Província de Santa Cruz
Patagônia
Patagônia
II
No clássico relato da sua travessia da Patagônia na companhia dos
tehuelches em 1870, George Chaworth Muster descreve com grande respeito e
admiração a inteligência e a sabedoria do cacique Orqueque. Uma noite, enquanto
acampavam nalgum lugar do que hoje é a Província de Santa Cruz, o chefe emergiu
de seu silêncio pensativo e disse solenemente para o viajante inglês: “Muster,
os piolhos nunca dormem!” (At home with the Patagonians, p.
34). Pode ser que o cacique falasse apenas da amolação diuturna à qual seus
parasitas davam causa (“he was troubled, like all the Indians, with vermin”),
mas por que nós, os pósteros, deveríamos negar às declarações dos mortos o
condão profético ou aquele poder de síntese e revelação que têm os sintomas? E
se os piolhos fossem todos aqueles que, desde o final da última glaciação,
percorreram sem sossego o infinito desses sertões?
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George C. Muster era sobrinho de um tripulante do Beagle e lia com devoção o relato da viagem que Darwin fizera três décadas
antes. Em 1834, o capitão FitzRoy decidira subir o rio Santa Cruz a
partir da foz em três grandes botes baleeiros, mas foram vencidos pelo esforço
ingrato e pela escassez de comida. Darwin registrou no dia 4 de
maio: “O Capitão FitzRoy determinou não levar os barcos mais acima. O rio
tinha um curso sinuoso e era muito rápido; e a aparência da região não nos
tentava a ir adiante. Por toda parte encontrávamos as mesmas produções da
natureza e a mesma paisagem desolada. Nós estávamos agora cento e quarenta
milhas distantes do Atlântico e cerca de sessenta do braço mais próximo do
Pacífico. O vale na sua parte superior se expandia em uma bacia larga, limitada
ao norte e ao sul pelas plataformas basálticas, tendo à frente a longa cadeia
da Cordilheira nevada. No entanto nós víamos essas grandiosas montanhas com
pesar, pois éramos obrigados a imaginar a natureza delas e suas
produções, ao invés de pisarmos em seus cumes como tínhamos esperado”.
(The Voyage of the Beagle, p. 176)
(The Voyage of the Beagle, p. 176)
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A tarefa que sobrepujou as forças e o ânimo dos companheiros do
capitão FitzRoy foi levada a termo em 1873 por um jovem grupo de oficiais da
Marinha, tendo à frente Valentin Feilberg, filho de um dinamarquês e de
uma porteña. Depois de muitos dias lutando contra a correnteza do
rio Santa Cruz, o grupo exausto chegou à nascente do rio: um magnífico lago
andino de águas cor turquesa, onde boiavam grandes blocos de gelo. Numa ponta
junto ao lago, Feilberg improvisou um mastro para hastear a bandeira argentina,
ao pé do qual colocou uma garrafa com uma mensagem que registrava o feito.
Quatro anos depois, passou por ali o geógrafo Francisco Pascacio
Moreno que, para todos os argentinos, é simplesmente o Perito Moreno. Sua
missão era a de explorar o território e demarcar os limites com o Chile. No dia
14 de fevereiro de 1877, ele encontrou os restos do mastro fincado por Feilberg
e a mensagem na garrafa. Em nome da soberania nacional que se impunha aos
poucos nas terras do Sul, o lago foi batizado de Argentino. Como sói acontecer,
o Perito Moreno nunca chegou a ver o famoso glaciar que leva o seu nome, mas
avistou um pico escarpado ao qual deu o nome do capitão do Beagle, que
jamais esteve lá. O Cerro FitzRoy é hoje uma das atrações principais da pequena
vila turística de El Chaltén.
O lago Viedma, à beira do qual está El Chaltén, forma com o lago Argentino a porção mais importante do Parque Nacional dos Glaciares. O sistema de parques nacionais argentinos, criado em 1937, teve como base as propostas do Perito Moreno, inspiradas por sua vez no exemplo de John Muir, cuja luta para preservar a paisagem natural de Sierra Nevada culminou na fundação do Yosemite Park em 1890.
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Em 1927, à margem de uma baía do lago Argentino bem conhecida
pelos tehuelches, foi estabelecido um povoado para incrementar o povoamento da
região. O vilarejo foi chamado de El Calafate, a partir do nome de um arbusto (Berberis
buxifolia) que cresce nas bordas úmidas da estepe patagônicas, do qual se
colhem frutinhos arroxeados usados em licores e doces.
El Calafate é a base de acesso ao Parque Nacional dos Glaciares,
mas sua população permaneceu reduzida por muito tempo, pois, até a década de
1980, eram poucos os que se davam ao trabalho de ir tão longe. No entanto, à
medida que as evidências de aquecimento global se acumulavam e se tornavam cada
vez mais alarmantes, muitos sentiram que era preciso visitar aqueles lugares em
que os derradeiros vestígios da última glaciação estavam condenados a um rápido
desaparecimento. Desde então, o número de turistas argentinos e estrangeiros
não cessou de crescer.
