005




Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.







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