segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #8








Buenos Aires



Inspeção Anatômica




A dar crédito aos historiadores, Buenos Aires foi fundada duas vezes. A primeira por Pedro de Mendoza em 1536, a segunda por Juan de Garay em 1580.  Um dos descendentes de Garay foi Jorge Luís Borges.

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Foi num porão da avenida Juan de Garay, perto da Plaza de la Constituición, que Borges viu o Aleph. Como lhe explicou Carlos Argentino Daneri, dono da residência, o Aleph era um ponto donde se podia ver, sem se confundirem, todos os pontos do mundo, vistos de todos os ângulos. Isso aconteceu em outubro de 1941. A casa já não existe mais.

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A avenida Garay, que lembra o fundador de Buenos Aires, é imediatamente paralela à avenida Brasil. Talvez essa íntima proximidade entre as duas nações irmãs e rivais explique por qual razão o Abaporu, de Tarsila do Amaral, está exposto no Museu de Arte Latino-Americana (MALBA) e não em um museu brasileiro. É verdade que os nacionalistas verde-amarelo chiaram, mas o destino da obra foi literalmente fiel à proposta modernista de Oswald de Andrade: arte como riqueza exportável, arte como pau-brasil. E lá está o Abaporu brasileiro, junto com um autorretrato da mexicana Frida Kahlo, na coleção de um banqueiro argentino, no belo museu situado entre a Plaza República del Perú e a rua San Martin de Tours, o santo da Gália, num bairro cujo nome lembra a maior cidade da Sicília.  Esse é o verdadeiro Aleph.

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Embora descendente de Garay, Jorge Luís Borges duvidava que Buenos Aires  houvesse tido um começo no tempo. Num poema do Cuaderno de San Martín, de 1929, ele escreveu:

¿Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieron a fundarme la patria?
(...)
Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba Yrigoyen,
algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
La juzgo tan eterna como el agua y como el aire.
(Fundación mítica de Buenos Aires)

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Borges era de uma família burguesa e culta de Palermo, mas sentia fascinação pelos subúrbios de casas baixas que estavam desaparecendo com o crescimento de Buenos Aires na década de 20. Os compadritos que dançavam tango, jogavam truco e manejavam o punhal tinham lá uma sedução que não se encontra mais em parte alguma.

A cor local da Buenos Aires de hoje é outra: nas quitandas de bairro, as mocinhas da caixa registradora cantam cumbias; as bancas de jornais vendem adesivos do Gauchito Gil ao lado de exemplares do Clarín e da revista ¡HOLA!. Nas ruas de classe média, abundam os passeadores de cachorros. Os torcedores do Boca se empanturram de choripán e chimichurri. No centro, os descontentes fazem cazerolazos. Para um turista como eu, tudo isso é curioso, mas Borges observou há muito tempo que “podemos creer en la posibilidad de ser argentinos sin abundar en color local.” (El escritor argentino y la tradición)

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Buenos Aires é uma Paris subtropical que soberbamente se coloca à testa de uma nação que ela mesma arrenega. Contra a Argentina real da província, a elite de Buenos Aires cultivou o sonho de uma Argentina que fosse um enclave europeu imune à barbárie indígena, africana e mestiça da América.  

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Depois da chamada "Guerra contra o índio" ou "Conquista do Deserto", a grande campanha militar contra os mapuches e tehuelches, o General Julio Argentino de la Roca, líder do genocídio dos índios da Patagônia, tornou-se Presidente da República. Era o ano de 1880 e Buenos Aires tinha acabado de ser transformada em capital da Nação, depois de algumas escaramuças e disparos contra o partido que se opunha à federalização da cidade.

Como muitos militares sul-americanos do final do século XIX, Julio de la Roca era positivista. Como homem da elite urbana, era um amigo da civilização, quer dizer, daquele misto de emulação burguesa dos mores aristocráticos, uso adequado do vaso sanitário, admiração pelas conquistas da técnica e gosto pelos parques e bulevares de Hausmann.

O intendente Torcuato de Alvear, nomeado pelo presidente, tratou logo de abrir a Avenida de Mayo, o primeiro bulevar da capital federal. Planejou também um cinturão de parques ao redor da cidade. Um deles é o Paseo da Recoleta, hoje Plaza Torcuato de Alvear.

