Esse pombo triste:
o pequeno-burguês
"Será preciso retumbar como tambores e pregadores de sermões
quaresmais?
Ou acreditarão somente nos que gaguejam?
Possuem alguma coisa da qual se orgulham.
Como chamam, mesmo, àquilo que os torna orgulhosos?
Chamam-lhe instrução e é o que os distingue dos pastores de cabras".
Como chamam, mesmo, àquilo que os torna orgulhosos?
Chamam-lhe instrução e é o que os distingue dos pastores de cabras".
Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Prólogo, 5
O filisteu é conservador e cauteloso; abomina a extravagância tanto quanto a vulgaridade; imagina
soluções fáceis e rápidas para todos os problemas do mundo e lamenta
sinceramente que uma conspiração de hipócritas, corruptos ou incompetentes
esteja a impedir a aplicação da sua panaceia; tem opiniões pessoais a propósito de tudo e faz questão de expressá-las; reverencia os valores universais e também o torrão natal; acompanha com
paixão as notícias (inclusive o fait divers), mas tem saudade dos
“bons e velhos tempos”; experimenta volúpias de grandeza moral quando,
diante de uma plateia, mostra-se indignado face ao “descalabro” da "situação atual”, ou enlevado com a beleza - sempre "comovente" - de uma autêntica obra de arte. Na sua profunda incapacidade de calar-se e refletir, o
filisteu demonstra que, não menos que a natureza, tem horror ao vazio, razão pela qual o niilismo e o ceticismo lhe são absolutamente estranhos.
Para o bem da espécie humana e salvaguarda geral das nações, o filisteu-tipo que acabamos de desenhar não pode ser encontrado em estado puro nas condições ambientais normais, mas os traços de
filistinismo, embora disseminados por todos os segmentos da sociedade,
concentram-se nas frações inferiores da burguesia: os pequenos e
médios empreendedores, os proprietários de imóveis de aluguel, os quadros subalternos que servem de capatazes aos gerentes do capital, os médicos, advogados e
engenheiros que não conseguiram alcançar um status à altura de seus diplomas
universitários, os profissionais da educação, os técnicos de maneira geral, os
empregados melhor remunerados do setor de serviços.
Espremido
entre a grande burguesia reluzente e a massa desbotada dos desclassificados, o pequeno-burguês pensa que sua posição, a cavaleiro da luta de classes, permitir-lhe-ia resolver o impasse e decidir o bem-comum. E o que poderia ser melhor para todos senão o que é bom para a pequena-burguesia? Paz, prosperidade, harmonia familiar, amor, trabalho, oportunidades, esforço individual, empreendedorismo,
recompensa financeira, gratificação emocional, segurança, tranquilidade e, se Deus quiser, um pouco de arte e diversão. Nessa tópica de horóscopo
matinal, a summa summarum dos ideais de uma classe.
Por
estar tão próxima da massa dos trabalhadores de baixa qualificação, que lhe
presta serviços variados sob a rubrica de “moças da limpeza” ou “rapazes do
conserto”, a pequena-burguesia anseia por distinção: a instrução diplomada
exibida na pronúncia escandida exageradamente didática; a boa educação nos
ademanes fora de hora; o requinte da xícara acompanhada do pires; a diversão
das séries do Netflix; o cobiçado estágio “no exterior”; o conforto do sofá
novo, do carro do ano e da conta conjunta superprime; as duas horas
de fila para ver os impressionistas, tão impressionantes; os nenúfares de Monet
na capa da agenda ou nos marca-páginas do livro mais vendido de não-ficção da
revista Veja. Esse esforço de distinguir-se da massa
pobre de serventes e auxiliares com ensino fundamental incompleto consome os
recursos e as energias da pequena-burguesia, sempre tão assombrada por pesadelos
de declínio, crise e altos impostos. O pequeno-burguês padece no seu lar. O
mundo, que lhe sorri e acena com promessas de oportunidades, é terrivelmente
opaco e incompreensível.
As
altas esferas do capital, porém, o fascinam. Não o capital impessoal, não o
capital-processo, não o Sujeito Automático de Marx, já que no seu fetichismo às avessas o pequeno-burguês enxerga as relações abstratas e reificadas apenas na forma de "histórias humanas" em que o capital se faz carne. Daí o interesse pelos perfis dos megainvestidores elencados periodicamente pela Forbes, os emblemáticos “homens mais ricos do mundo”, que os pequenos-burgueses perplexos ora admiram como heróis de sucesso, ora infamam como bandidos ("a propriedade é um roubo” dizia o pequeno-burguês
Proudhon). Dilacerada por essa ambivalência face ao grande capital, a pequena burguesia não alcança a coerência política: ela pode aderir irrefletidamente a programas neoliberais que, cumpridos
à risca, destruiriam o pequeno patrimônio de que dispõe; ou pode aceitar, com
a mesma falta de reflexão, um radicalismo de esquerda que pende para o irracionalismo e descamba numa revolta que dificilmente vai além do impropério ou do "desabafo" irritado de alguma bela alma infeliz.
Incerta
em suas prerrogativas de classe, dividida entre o ressentimento e a
autocomplacência, a pequena-burguesia é um repositório de paixões tristes. Sem recursos para realizar suas fantasias de reforma universal, resta-lhe encenar de
maneira cabotina um engajamento ansioso por soluções finais e explosivas, como já havia mostrado Drummond de Andrade num poema célebre, verdadeiro mea culpa do pequeno-burguês impotente que se revolta contra o mundo no recôndito do apartamento
recém-adquirido:
Trabalhas
sem alegria para um mundo caduco,
onde
as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas
laboriosamente os gestos universais,
sentes
calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis
enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e
preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À
noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou
se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas
a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e
sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas
o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e
te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas
entre mortos e com eles conversas
sobre
coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A
literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao
telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração
orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e
adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas
a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque
não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
(“Elegia
1938” in Sentimento do Mundo)
Não se poderia dizer mais nem melhor. Drummond conhecia todos os fios retorcidos que compunham o eu de uma certa burguesia brasílica. Todavia, o apequenamento da burguesia, embora justifique o feitio delicado do monstro filistino, não explica suas pretensões de sapiência nem suas audácias judicativas, demonstração que deixo para o próximo momento.
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Ó Harry Heine, cheguei atrasado
ResponderExcluirpara jantar contigo, que diabos!
Quem há de demolir com tanto esmero
a pompa da Filístia e o Lero-lero!
(Ezra Pound)
Nietzsche, Drummond, Heine, Pound; com troças tão bem feitas, fica até fácil suportar esses tristes pombos.
Abraços.