quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #2








Terra do Fogo


II




 O Aeroporto Internacional de Ushuaia parece um grande chalé de madeira. Quando desembarcamos, passamos pela inspeção para verificar se não trazíamos conosco alguma espécie invasora e daninha, mas os inspetores chegaram demasiado tarde. As espécies invasoras já haviam começado as suas razias nos séculos precedentes, e não me refiro apenas aos castores canadenses que se tornaram praga local.

Embora de férias e com a família, eu não vim em missão de paz. Em cada viagem, é preciso seguir a pista de um assassinato, de uma chacina, de um suicidío ou de um genocídio. É verdade que faremos trilhas off-road, passeios de catamarã até uma pinguineira, subidas de teleférico para ver o glaciar El Martial a derreter sob o sol de janeiro. É verdade que comeremos centollas e cordeiros fueguinos nos restaurantes da Avenida San Martín. É verdade que seremos bons turistas e não iremos decepcionar os amigos e a família, que nos cobrarão fotos e anedotas de viagem. Mas, felizmente para o caçador de esqueletos que sou, a história na sua escala modesta e humana – aquela mesma que eu peço para o Altíssimo nas minhas orações de ateu – providencia por toda parte cemitérios apinhados, razão pela qual mesmo os mais inocentes passeios vendidos pelas agências locais de turismo não podem evitar o odor de morte que emana da Terra do Fogo. Um odor muito fino que se mistura com o cheiro de madeira apodrecida na sombra das florestas de lengas.

Quem sai de Ushuaia pela Rota Nacional n.3 e para por uns instantes no mirante do Passo Garibaldi, vê o contorno  serpentiforme do Lago Escondido e vislumbra, ao fundo, entre a mata e as montanhas, a lâmina argêntea e alongada do Lago Fagnano. Lucas Bridges, aventureiro, antropólogo involuntário e filho de um missionário inglês, alegava ser o primeiro homem branco que viu essa porção magnífica de água, surgida do degelo da última era glacial, sobre a falha que separa duas placas tectônicas. Esse era o território da etnia selk’nam, que os colonizadores e missionários chamavam de onas, um povo altivo de guerreiros pintados, cobertos de pelegos de guanacos. Nessa época, o Lago Fagnano, assim batizado em homenagem a um padre salesiano que jamais esteve aí, era chamado de Kami. Hoje, quase não há pedaço da margem do lago que não seja propriedade privada. Os selk’nam foram exterminados pelos criadores de ovelhas, pelos garimpeiros da efêmera corrida do ouro de 1883, pelos esforços cristianizadores de missionários batistas e católicos ou pelos mercenários de Julius Popper, um engenheiro judeu-romeno, misto de assassino impiedoso, homem de visão, oportunista e prócer da civilização. Um punhado de onas foram exibidos como canibais dignos de riso, espanto e piedade civilizada num zoológico humano organizado no Jardin d’Acclimation, perto do Bois de Boulogne, certamente para fazer contraponto às primícias do progresso exibidas na Exposição Universal de 1889. A última falante da língua selk’nam morreu na época em que Ludmila e eu ainda éramos crianças pobres que brincavam nos arrabaldes.

Quando Lucas Bridges atravessou essa região conduzido por um guia nativo, que deslizava pela vegetação cerrada com a facilidade de quem seguisse uma trilha invisível, as margens do Lago Kami estavam repletas de montículos de terra que marcavam a entrada das tocas de tuco-tuco. Pisando nessa mesma praia lacustre pouco mais de cem anos depois, eu não vi nenhuma toca. Com certeza, os criadores de gado também os exterminaram, antes de alguém ter a brilhante ideia de trazer castores do Canadá para sustentar uma indústria de peleteria local, que não foi adiante. Os roedores do Norte se reproduziram e causam danos à floresta, mas os ossos dos selk’nam já se desfizeram. O tempo não poupa ninguém. Julius Popper e Lucas Bridges agora são apenas manchas de tinta impressas no papel. 

É dia 15 de janeiro de 2014. Acabamos de comer um churrasco numa propriedade privada à beira do Lago Fagnano. Nossos convivas argentinos discutem alegremente o futebol. Faz sol e um calor que dá sonolência depois do almoço. Ainda temos umas duas horas antes de regressarmos a Ushuaia. Bia fotografa uma raposa na mata, depois caminha para o píer. Ela tenta fazer as pedras achatadas que atira saltarem sobre o espelho das águas.



Rota Nacional n. 3




Vista do mirante do Passo Garibaldi: Lago Escondido e, ao fundo, Lago Fagnano 




Bosque de lengas 




Lago Kami (Fagnano)


























E. Lucas Bridges, Uttermost Part of the Earth, Dover, New York 1988 | Arnoldo Canclini, Así nació Ushuaia, Editorial Dunken, Buenos Aires, 2006 | Anne Chapman, Darwin en Tierra del Fuego, Emecé, Buenos Aires, 2009 | Rita de Cássia Novais e Silva Daniel, Urbanização de Ushuaia: do estigma da prisão à Ilha da Fantasia, dissertação de mestrado, 2010 | Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006






Um comentário:

  1. gente, você está vivo. que bom para o mundo!
    e você tem um blog. e mesmo tendo envelhecido, minha admiração por você continua.

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