El Calafate tem agora 20 mil habitantes. A cidade é simpática, mas
um tanto artificial e cenográfica. Todos os prédios da avenida San Martin são
muito recentes e abrigam exclusivamente lojas, restaurantes e agências de
turismo. Árvores foram plantadas para proteger a cidade dos
ventos. Flamingos podem ser vistos na laguna rasa da parte sul da
cidade. Todavia, como o turismo na região ainda é uma atividade sazonal, a rede
hoteleira fecha as portas no inverno para reabri-las no verão quando chegam as
hordas de visitantes loucos para caminhar com grampões sobre a geleira.
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Para entender o êxito recente de El Calafate como destino
turístico não se deve esquecer que a Presidência da Nação Argentina foi ocupada
nos últimos doze anos por uma família ligada à Província de Santa Cruz. Néstor
Kirchner nasceu em Rio Gallegos, capital da província, e morreu na sua casa de
campo em El Calafate em 2010. Néstor – apelidado de Pingüino –
foi intendente de Rio Gallegos, três vezes governador da província e finalmente
presidente. Sua história familiar reflete as várias correntes migratórias que
participaram do povoamento da Patagônia: seu pai era descendente de suíços e
alemães, sua mãe era uma chilena de Punta Arenas, de origem croata. Néstor se
casou com Cristina Fernández, uma colega advogada nascida em La Plata, que fez
carreira ao seu lado e acabou por escolher El Calafate como “seu lugar no
mundo”. Cristina Fernández Kirchner foi eleita presidente em 2007 e reeleita em
2011. Durante os dois mandatos, o Boeing oficial Tango 01 trouxe
regularmente a presidente para períodos de descanso ou refúgio na propriedade à
beira do Lago Argentino, o que deu à cidade de El Calafate uma notoriedade
nacional.
Por essa razão não é estranho que o record histórico de
ocupação hoteleira em El Calafate, atingido justamente quando estávamos lá em janeiro de 2014, tenha sido elogiado pela presidente CFK num
evento público. É certo que se trata de mais um exemplo do localismo que marca
a vida política argentina, mas não seria abusivo enxergar aí um
gesto autocongratulatório, uma vez que CFK é proprietária de alguns hotéis
importantes na cidade... Entretanto, há algo mais sério a ser considerado. Como
é habitual nos anúncios oficiais, a notícia alvissareira escondia da atenção
pública alguns caroços intragáveis, como o fato de que o afluxo de
estrangeiros se devia em grande parte à grave crise cambial que reduzia os
custos de transporte, hospedagem e alimentação para quem chegava com moedas
fortes (inclusive o real brasileiro), ao mesmo tempo que cobrava da maioria dos
argentinos o preço altíssimo de pôr às escâncaras a instabilidade de uma
economia empobrecida e extremamente dependente do dólar.
Cristina Fernández Kirchner foi derrotada nas eleições
presidenciais de 2015. A avaliação do legado do “kirchnerismo” pode apontar
ações positivas na luta contra a pobreza e no incentivo à ciência e à
tecnologia, mas necessariamente vai escandir os casos de corrupção,
incompetência administrativa e enfraquecimento do poder do Estado em proveito
do mandonismo e do personalismo.
Uma parte polêmica da herança kirchnerista é o complexo
hidrelétrico planejado para o vale do rio Santa Cruz, em parceria com o governo
chinês. Duas grandes barragens estão previstas, mas o impacto ambiental e o
custo real do projeto são objeto de discussões raivosas. Os engenheiros
chineses e argentinos admitem que as dificuldades técnicas e logísticas são
imensas. A Patagônia resiste sempre, mas seus piolhos nunca dormem.
Ao fundo, El Calafate |
O deserto foto: Ludmila Ciuffi |
foto: Ludmila Ciuffi |
Lago Argentino: impressões ao longo do dia |
foto: Ludmila Ciuffi |
Osvaldo Bayer, La Patagonia Rebelde, Txalaparta,
Coyhaique, 2009 | Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From
so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with
introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York,
2006 | Roberto Hosne, Patagonia, Leyenda y realidad, Eudeba,
Buenos Aires, 2002 | George Chaworth Muster, At home with the
Patagonians, John Murray, Londres, 1873 | Gabriel Rafart, Violência
rural e bandoleirismo na Patagônia, Topoi, v.12. n.22, 2011
| Alejandro Winograd, Patagonia, Mitos y certezas, Edhasa,
Buenos Aires, 2008
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El
legado kirchneristas: un Estado débil, Clarín, 11/03/2015 | Cristina: "En enero de 2014, El Calafate fue
récord en materia turística", Sentí
Argentina: Portal de Notícias de Turismo y Cultura, 16/02/2014 | "Argentina está harta de sí misma, quiere cambiar", entrevista com Enrique Valiente Noailles, El País, 17/11/2015 | Argentina leader leaves controversial legacy with Patagonian dams project, The Guardian, 01/12/2015
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