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Essa Buenos Aires pretendia ser uma proclamação. No entanto, as elites não são donas das cidades. A hýbris dos monumentos de bronze ou de concreto armado tem a sua própria nêmesis. Para cada estátua heroica de um general, há doze pombos para cobri-las de esterco; para cada catedral, doze mendigos; para cada mausoléu na Recoleta, doze mortos sem tumba; para cada Palermo, doze favelas – ou villas miseria, como se chamam por aqui.

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A caminho do hotel no Retiro, passamos pela Villa 31, a favela mais famosa de Buenos Aires, que sucessivos governos tentaram remover por bem ou por mal. Durante a Copa do Mundo de 1978, o governo do General Videla, também ele amigo da ordem, fez com que a favela desaparecesse por algum tempo, mas ela retornou. Outras sete ou oito mil pessoas não tiveram a sorte de voltar, como recordam las madres y las abuelas de la Plaza de Mayo. Os generais argentinos são implacáveis. A Argentina, conforme se esperava, ganhou a Copa.

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A partida final – Argentina x Holanda – foi disputada no dia 25 de junho de 78 no Monumental de Nuñez, sede do River Plate.  Pretendíamos visitar o estádio, mas o taxista boquense se recusou a nos levar “àquele lugar que fede a galinheiro”. Em troca, teve o gosto e a gentileza de nos ciceronear num breve passeio à Bombonera, cenário das glórias de Don Diego Maradona.

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Outra partida, dessa vez contra a Grã-Bretanha em 1982, foi um fiasco.  As Malvinas continuaram sendo as Ilhas Falkland, como já eram na época de Darwin e do capitão FitzRoy. Os implacáveis generais argentinos tiveram que sair da Casa Rosada no ano seguinte.

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Tantas proclamações da grandeza nacional me parecem menos sinal de arrogância e soberba do que da íntima insegurança e profunda insatisfação dos argentinos. Eles estão bem conscientes da grandeza ratée de seu país. Talvez por isso os portenõs sejam tão incrédulos, desganados e irônicos. E tão veementes.

Os brasileiros, pendurados numa nação cuja grandeza é apenas uma nota promissória, e os argentinos, obrigados a vender nos antiquários de San Telmo a velha porcelana de chá da bisavó e a cuia de prata em que o bisavô tomava o mate na estância, têm muito a dizer uns aos outros. O fato é que compartilhamos a satisfação malévola e a alegria perversa do Schadenfreude por nós mesmos. 

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Os anos neoliberais do governo Menem produziram mais uma proclamação da grandeza argentina: a revitalização do decrépito Puerto Madero. De maneira semelhante a outros projetos desse tipo (um exemplo é o Port Vell de Barcelona), o objetivo era obter um contraponto entre a área da intervenção e a cidade ao redor que resultasse em surpresa visual, espaço acolhedor e diálogo entre o novo e o antigo. Contudo, o que foi erguido se limitou a seguir as convenções que o mainstream internacional adota na construção desses não-lugares que são os aeroportos, shopping centers e centros culturais: vazios generosos, corredores larguíssimos, superfícies transparentes e espelhadas, a supremacia da forma sobre a função à maneira de Calatrava, Gehry e Foster. Uma arquitetura e um urbanismo destinados a explodir orçamentos e a reforçar a cumplicidade entre bancos, empreiteiras, escritórios de design e governos.

Esses espaços ambiciosos funcionam bem como décor e cenário para selfies e cartões postais, mas permanecem alheios à cidade, como navios de cruzeiro atracados no cais. Nisso as revitalizações portuárias têm o mesmo destino dos parques construídos para exposições internacionais, como os elefantes brancos da Expo 92 em Sevilha ou da Expo 98 em Lisboa. No entanto, a própria desconexão entre a área "revitalizada" e a cidade real tem um efeito magnético sobre os turistas. Em Puerto Madero, os guindastes pintados em cores vivas e os trapiches reformados não exigem dos turistas nenhum esforço mental de compreensão do passado, tampouco alguma empatia com as forças vivas que modelam a vida da cidade. Todo o ruído criado pela história e pelas tensões sociais é abafado.

