quarta-feira, 28 de março de 2018

Dicionário Aleatório #5







Educação


A palavra é grande demais. Quase nada no cotidiano escolar se parece com ela. Daí que muitos professores, constrangidos ou irônicos, encolham-se diante das expectativas e valores que a palavra evoca. É que a relação entre professores e estudantes na sala de aula não é uma relação entre agentes livres. Ela é cercada por travamentos institucionais, os quais, como todo travamento, dão-lhe sustentação ao mesmo tempo que impedem o seu movimento. O quadro institucional delimita as tarefas, os métodos aceitáveis, os resultados esperados, a remuneração e a jornada de trabalho. Professores e alunos têm pouco ou nenhum controle sobre essas condições, tampouco podem se esquivar às pressões diversas e desencontradas vindas da burocracia escolar, das famílias, dos governos e da situação econômica. Ocorre também que, na própria sala de aula - onde muitos professores ainda têm a ilusão de serem soberanos -, a singularidade e o momento de cada aluno se desfaz na coletividade heterogênea da turma (ou turba) que assiste, mais ou menos impaciente, mais ou menos atenta, mais ou menos  participante, a uma aula com hora marcada por nenhum dos participantes. A despeito disso, o aprendizado acontece. Não se trata da "Educação", substantiva, maiúscula, transcendente, mas da honesta dedicação ao ensino que se encontra com a curiosidade e o esforço de aprender, desde que as decisões dos governos e a mercantilização do ensino não impeçam esse encontro.

Para quem é professor, o desafio consiste em suportar e resistir a essas travas e entraves. A cada ano, com cada turma, é preciso conquistar a confiança dos estudantes, identificar as suas deficiências e  resistências e ajudá-los a superá-las. O professor precisa acreditar na sua capacidade e na capacidade de seus estudantes. A obrigação do professor é fazer as intervenções oportunas, dar o estímulo correto, apontar na direção certa. E não se cansar de repetir. A repetição, inclusive a repetição do óbvio, é o fardo da profissão docente.

A repetição é inevitável, mas pode ter brilho. Para isso, há uma variedade de recursos retóricos e teatrais, que se tornam armadilhas tão logo deixam de ser usadas como meios de persuasão e de intervenção oportuna e se tornam veículo de posturas narcisistas de professores que alimentam o culto à sua personalidade. Muitos professores gostam de ouvir a própria voz, muitos alimentam a ilusão messiânica de que promovem a libertação das massas ignaras e alienadas, muitos acreditam-se taumaturgos, muitos são ateus porque não admitem concorrência.

Se, aos olhos dos alunos, o professor parece “genial” e se essa suposta “genialidade” os ajuda a compreender o que antes não compreendiam, se o seu horizonte de conhecimento se torna mais amplo, temos que celebrar essa “genialidade”. Todavia, quando é o professor que se julga “genial”, ele se arrisca a fazer papel de bobo. Infelizmente o limiar entre as duas situações é tênue porque muitas instituições de ensino avaliam ou remuneram os seus professores levando em conta medições em que o carisma, o domínio dos recursos retóricos, a dedicação ao ensino e os resultados de tudo isso, mesclam-se e confundem-se.

São essas condições e limites, essas travas e entraves, que me levam a discordar dos que buscam na Educação o caminho para o esclarecimento e emancipação da humanidade. Para isso, seria preciso que a Educação fosse emancipada dos fortíssimos constrangimentos sociais, políticos e econômicos aos quais está agrilhoada. E mais, seria preciso que a Educação deixasse de preparar tão bem os agentes que irão exercer a funções sociais, políticas e econômicas que a constrangem. Para redimir a sociedade, seria preciso que o redentor fosse redimido antes.

No entanto, embora não possa aspirar legitimamente à emancipação da sociedade ou do ser humano, os educadores têm uma tarefa mais modesta mas importantíssima a seu alcance: combater a ignorância ignorante que aparece na forma de incultura e de burrice ingênua. Acredito que essa é a tarefa de base da Educação. Tudo o que vier além disso, deve ser comemorado com aquela alegria de coração com que se recebem os eventuais sorrisos da Fortuna. 













quarta-feira, 21 de março de 2018

Dicionário aleatório #4










Combate à Ignorância



Nem todos têm o ócio e o vagar necessários para colocar em prática a profilaxia que conduz à douta ignorância. Essa tarefa nem mesmo faz sentido para as pessoas engajadas nos seus afazeres, nas suas crenças e nos seus hábitos. Por isso, nem todos podem ser filósofos.

O exercício da filosofia, até para os filósofos mais aferrados à imanência do chão e à concretude, é uma ascese desmundanizadora. Implica afastamento, estranhamento, deslocamento, reversão do olhar, suspensão da tese do mundo, dúvida metódica, crítica, angústia, sképsis. Onde alguns veem vultos inquietantes, o filósofo pergunta: se pudermos nos afastar um pouco para olhar esses vultos a partir de outro lugar, não é possível que eles se revelem apenas sombras projetadas por algo bem diferente do que imaginamos? Se pudermos levar adiante nosso estranhamento diante do mundo, não acabaremos por ver que esses vultos obscuros invocados sob o nome de Deus, História, Mercado e Sociedade são apenas sombras ou projeções que merecem ser investigadas, mesmo que, ao final, só tenhamos em mãos um punhado de hipóteses incertas? Mas é nisso que está a aposta do filósofo: arriscar a certeza da ilusão  para ganhar a incerteza da sabedoria. 

