sábado, 12 de dezembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #6












Província de Santa Cruz


Patagônia 



II



No clássico relato da sua travessia da Patagônia na companhia dos tehuelches em 1870, George Chaworth Muster descreve com grande respeito e admiração a inteligência e a sabedoria do cacique Orqueque. Uma noite, enquanto acampavam nalgum lugar do que hoje é a Província de Santa Cruz, o chefe emergiu de seu silêncio pensativo e disse solenemente para o viajante inglês: “Muster, os piolhos nunca dormem!” (At home with the Patagonians, p. 34). Pode ser que o cacique falasse apenas da amolação diuturna à qual seus parasitas davam causa (“he was troubled, like all the Indians, with vermin”), mas por que nós, os pósteros, deveríamos negar às declarações dos mortos o condão profético ou aquele poder de síntese e revelação que têm os sintomas? E se os piolhos fossem todos aqueles que, desde o final da última glaciação, percorreram sem sossego o infinito desses sertões?

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George C. Muster era sobrinho de um tripulante do Beagle e lia com devoção o relato da viagem que Darwin fizera três décadas antes.  Em 1834, o capitão FitzRoy decidira subir o rio Santa Cruz a partir da foz em três grandes botes baleeiros, mas foram vencidos pelo esforço ingrato e pela escassez de comida. Darwin registrou no dia 4 de maio:  “O Capitão FitzRoy determinou não levar os barcos mais acima. O rio tinha um curso sinuoso e era muito rápido; e a aparência da região não nos tentava a ir adiante. Por toda parte encontrávamos as mesmas produções da natureza e a mesma paisagem desolada. Nós estávamos agora cento e quarenta milhas distantes do Atlântico e cerca de sessenta do braço mais próximo do Pacífico. O vale na sua parte superior se expandia em uma bacia larga, limitada ao norte e ao sul pelas plataformas basálticas, tendo à frente a longa cadeia da Cordilheira nevada. No entanto nós víamos essas grandiosas montanhas com pesar, pois éramos obrigados a imaginar a natureza delas e suas produções, ao invés de pisarmos em seus cumes como tínhamos esperado”.
(The Voyage of the Beagle, p. 176)


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A tarefa que sobrepujou as forças e o ânimo dos companheiros do capitão FitzRoy foi levada a termo em 1873 por um jovem grupo de oficiais da Marinha, tendo à frente Valentin Feilberg, filho de um dinamarquês e de uma porteña. Depois de muitos dias lutando contra a correnteza do rio Santa Cruz, o grupo exausto chegou à nascente do rio: um magnífico lago andino de águas cor turquesa, onde boiavam grandes blocos de gelo. Numa ponta junto ao lago, Feilberg improvisou um mastro para hastear a bandeira argentina, ao pé do qual colocou uma garrafa com uma mensagem que registrava o feito.

Quatro anos depois, passou por ali o geógrafo Francisco Pascacio Moreno que, para todos os argentinos, é simplesmente o Perito Moreno. Sua missão era a de explorar o território e demarcar os limites com o Chile. No dia 14 de fevereiro de 1877, ele encontrou os restos do mastro fincado por Feilberg e a mensagem na garrafa. Em nome da soberania nacional que se impunha aos poucos nas terras do Sul, o lago foi batizado de Argentino. Como sói acontecer, o Perito Moreno nunca chegou a ver o famoso glaciar que leva o seu nome, mas avistou um pico escarpado ao qual deu o nome do capitão do Beagle, que jamais esteve lá. O Cerro FitzRoy é hoje uma das atrações principais da pequena vila turística de El Chaltén.

O lago Viedma, à beira do qual está El Chaltén, forma com o lago Argentino a porção mais importante do Parque Nacional dos Glaciares. O sistema de parques nacionais argentinos, criado em 1937, teve como base as propostas do Perito Moreno, inspiradas por sua vez no exemplo de John Muir, cuja luta para preservar a paisagem natural de Sierra Nevada culminou na fundação do Yosemite Park em 1890.

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Em 1927, à margem de uma baía do lago Argentino bem conhecida pelos tehuelches, foi estabelecido um povoado para incrementar o povoamento da região. O vilarejo foi chamado de El Calafate, a partir do nome de um arbusto (Berberis buxifolia) que cresce nas bordas úmidas da estepe patagônicas, do qual se colhem frutinhos arroxeados usados em licores e doces.

El Calafate é a base de acesso ao Parque Nacional dos Glaciares, mas sua população permaneceu reduzida por muito tempo, pois, até a década de 1980, eram poucos os que se davam ao trabalho de ir tão longe. No entanto, à medida que as evidências de aquecimento global se acumulavam e se tornavam cada vez mais alarmantes, muitos sentiram que era preciso visitar aqueles lugares em que os derradeiros vestígios da última glaciação estavam condenados a um rápido desaparecimento. Desde então, o número de turistas argentinos e estrangeiros não cessou de crescer.