Enquanto o Palácio das Águas Correntes, na avenida Córdoba, ocupa um quarteirão inteiro com o mais feérico ecletismo decorativo apenas para esconder as prosaicas caixas d´água que abastecem o centro, as torres de marfim de Puerto Madero se entregam inteiras ao olhar sem ocultar nada. 

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Não custa repetir que as nações são ficções produzidas e reforçadas pelos escritores, historiadores e juristas. Buenos Aires já foi um porto de mercadores portugueses; Jujuy e Salta já foram a quarta parte do Tahuantinsuyo e obedeciam aos ditames de Cusco; a Patagônia poderia ter sido chilena, como as Malvinas são britânicas. Ocorre que as ficções nacionais são tão persistentes quanto certas inescapáveis ilusões de ótica. Por isso, na manhã em que parti de Buenos Aires, o canto de um sabiá numa palmeira da Plaza San Martín confundiu meu coração.  







Pescadores no Rio da Prata pela manhã. Av. Costanera Rafael Obligado






Av. Pres. Figueroa Alcorta. À direita, a Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires





Floralis Generica (2002), do arquiteto Eduardo Catalano, na Plaza de las Naciones Unidas





Museo de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA), Palermo






Museo de Arte Latino-America de Buenos Aires (MALBA)






Museo de Arte Latino-America de Buenos Aires (MALBA)






Plaza Intendente Torcuato de Alvear, Recoleta






Cemitério da Recoleta: o túmulo de Sarmiento






Cemitério da Recoleta: Mausoléu dos Soldados Mortos na Guerra do Paraguai






Jardim Zoológico,  Palermo






Edificio Kavanagh visto da Av. del Libertador, Retiro






Av. del Libertador, Retiro





Palácio Estrugamou na Calle Esmeralda, Retiro





Sede do Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto, na esquina da Esmeralda com Arenales, Retiro. 




Monumento ao Libertador na Plaza San Martin





Plaza San Martín





Cruzamento da Avenida 9 de Julio com Santa Fé





Avenida de Mayo





Antiga sede do Cabildo na Plaza de Mayo





Palacio de Aguas Corrientes, avenida Cordoba





Av. Callao




Edifício residencial na esquina da Santa Fé com a Callao




Calle Garibaldi, perto de Caminito, La Boca





Uma rua de San Telmo




Mercado de San Telmo





Puerto Madero




Puerto Madero




Puerto Madero 







Jorge Luís Borges, Obras Completas 1927-1972, Emecé Editores, Buenos Aires, 1974 | Jorge Luís Borges, Nuestras Imposibilidades, Revista Sur, Buenos Aires, 1931 | Boris Fausto e Fernando J. Devoto, Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002), Editora 34, São Paulo, 2004 | Luís Augusto Fischer, Machado e Borges, Arquipélago Editorial, Porto Alegre, 2008 | David J. Keeling, Waterfront Redevelopment and the Puerto Madero, Project in Buenos Aires, Argentina | Luis Alberto Romero, Breve Historia Contemporánea de la Argentina 1916-2010, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2012 | Nicolas Shumway, A invenção da Argentina: história de uma ideia, Edusp e EdUNB, 2009






















segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #7









Província de Santa Cruz


Patagônia 



III




Desde cedo, as terras austrais do continente americano foram alvo do interesse britânico. Uns - como Francis Drake - vinham atacar os carregamentos de prata que, partindo do Peru, atravessavam o estreito de Magalhães rumo à Espanha; outros - como Cook e FitzRoy – estavam à frente de missões de investigação científica. A tomada das ilhas Malvinas pela Marinha britânica em 1833 (na mesma época em que o Beagle explorava a região) consolidou a autoridade da Coroa na vastidão austral. Chegaram então missionários como Thomas Bridges, aventureiros como Muster, e levas de migrantes galeses que se estabeleceram principalmente na Província de Chubut. Por fim, a presença dos súditos da Coroa se firmou em 1893, quando 2.517.274 hectares de terras do Estado argentino foram concedidos para pouco mais de trinta titulares. Quase todos europeus, a maioria britânicos, nenhum argentino, esses senhores encenaram uma versão menos litigiosa e menos frenética  da corrida pela partilha da África nas duas décadas precedentes. Condenada à ovelha e ao latifúndio, a Patagônia passou a produzir lã para a indústria têxtil do Reino Unido e carne para os frigoríficos ingleses. A força de trabalho, quem a fornecia eram os imigrantes europeus pobres e principalmente os peões chilenos, vistos com desprezo e desconfiança seja por causa da sua origem indígena, seja devido às pretensões territoriais do Chile sobre a Patagônia.

