domingo, 29 de novembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #4





Terra do Fogo


IV


Ao contrário dos selk’nam, um povo terra firme, os yámanas ou yagans remavam suas canoas em torno da Ilha Navarino e ao longo do canal de Beagle. Apesar do frio, viviam completamente nus e se abrigavam em cabanas precárias e provisórias feitas de ramos e folhas, nas quais se reuniam em volta do fogo, elemento fundamental da vida yámana. A fumaça deixava-lhes os olhos sempre irritados. Caçavam focas e coletavam frutos do mar. Nas épocas de escassez, aproveitavam-se das baleias que apareciam encalhadas e comiam um fungo que até hoje é chamado pan de índio (Cyttaria darwinii). Tinham xamãs, mas não tinham chefes. Tudo era repartido igualmente entre todos.

Em 1830, ao fim da primeira expedição do Beagle à Terra do Fogo, o capitão FitzRoy tomou quatro jovens yámanas que levou para a Grã-Bretanha. Com aqueles nomes derrisórios que os britânicos usavam para assinalar a condição dos incivilizados pagãos de pele escura (como Robinson Crusoe fez com Sexta-Feira), eles foram chamados de York Minster, Fuegia Basket, Jemmy Button e Boat Memory. 

Boat Memory morreu de varíola. Os outros três viveram por alguns anos na Inglaterra. O mais velho, York Minster, não parecia muito interessado em aprender os hábitos e a língua dos seus hospedeiros, mas Fuegia Basket – ainda uma menina– e Jemmy Button – um rapazote – assimilaram rapidamente os costumes e aprenderam um bocado de inglês.

O capitão FitzRoy prometeu devolvê-los à Terra do Fogo e tratou de fazer valer o penhor da palavra  quando organizou a segunda expedição do Beagle, na qual tomou parte Charles Darwin. Durante a viagem, Jemmy Button – cujo nome yámana era Orundelico – se tornou o favorito da tripulação. Jemmy era alegre, jovial e compassivo. Todavia, era muito preocupado com sua aparência: passava muito tempo se admirando no espelho e demonstrava vivo desgosto quando suas botas reluzentes ficavam sujas.

Jemmy foi deixado com seu povo na enseada Ponsonby e o Beagle prosseguiu sua exploração da região por vários meses. A última vez que a tripulação do Beagle o encontrou foi em março de 1834, antes de seguirem para o mar aberto. Jemmy, agora com uns dezessete anos, retornara aos costumes yámanas. Estava numa canoa, nu e esquálido. Tinha a seu lado uma jovem que era a sua esposa. A convite de FitzRoy, ele jantou  no Beagle e provou não haver esquecido a etiqueta britânica à mesa. Disse que não queria voltar à Grã-Bretanha e que tinha bastante comida. Os marinheiros se despediram dele emocionados. Seguindo o costume de seu povo, Jemmy acendeu uma fogueira para saudar os amigos que partiam. 

Nos anos seguintes, Jemmy Button manteve contato com os britânicos que chegavam à Terra do Fogo. Quando se fundou a missão protestante de Ushuaia, ele estava presente, porém, mais de uma década depois, foi acusado de ter liderado os yámanas num ataque que destruiu outra missão, a de Wulaia. É certo que Jemmy compareceu diante das autoridades para negar seu envolvimento, mas não seria ilícito imaginar que a sua relação com os britânicos era mais complexa e ambígua do que entendiam os simplórios súditos da Coroa? Alguns sinais dessa duplicidade podem ser lidos nas anotações que Darwin fez a bordo do Beagle.

Jemmy Button se compadecia ao ver Darwin enjoado quando o mar se agitava, mas se afastava para rir, talvez porque parecesse ridículo aos olhos de um canoeiro yámana o espetáculo de um homem adulto a passar mal com o balanço das ondas. Além disso, é curioso que Jemmy, que aprendera tão rapidamente os costumes britânicos e parecia ficar profundamente embaraçado com os canoeiros que vinham ao encontro do Beagle, tenha retornado à vida yámana tão logo tenha sido deixado junto aos seus. 

Jemmy Button morreu em 1866, aos cinquenta anos, vítima de uma das muitas epidemias que iriam dizimar os yámanas. O resto foi obra nefasta do duplo C: Colonização e Cristianismo. Hoje os poucos descendentes mestiços dos canoeiros vivem em Porto Williams na Ilha Navarino, do lado chileno do canal de Beagle. O rico vocabulário yámana ou yagan foi compilado pelo pastor Thomas Bridges em 1865 num dicionário de mais de trinta mil palavras. Uma palavra yagan –mamihlapinatapai– ganhou certo succès d’estime ao ser incluída no Guinness Book de 1993 como a palavra mais concisa do mundo. Diz-se que ela designa o olhar de embaraço que duas pessoas trocam quando ambas querem algo, mas hesitam em iniciar a ação para consegui-lo. Talvez por ser um trava-línguas exótico para os falantes da língua de Darwin e de FitzRoy, parece que o vocábulo foi incorporado recentemente ao slang. Essa palavra isolada, desprovida de seu sentido original, simples detrito à deriva no oceano da língua invasora universal, é a última canoa yámana que as correntes marítimas arrastaram desde o fim do mundo. 

Na história de meu continente, Jemmy Button é um daqueles que serviram de canal entre dois mundos, numa relação que, se não era resolvida na assimilação destrutiva de um mundo pelo outro, deixava um resíduo de ambivalência, ressentimento, traição ou suspeita que é a marca dos que transitam sobre o abismo das diferenças. Como Malinche ou como Diogo Caramuru. 

Ao mirar-se no espelho, Jemmy Button via, sem saber, uma imagem da América, mas ainda não poderia vislumbrar, mesmo se quisesse, mesmo se isso fizesse sentido para ele, a Argentina. Era cedo demais, a Terra do Fogo estava muito longe  e Sarmiento era apenas um rapaz que vestia à inglesa. Como Jemmy Button.

*****

É nosso último dia em Ushuaia. Nesta manhã de 16 de janeiro de 2014, subimos a encosta do Cerro Martial até o ponto mais alto que conseguimos. À tarde, fizemos compras nas lojas tax free da avenida San Martin. Na Boutique del Libro, folheando um livro sobre a Terra do Fogo, vi pela primeira vez o nome de Jemmy Button.




















































Vista do alto do Cerro Martial: a baía de Ushuaia, a parte oeste da cidade, o aeroporto, o canal de Beagle, a ilha Navarino e seus cumes nevados.
O país dos yámanas, o mundo de Jemmy Button.


E. Lucas Bridges, Uttermost Part of the Earth, Dover, New York 1988 | Arnoldo Canclini, Así nació Ushuaia, Editorial Dunken, Buenos Aires, 2006 | Anne Chapman, Darwin en Tierra del Fuego, Emecé, Buenos Aires, 2009 | Rita de Cássia Novais e Silva Daniel, Urbanização de Ushuaia: do estigma da prisão à Ilha da Fantasia, dissertação de mestrado, 2010 | Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006



Nenhum comentário:

Postar um comentário