Terra do Fogo
IV
Ao
contrário dos selk’nam, um povo terra firme, os yámanas ou yagans remavam suas canoas em torno da Ilha Navarino e ao longo do canal de
Beagle. Apesar do frio, viviam completamente nus e se abrigavam em cabanas
precárias e provisórias feitas de ramos e folhas, nas quais se reuniam em volta
do fogo, elemento fundamental da vida yámana. A fumaça deixava-lhes os olhos
sempre irritados. Caçavam focas e coletavam frutos do mar. Nas épocas de
escassez, aproveitavam-se das baleias que apareciam encalhadas e comiam um
fungo que até hoje é chamado pan de índio (Cyttaria
darwinii). Tinham xamãs, mas não tinham chefes. Tudo era repartido
igualmente entre todos.
Em
1830, ao fim da primeira expedição do Beagle à Terra do Fogo, o capitão FitzRoy
tomou quatro jovens yámanas que levou para a Grã-Bretanha. Com aqueles nomes
derrisórios que os britânicos usavam para assinalar a condição dos
incivilizados pagãos de pele escura (como Robinson Crusoe fez com Sexta-Feira),
eles foram chamados de York Minster, Fuegia Basket, Jemmy Button e Boat
Memory.
Boat
Memory morreu de varíola. Os outros três viveram por alguns anos na Inglaterra.
O mais velho, York Minster, não parecia muito interessado em aprender os
hábitos e a língua dos seus hospedeiros, mas Fuegia Basket – ainda uma menina–
e Jemmy Button – um rapazote – assimilaram rapidamente os costumes e aprenderam
um bocado de inglês.
O
capitão FitzRoy prometeu devolvê-los à Terra do Fogo e tratou de fazer valer o
penhor da palavra quando organizou a segunda expedição do Beagle, na qual
tomou parte Charles Darwin. Durante a viagem, Jemmy Button – cujo nome yámana
era Orundelico – se tornou o favorito da tripulação. Jemmy era alegre, jovial e
compassivo. Todavia, era muito preocupado com sua aparência: passava muito
tempo se admirando no espelho e demonstrava vivo desgosto quando suas botas
reluzentes ficavam sujas.
Jemmy
foi deixado com seu povo na enseada Ponsonby e o Beagle prosseguiu sua
exploração da região por vários meses. A última vez que a tripulação do Beagle
o encontrou foi em março de 1834, antes de seguirem para o mar aberto. Jemmy,
agora com uns dezessete anos, retornara aos costumes yámanas. Estava numa
canoa, nu e esquálido. Tinha a seu lado uma jovem que era a sua esposa. A
convite de FitzRoy, ele jantou no Beagle e provou não haver esquecido a
etiqueta britânica à mesa. Disse que não queria voltar à Grã-Bretanha e que
tinha bastante comida. Os marinheiros se despediram dele emocionados. Seguindo
o costume de seu povo, Jemmy acendeu uma fogueira para saudar os amigos que
partiam.
Nos anos seguintes, Jemmy Button manteve contato com os britânicos que chegavam à Terra do Fogo. Quando se fundou a missão protestante de Ushuaia, ele estava presente, porém, mais de uma década depois, foi acusado de ter liderado os yámanas num ataque que destruiu outra missão, a de Wulaia. É certo que Jemmy compareceu diante das autoridades para negar seu envolvimento, mas não seria ilícito imaginar que a sua relação com os britânicos era mais complexa e ambígua do que entendiam os simplórios súditos da Coroa? Alguns sinais dessa duplicidade podem ser lidos nas anotações que Darwin fez a bordo do Beagle.
Jemmy Button se compadecia ao ver Darwin enjoado quando o mar se
agitava, mas se afastava para rir, talvez porque parecesse ridículo aos olhos
de um canoeiro yámana o espetáculo de um homem adulto a passar mal com o
balanço das ondas. Além disso, é curioso que Jemmy, que aprendera tão
rapidamente os costumes britânicos e parecia ficar profundamente embaraçado com
os canoeiros que vinham ao encontro do Beagle, tenha retornado à vida yámana tão
logo tenha sido deixado junto aos seus.
Jemmy
Button morreu em 1866, aos cinquenta anos, vítima de uma das muitas epidemias que iriam dizimar os yámanas. O resto foi obra nefasta do duplo C: Colonização e
Cristianismo. Hoje os poucos descendentes mestiços dos canoeiros vivem em Porto
Williams na Ilha Navarino, do lado chileno do canal de Beagle. O rico
vocabulário yámana ou yagan foi compilado pelo pastor Thomas Bridges em 1865
num dicionário de mais de trinta mil palavras. Uma palavra yagan –mamihlapinatapai– ganhou certo succès
d’estime ao ser incluída no Guinness Book de 1993
como a palavra mais concisa do mundo. Diz-se que ela designa o olhar de
embaraço que duas pessoas trocam quando ambas querem algo, mas hesitam em
iniciar a ação para consegui-lo. Talvez por ser um trava-línguas exótico
para os falantes da língua de Darwin e de FitzRoy, parece que o vocábulo foi
incorporado recentemente ao slang.
Essa palavra isolada, desprovida de seu sentido original, simples detrito à deriva no oceano da língua invasora universal, é a última canoa yámana que as correntes marítimas arrastaram desde o
fim do mundo.
Na história de meu continente, Jemmy Button é um daqueles que serviram de canal entre dois mundos, numa relação que, se não era resolvida na assimilação destrutiva de um mundo pelo outro, deixava um resíduo de ambivalência, ressentimento, traição ou suspeita que é a marca dos que transitam sobre o abismo das diferenças. Como Malinche ou como Diogo Caramuru.
Ao mirar-se no espelho, Jemmy Button via, sem saber, uma imagem da América, mas ainda não poderia vislumbrar, mesmo se quisesse, mesmo se isso fizesse sentido para ele, a Argentina. Era cedo demais, a Terra do Fogo estava muito longe e Sarmiento era apenas um rapaz que vestia à inglesa. Como Jemmy Button.
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É
nosso último dia em Ushuaia. Nesta manhã de 16 de janeiro de 2014, subimos a
encosta do Cerro Martial até o ponto mais alto que conseguimos. À tarde,
fizemos compras nas lojas tax free da avenida San Martin. Na Boutique
del Libro, folheando um livro sobre a Terra do Fogo, vi pela primeira vez o
nome de Jemmy Button.
Vista do alto do Cerro Martial: a baía de Ushuaia, a parte oeste da cidade, o aeroporto, o canal de Beagle, a ilha Navarino e seus cumes nevados. O país dos yámanas, o mundo de Jemmy Button. |
E. Lucas Bridges, Uttermost Part of the Earth, Dover, New York 1988 | Arnoldo Canclini, Así nació Ushuaia, Editorial Dunken, Buenos Aires, 2006 | Anne Chapman, Darwin en Tierra del Fuego, Emecé, Buenos Aires, 2009 | Rita de Cássia Novais e Silva Daniel, Urbanização de Ushuaia: do estigma da prisão à Ilha da Fantasia, dissertação de mestrado, 2010 | Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006