Nos primeiros anos do século XX, a fama de riqueza e a presença de uma significativa comunidade anglófona atraiu para a Patagônia até mesmo bandidos famosos como Butch Cassidy, que assaltou um banco em Rios Gallegos, capital da Província de Santa Cruz, em fevereiro de 1905. Todavia, a próspera aliança entre o latifúndio exportador e a indústria britânica começou a se desfazer com o fim da Primeira Guerra Mundial. O preço da lã despencou; a Argentina teve que enfrentar a concorrência crescente da produção australiana e neozelandesa; a indústria têxtil inglesa perdeu lugar para a norte-americana; os salários dos peões, que já eram baixos, foram reduzidos, suas condições de trabalho, que já eram aviltantes, se tornaram insuportáveis. A Patagônia dos trabalhadores iria se rebelar e sofreria, aplicada pelo braço armado do Estado, a punição que os landlords reservam a seus inimigos de classe.

“La matanza de obreros de la Patagonia ocurrirá bajo el gobierno de Hipólito Yrigoyen, el primer presidente argentino surgido por voto universal, secreto y obligatorio, en 1916. Representante de un movimento de profundas raíces populares, caudillo querido por las masas pequeñoburguesas y proletarias (con excepción de los trabajadores concientizados que respondían a las corrientes anarquistas y socialistas), Hipólito Yrigoyen y su Unión Cívica Radical habían logrado arrancar por la vía constitucional el gobierno a la oligarquía terrateniente y comerciante, aunque no el poder. Su tímido reformismo logró sí democratizar, aumentar la participación de las masas, intentar una política exterior más independiente, llevar más justicia en la distribución. Pero esa misma timidez, esa propensión al diálogo y al compromiso, fueron insuficientes para enfrentar las crisis por las que atravesó su gobierno. Cuando los trabajadores industriales de Buenos Aires se levantaron, él dejó que la oligarquía reprimiera a través del ejército y los comandos de “niños bien”. Se originó así la “Semana Trágica” de enero de 1919. Cuando el trabajador rural patagónico exigió con firmeza una serie de reivindicaciones y esse movimiento amenazó con salir de su cauce meramente sindical —de acuerdo a las informaciones que iban llegando a Buenos Aires— dejó que el ejército defendiera el orden latifundista a sangre y fuego. Yrigoyen, por ironía del destino, se convierte así en involuntário verdugo de movimientos populares, pero no por casualidad. Lo que no ocurrió bajo el régimen oligárquico de antes de 1916 —durante el cual la represión no llegó a alcanzar las características de matanza colectiva— sucedió bajo el gobierno populista de Yrigoyen”.
(Osvaldo Bayer, La Patagonia Rebelde, capítulo 2)

Organizados pelos anarquistas, muitos deles admiradores da Revolução bolchevique, os trabalhadores da Província de Santa Cruz fizeram greve geral em novembro de 1920, em plena época de tosquia. O militar Héctor Benigno Varela, enviado pelo presidente Yrigoyen propôs um pacto entre proprietários e trabalhadores que concedia aos últimos a maioria de suas reivindicações. Inconformados com o que consideravam uma traição do governo, os latifundiários começaram a ignorar as cláusulas do pacto, ao que os trabalhadores responderam com outra greve geral em novembro de 1921, ocupando estâncias e tomando reféns. Houve casos de pilhagem e segundo se dizia, até estupros. As tropas da cavalaria sob o comando de Héctor Varela foram enviadas novamente à região, mas dessa vez o militar exigiu rendição incondicional dos trabalhadores e, depois de decretar lei marcial por sua própria conta, passou a reprimir duramente os grevistas. Na Estância La Anita, junto a El Calafate, centenas de trabalhadores que ocupavam a propriedade da família Braun – uma das maiores proprietárias de terras do Chile e da Argentina – foram cercados pelas tropas de Varela. Antonio de Soto, secretário da Federación Obrera de Rio Gallegos, tentou convencer os trabalhadores de que eles seriam massacrados caso se rendessem. Apesar disso, a assembleia votou pela rendição. Discordando do resultado, Antonio de Soto decidiu cruzar a fronteira para o Chile, não muito distante dali. Os trabalhadores que se entregaram foram surrados nos currais, tiveram as cabeças raspadas com as máquinas de tosquia, foram aprisionados nos galpões da estância. Na manhã seguinte foram obrigados a formar duas colunas. O comandante Varela, acompanhado de estancieiros e membros da Liga Patriótica fizeram a triagem daqueles que deveriam morrer. Cada um deles teve que cavar sua própria sepultura.

