quarta-feira, 15 de junho de 2016

Burgueses e filisteus: uma introdução








De volta ao velho camaleão: 

o burguês




Éramos jovenzinhos, quase todos mais ou menos punks, a maioria filhos de metalúrgicos. O ano era 1979. Nos bate-bocas no pátio da escola, a pecha de “burguês” constituía a pedra fácil que sempre saltava à mão. Era o insulto rotineiro e previsível que cuspíamos com desdém na face de qualquer guri de cabelo um pouco mais amanhado, que exibisse um par de tênis novo e caro. Ser um “burguês” não indicava pertencimento a uma classe social – a qual, de resto, só conhecíamos na figura dos “ricos” das telenovelas -; ser “burguês” denotava um comportamento que combinava afetação e um certo querer ser mais do que os outros, em desafio à nossa solidariedade compacta de gente trabalhadora de origem migrante ou imigrante. O “burguês” era o traidor, aquele que não queria ser um de nós porque desprezava nossa rudeza.

No momento tenso de degelo da ditadura militar (o atentado fracassado no Pavilhão Riocentro ocorreu em 1981), os jovens que tinham contato com o marxismo – inclusive este Sobrinho de Enesidemo que ora escreve - tachavam de “burguês” quem podia adquirir as novidades "bacanas" que "pintavam" nas lojas sem se importar com o que estava acontecendo no país. Mais uma vez, a palavra “burguês” não indicava o membro de uma classe social, mas o entusiasta de uma certa prática: o hedonista alheio à vida política mas com dinheiro suficiente para gastar em consumo, a despeito da inflação "galopante" que assolava o país, e – escândalo dos escândalos! - na condição de lucrar com aplicações overnight. Para nós, soixante-huitards retardatários, “burguesa” era sobretudo a ideologia dominante que o “sistema” secretava como dos pântanos de outrora emanavam miasmas fatais. Para nos livrarmos do contágio da coisa abominável, para não incidirmos no pecado capital da “alienação”, repetíamos uns aos outros as jaculatórias anticapitalistas, antiburguesas e antiimperialistas, o tesouro comum paulatinamente acumulado desde a temporada de caça de 1793-1794, passando pelas jornadas insurrecionais de 1848 e 1871, pelas gloriosas revoluções comunistas e pela Grande Recusa na década de 1960.

Para 0s infantes marxistas da turma de 82 que abandonavam o catolicismo em favor da religião de Bach e Schoenberg, Duccio e Klee, Dante e Rimbaud, havia mais uma fonte de hostilidade à burguesia: o desprezo pelo burguês como inimigo das Letras e das Artes, o adversário de todas as vanguardas, o tipo tacanho, conservador e preconceituoso, sempre convencido da verdade universal de suas opiniões a respeito de estética, política ou moral. Enfim, o filisteu, antigo insulto germânico que aprendíamos com Heine, Nietzsche e Karl Kraus.

É a respeito desse tipo que eu quero falar nas próximas semanas, agora que a coisa antiga e aparentemente extemporânea retorna ao proscênio, sem rebuços, nas mesóclises do presidente interino, no desenxabido da corte (ou coorte) brasiliense, na fatiota dos causídicos e eminentes juristas, na allure dos misangélicos in nomini domini. Um desfile da tropa do trapo digno de um óleo de Ensor ou de Grosz.

Marchemos, então, companheiros de Davi, contra os quarteis de Golias. E que o leitor nos perdoe por não nos distanciarmos devidamente do fartum que emana do ajuntamento de bestas.

*****















Nenhum comentário:

Postar um comentário