El Calafate tem agora 20 mil habitantes. A cidade é simpática, mas um tanto artificial e cenográfica. Todos os prédios da avenida San Martin são muito recentes e abrigam exclusivamente lojas, restaurantes e agências de turismo. Árvores foram plantadas para proteger a cidade dos ventos.  Flamingos podem ser vistos na laguna rasa da parte sul da cidade. Todavia, como o turismo na região ainda é uma atividade sazonal, a rede hoteleira fecha as portas no inverno para reabri-las no verão quando chegam as hordas de visitantes loucos para caminhar com grampões sobre a geleira.

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Para entender o êxito recente de El Calafate como destino turístico não se deve esquecer que a Presidência da Nação Argentina foi ocupada nos últimos doze anos por uma família ligada à Província de Santa Cruz. Néstor Kirchner nasceu em Rio Gallegos, capital da província, e morreu na sua casa de campo em El Calafate em 2010. Néstor – apelidado de Pingüino – foi intendente de Rio Gallegos, três vezes governador da província e finalmente presidente. Sua história familiar reflete as várias correntes migratórias que participaram do povoamento da Patagônia: seu pai era descendente de suíços e alemães, sua mãe era uma chilena de Punta Arenas, de origem croata. Néstor se casou com Cristina Fernández, uma colega advogada nascida em La Plata, que fez carreira ao seu lado e acabou por escolher  El Calafate como “seu lugar no mundo”. Cristina Fernández Kirchner foi eleita presidente em 2007 e reeleita em 2011. Durante os dois mandatos, o Boeing oficial Tango 01 trouxe regularmente a presidente para períodos de descanso ou refúgio na propriedade à beira do Lago Argentino, o que deu à cidade de El Calafate uma notoriedade nacional.

Por essa razão não é estranho que o record histórico de ocupação hoteleira em El Calafate, atingido justamente quando estávamos lá em janeiro de 2014, tenha sido elogiado pela presidente CFK num evento público. É certo que se trata de mais um exemplo do localismo que marca a vida política argentina, mas não seria abusivo enxergar aí um gesto autocongratulatório, uma vez que CFK é proprietária de alguns hotéis importantes na cidade... Entretanto, há algo mais sério a ser considerado. Como é habitual nos anúncios oficiais, a notícia alvissareira escondia da atenção pública alguns caroços intragáveis, como o fato de que o afluxo  de estrangeiros se devia em grande parte à grave crise cambial que reduzia os custos de transporte, hospedagem e alimentação para quem chegava com moedas fortes (inclusive o real brasileiro), ao mesmo tempo que cobrava da maioria dos argentinos o preço altíssimo de pôr às escâncaras a instabilidade de uma economia empobrecida e extremamente dependente do dólar. 

Cristina Fernández Kirchner foi derrotada nas eleições presidenciais de 2015. A avaliação do legado do “kirchnerismo” pode apontar ações positivas na luta contra a pobreza e no incentivo à ciência e à tecnologia, mas necessariamente vai escandir os casos de corrupção, incompetência administrativa e enfraquecimento do poder do Estado em proveito do mandonismo e do personalismo.

Uma parte polêmica da herança kirchnerista é o complexo hidrelétrico planejado para o vale do rio Santa Cruz, em parceria com o governo chinês. Duas grandes barragens estão previstas, mas o impacto ambiental e o custo real do projeto são objeto de discussões raivosas. Os engenheiros chineses e argentinos admitem que as dificuldades técnicas e logísticas são imensas. A Patagônia resiste sempre, mas seus piolhos nunca dormem.







Ao fundo, El Calafate


















O deserto      foto: Ludmila Ciuffi






foto: Ludmila Ciuffi






 Lago Argentino: impressões ao longo do dia













foto: Ludmila Ciuffi






















Osvaldo Bayer, La Patagonia Rebelde, Txalaparta, Coyhaique, 2009 |  Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006 | Roberto Hosne, Patagonia, Leyenda y realidad, Eudeba, Buenos Aires, 2002 | George Chaworth Muster, At home with the Patagonians, John Murray, Londres, 1873 | Gabriel Rafart, Violência rural e bandoleirismo na PatagôniaTopoi, v.12. n.22, 2011 | Alejandro Winograd, Patagonia, Mitos y certezas, Edhasa, Buenos Aires, 2008 


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El legado kirchneristas: un Estado débil, Clarín, 11/03/2015  |   Cristina: "En enero de 2014, El Calafate fue récord en materia turística", Sentí Argentina: Portal de Notícias de Turismo y Cultura, 16/02/2014 | "Argentina está harta de sí misma, quiere cambiar", entrevista com Enrique Valiente Noailles, El País, 17/11/2015 | Argentina leader leaves controversial legacy with Patagonian dams project, The Guardian, 01/12/2015















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