Durante mais de um mês, as tropas de Varela vasculharam a região atrás de anarquistas e grevistas. O número de mortos nunca foi esclarecido. Alguns acreditam que deve ter chegado a 1500. Héctor Varela, que havia sido homenageado pelos latifundiários em 1922, foi assassinado por um anarquista em Buenos Aires no ano seguinte.

Em 2012, o município de El Calafate, a Comisión de Vecinos por la Memoria e o proprietário atual da Estância La Anita celebraram um acordo para permitir que uma equipe interdisciplinar encontre onde estão enterrados os peões fuzilados em 1921.  Federico Braun, o proprietário, prometeu doar ao município os terrenos em que se encontrarem as sepulturas coletivas.  

A estância La Anita ainda é a mais vasta de Santa Cruz, mas hoje as ovelhas são raras e, como ocorreu com muitas outras, a propriedade dos Braun foi parcialmente convertida ao turismo de tranquera, a nova promessa da Patagônia para atrair os estrangeiros. Não estivemos em La Anita, porém, nas duas vezes que visitamos o Parque Nacional dos Glaciares, vimos ao longo de toda a estrada as cercas da propriedade. 






















































































Osvaldo Bayer, La Patagonia Rebelde, Txalaparta, Coyhaique, 2009 |  Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006 | Roberto Hosne, Patagonia, Leyenda y realidad, Eudeba, Buenos Aires, 2002 | George Chaworth Muster, At home with the Patagonians, John Murray, Londres, 1873 | Gabriel Rafart, Violência rural e bandoleirismo na PatagôniaTopoi, v.12. n.22, 2011 | Alejandro Winograd, Patagonia, Mitos y certezas, Edhasa, Buenos Aires, 2008  


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Hallazgo de restos oseos en la estancia La Anita, Universidad Nacional de la Patagonia Austral, 28/02/2015 | Estancia Anita: una visita a las tumbas sin nombres de la Patagonia Rebelde, Universidad Nacional de Cuyo, 08/10/2013













sábado, 12 de dezembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #6












Província de Santa Cruz


Patagônia 



II



No clássico relato da sua travessia da Patagônia na companhia dos tehuelches em 1870, George Chaworth Muster descreve com grande respeito e admiração a inteligência e a sabedoria do cacique Orqueque. Uma noite, enquanto acampavam nalgum lugar do que hoje é a Província de Santa Cruz, o chefe emergiu de seu silêncio pensativo e disse solenemente para o viajante inglês: “Muster, os piolhos nunca dormem!” (At home with the Patagonians, p. 34). Pode ser que o cacique falasse apenas da amolação diuturna à qual seus parasitas davam causa (“he was troubled, like all the Indians, with vermin”), mas por que nós, os pósteros, deveríamos negar às declarações dos mortos o condão profético ou aquele poder de síntese e revelação que têm os sintomas? E se os piolhos fossem todos aqueles que, desde o final da última glaciação, percorreram sem sossego o infinito desses sertões?

