A Guerra dos Brows
"J'entends des familles
comme la mienne,
qui tiennent tout de la déclaration des Droits de l'Homme".
Rimbaud, Une
saison en Enfer
I
Meus
avós eram gente analfabeta do campo; meus pais tiveram uma escolarização
elementar que lhes permitiu trabalhar como operários na indústria metalúrgica e têxtil. Como os mais afortunados da minha estirpe e
linhagem, fui miraculado pela universidade e passei a integrar a fração
superior da pequena-burguesia. Todavia, se o capital cultural acumulado pôde
ser convertido em certa posição social, também me levou a uma
atitude irônica, e muitas vezes hostil, face aos padrões culturais da
classe a que pertenço. De várias maneiras sou um trânsfuga e um
híbrido: sou o produto da herança rural ítalo-caipira-afro-baiana; da cultura de massas; da solidariedade do chão de fábrica, que era reproduzida pelos meninos e meninas no pátio da escola; do treino
intelectual na graduação e na pós-graduação; do convívio e comunhão com a pequena-burguesia
que trabalha no setor de serviços educacionais; do exercício crítico de scholar na
esfera privada. Assim era inevitável que, ao longo de toda a minha vida, estivesse metido nalguma trincheira durante a Guerra dos Brows.
Da
cultura lowbrow a que fui exposto quando criança e em parte da adolescência,
restou muito pouco. Os infantes marxistas da turma de 82 rapidamente aprendiam
a reconhecer nela os produtos espúrios da indústria cultural, mas o fato é que
nosso próprio marxismo estudantil também era nutrido por essa indústria: pelos volumes da coleção “Os Pensadores”; pelos livrinhos da série
“Primeiros Passos”; pelos episódios de “A Era da Incerteza” de John Kenneth Galbraith. Enfim, por toda uma gama de
produtos de divulgação (ou “propaganda” como dirão os oponentes à direita) que compunha
a paisagem da esquerda middlebrow naquela época hoje remota.
Pelas
razões que acabo de expor, confesso que pertenço àquela grande família de
beneficiários dos fascículos da editora Abril, da enciclopédia Barsa e da Delta-Larousse, dos programas educativos da TV Cultura de São Paulo, da série
“Cosmos” de Carl Sagan, da revista "Planeta", dos programas musicais transmitidos a partir do SESC
Pompeia, das coleções de bolso da editora Brasiliense, do catálogo do Círculo
do Livro, das obras paradidáticas da editora Ática, dos "Concertos para a Juventude", das minisséries “Raízes” e “Holocausto” transmitidas pela Rede Globo, das palestras na biblioteca Mário de Andrade, dos clássicos nas edições baratas da Ediouro, da História da Filosofia Ocidental de
Bertrand Russell, do catolicismo de esquerda divulgado pela Editora Vozes. Eu
poderia passar muito tempo relembrando tudo o que aprendi imerso nesse caldo middlebrow ao qual eu devo meu ingresso no ensino superior, mas hoje não estou para reverências. Minha
intenção é mostrar quão limitante pode ser a cultura middlebrow e como ela
constitui um dos fatores do filistinismo.
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