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George C. Muster era sobrinho de um tripulante do Beagle e lia com devoção o relato da viagem que Darwin fizera três décadas antes.  Em 1834, o capitão FitzRoy decidira subir o rio Santa Cruz a partir da foz em três grandes botes baleeiros, mas foram vencidos pelo esforço ingrato e pela escassez de comida. Darwin registrou no dia 4 de maio:  “O Capitão FitzRoy determinou não levar os barcos mais acima. O rio tinha um curso sinuoso e era muito rápido; e a aparência da região não nos tentava a ir adiante. Por toda parte encontrávamos as mesmas produções da natureza e a mesma paisagem desolada. Nós estávamos agora cento e quarenta milhas distantes do Atlântico e cerca de sessenta do braço mais próximo do Pacífico. O vale na sua parte superior se expandia em uma bacia larga, limitada ao norte e ao sul pelas plataformas basálticas, tendo à frente a longa cadeia da Cordilheira nevada. No entanto nós víamos essas grandiosas montanhas com pesar, pois éramos obrigados a imaginar a natureza delas e suas produções, ao invés de pisarmos em seus cumes como tínhamos esperado”.
(The Voyage of the Beagle, p. 176)


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A tarefa que sobrepujou as forças e o ânimo dos companheiros do capitão FitzRoy foi levada a termo em 1873 por um jovem grupo de oficiais da Marinha, tendo à frente Valentin Feilberg, filho de um dinamarquês e de uma porteña. Depois de muitos dias lutando contra a correnteza do rio Santa Cruz, o grupo exausto chegou à nascente do rio: um magnífico lago andino de águas cor turquesa, onde boiavam grandes blocos de gelo. Numa ponta junto ao lago, Feilberg improvisou um mastro para hastear a bandeira argentina, ao pé do qual colocou uma garrafa com uma mensagem que registrava o feito.

Quatro anos depois, passou por ali o geógrafo Francisco Pascacio Moreno que, para todos os argentinos, é simplesmente o Perito Moreno. Sua missão era a de explorar o território e demarcar os limites com o Chile. No dia 14 de fevereiro de 1877, ele encontrou os restos do mastro fincado por Feilberg e a mensagem na garrafa. Em nome da soberania nacional que se impunha aos poucos nas terras do Sul, o lago foi batizado de Argentino. Como sói acontecer, o Perito Moreno nunca chegou a ver o famoso glaciar que leva o seu nome, mas avistou um pico escarpado ao qual deu o nome do capitão do Beagle, que jamais esteve lá. O Cerro FitzRoy é hoje uma das atrações principais da pequena vila turística de El Chaltén.

O lago Viedma, à beira do qual está El Chaltén, forma com o lago Argentino a porção mais importante do Parque Nacional dos Glaciares. O sistema de parques nacionais argentinos, criado em 1937, teve como base as propostas do Perito Moreno, inspiradas por sua vez no exemplo de John Muir, cuja luta para preservar a paisagem natural de Sierra Nevada culminou na fundação do Yosemite Park em 1890.

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Em 1927, à margem de uma baía do lago Argentino bem conhecida pelos tehuelches, foi estabelecido um povoado para incrementar o povoamento da região. O vilarejo foi chamado de El Calafate, a partir do nome de um arbusto (Berberis buxifolia) que cresce nas bordas úmidas da estepe patagônicas, do qual se colhem frutinhos arroxeados usados em licores e doces.

El Calafate é a base de acesso ao Parque Nacional dos Glaciares, mas sua população permaneceu reduzida por muito tempo, pois, até a década de 1980, eram poucos os que se davam ao trabalho de ir tão longe. No entanto, à medida que as evidências de aquecimento global se acumulavam e se tornavam cada vez mais alarmantes, muitos sentiram que era preciso visitar aqueles lugares em que os derradeiros vestígios da última glaciação estavam condenados a um rápido desaparecimento. Desde então, o número de turistas argentinos e estrangeiros não cessou de crescer.

El Calafate tem agora 20 mil habitantes. A cidade é simpática, mas um tanto artificial e cenográfica. Todos os prédios da avenida San Martin são muito recentes e abrigam exclusivamente lojas, restaurantes e agências de turismo. Árvores foram plantadas para proteger a cidade dos ventos.  Flamingos podem ser vistos na laguna rasa da parte sul da cidade. Todavia, como o turismo na região ainda é uma atividade sazonal, a rede hoteleira fecha as portas no inverno para reabri-las no verão quando chegam as hordas de visitantes loucos para caminhar com grampões sobre a geleira.

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Para entender o êxito recente de El Calafate como destino turístico não se deve esquecer que a Presidência da Nação Argentina foi ocupada nos últimos doze anos por uma família ligada à Província de Santa Cruz. Néstor Kirchner nasceu em Rio Gallegos, capital da província, e morreu na sua casa de campo em El Calafate em 2010. Néstor – apelidado de Pingüino – foi intendente de Rio Gallegos, três vezes governador da província e finalmente presidente. Sua história familiar reflete as várias correntes migratórias que participaram do povoamento da Patagônia: seu pai era descendente de suíços e alemães, sua mãe era uma chilena de Punta Arenas, de origem croata. Néstor se casou com Cristina Fernández, uma colega advogada nascida em La Plata, que fez carreira ao seu lado e acabou por escolher  El Calafate como “seu lugar no mundo”. Cristina Fernández Kirchner foi eleita presidente em 2007 e reeleita em 2011. Durante os dois mandatos, o Boeing oficial Tango 01 trouxe regularmente a presidente para períodos de descanso ou refúgio na propriedade à beira do Lago Argentino, o que deu à cidade de El Calafate uma notoriedade nacional.

Por essa razão não é estranho que o record histórico de ocupação hoteleira em El Calafate, atingido justamente quando estávamos lá em janeiro de 2014, tenha sido elogiado pela presidente CFK num evento público. É certo que se trata de mais um exemplo do localismo que marca a vida política argentina, mas não seria abusivo enxergar aí um gesto autocongratulatório, uma vez que CFK é proprietária de alguns hotéis importantes na cidade... Entretanto, há algo mais sério a ser considerado. Como é habitual nos anúncios oficiais, a notícia alvissareira escondia da atenção pública alguns caroços intragáveis, como o fato de que o afluxo  de estrangeiros se devia em grande parte à grave crise cambial que reduzia os custos de transporte, hospedagem e alimentação para quem chegava com moedas fortes (inclusive o real brasileiro), ao mesmo tempo que cobrava da maioria dos argentinos o preço altíssimo de pôr às escâncaras a instabilidade de uma economia empobrecida e extremamente dependente do dólar. 

Cristina Fernández Kirchner foi derrotada nas eleições presidenciais de 2015. A avaliação do legado do “kirchnerismo” pode apontar ações positivas na luta contra a pobreza e no incentivo à ciência e à tecnologia, mas necessariamente vai escandir os casos de corrupção, incompetência administrativa e enfraquecimento do poder do Estado em proveito do mandonismo e do personalismo.

Uma parte polêmica da herança kirchnerista é o complexo hidrelétrico planejado para o vale do rio Santa Cruz, em parceria com o governo chinês. Duas grandes barragens estão previstas, mas o impacto ambiental e o custo real do projeto são objeto de discussões raivosas. Os engenheiros chineses e argentinos admitem que as dificuldades técnicas e logísticas são imensas. A Patagônia resiste sempre, mas seus piolhos nunca dormem.







Ao fundo, El Calafate


















O deserto      foto: Ludmila Ciuffi






foto: Ludmila Ciuffi






 Lago Argentino: impressões ao longo do dia













foto: Ludmila Ciuffi






















Osvaldo Bayer, La Patagonia Rebelde, Txalaparta, Coyhaique, 2009 |  Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006 | Roberto Hosne, Patagonia, Leyenda y realidad, Eudeba, Buenos Aires, 2002 | George Chaworth Muster, At home with the Patagonians, John Murray, Londres, 1873 | Gabriel Rafart, Violência rural e bandoleirismo na PatagôniaTopoi, v.12. n.22, 2011 | Alejandro Winograd, Patagonia, Mitos y certezas, Edhasa, Buenos Aires, 2008 


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El legado kirchneristas: un Estado débil, Clarín, 11/03/2015  |   Cristina: "En enero de 2014, El Calafate fue récord en materia turística", Sentí Argentina: Portal de Notícias de Turismo y Cultura, 16/02/2014 | "Argentina está harta de sí misma, quiere cambiar", entrevista com Enrique Valiente Noailles, El País, 17/11/2015 | Argentina leader leaves controversial legacy with Patagonian dams project, The Guardian, 01/12/2015