A beleza das grandes filosofias está em serem interpretações que deslocam as perspectivas, revelando que os fantasmas que assombram o discurso são apenas sombras. A tarefa da filosofia é interpretar o mundo para libertar-nos dos erros antigos, já cristalizados em hábitos inconscientes e vícios de pensamentos. Esse é o poder próprio da filosofia, embora pareça pouco ou nada para os que estão engajados na vida do trabalho, dos negócios, da política ou da revolução, como o jovem Marx, que queria que a filosofia transformasse o mundo ao invés de apenas interpretá-lo. Tal ardor revolucionário era sustentado pelo desejo apaixonado de alcançar um estado de transparência racional, livre de ruído, mistificação ou dominação, em que o exercício da filosofia se tornasse inútil no plano de uma vida social emancipada. Contudo, essa emancipação ainda não veio e não podemos adiar a tarefa urgente de interpretação do mundo. Em lugar de uma transparência racional completa, eu proponho o princípio da conservação da falibilidade do conhecimento humano: não saltaremos do erro para a verdade, mas podemos sair dos erros antigos em direção a erros mais interessantes, mais fecundos, mais belos.  Erros melhores, erros dos quais temos ciência e consciência. Assim é que alcançamos a ignorância douta, a maior forma de combate à ignorância ignorante em todas as suas variedades.

Contudo, nem todos podem ser filósofos, nem todos têm o ócio e o vagar para isso. De que modo combater, então, as formas de ignorância ignorante que mencionei na semana passada? 




quarta-feira, 14 de março de 2018

Dicionário aleatório #3







Incultura, tolice, ignorância




No verbete anterior, confessei minha inquietação com a feição "culta" que têm assumido a ignorância. É hora de esclarecer o que eu entendo por ignorância. Para começar, eu reconheço sete variedades dela:

1

A incultura dos que não tiveram a oportunidade de estudar. É a ignorância elementar dos analfabetos e dos rústicos que pode muito bem ser acompanhada de sabedoria prática, sensatez e outras virtudes.

2

burrice ingênua dos que, pela falta de domínio adequado da linguagem e pela confusão de conceitos mal-assimilados, dizem disparates a sério, supondo que estão fazendo afirmações verdadeiras e relevantes. 

3

O discurso leviano de quem está acostumado a falar sem pensar, movido pela loquacidade imperiosa ou pelo desejo de causar efeito nos ouvintes. Amantes da conversação amena e superficial, os levianos se inquietam ao menor sinal de seriedade e encolhem-se acabrunhados diante dos que argumentam, citam números ou alçam a voz. Os levianos são inofensivos quando a conversa se restringe ao elevador, à pausa do café ou ao salão de festas. O problema é que eles nunca se restringem a esses ambientes e espalham-se pelas colunas de jornal ou pelos comentários de televisão.

4

tolice pretensiosa dos que gostam de dar recomendações e conselhos sobre assuntos que acreditam conhecer bem. Todo mundo conhece alguém que não é rico, mas sabe como ganhar dinheiro e dá palpites sobre investimentos. Todo mundo conhece algum especialista by proxy que receita remédios infalíveis a partir do que o cunhado lhe contou sobre um fulano doente. 
O tolo pretensioso é ingênuo porque ela não compreende que o saber ou conhecimento não resulta da mera convicção de que se sabe algo, menos ainda da simples vontade de emitir uma opinião sobre o assunto. O tolo pretensioso não dá a devida atenção ao fato de que o saber exige certas credenciais que comprovem o domínio dos métodos legítimos de aquisição de conhecimento. Em teoria é isso que um diploma ou certificado emitido por uma instituição idônea deveria representar.  


5

impostura intelectual é o vício dos que, movidos pela ambição do renome, põem-se a fazer asserções sobre assuntos que eles conhecem de maneira imprecisa e insuficiente ou que, por sua própria natureza, não podem ser conhecidos. Os impostores intelectuais são frequentemente dotados de credenciais e de experiência nos métodos legítimos de aquisição de saber, mas esses métodos são muito demorados e dificilmente trazem fama e o consequente cortejo de discípulos deslumbrados. Assim, os impostores apenas simulam que aplicam esses métodos e se dedicam àqueles temas que mais rapidamente podem despertar a atenção de um público jovem, inexperiente e cheio daquela avidez pelo conhecimento e pela novidade. Trata-se da própria essência da "enrolação", sustentada por artifícios retóricos, posta em prática por especialistas em previsões na área de economia ou política (como se o conhecimento do futuro estivesse ao seu alcance), por acadêmicos que gostam de fazer declarações polêmicas sobre assuntos que conhecem mal ou por profissionais da educação e da comunicação ansiosos por projeção e luzes. 


6

ignorância militante dos que assumem uma opinião ou partido e se põem a defendê-lo a qualquer custo, considerando que é verdade tudo o que dá razão ao partido defendido e que é falso tudo o que se opõe a esse partido, sem tomar cuidado com as fontes dessas verdades. É o tipo de gente divulga fake news nas redes sociais como endosso das suas posições partidárias e, em nome da postura belicosa, acreditam que se justificam todos os atos de má-fé intelectual contra os adversários.  Exemplos à esquerda e à direita são numerosos.

7

A douta ignorância  dos que têm consciência de seus próprios limites face à imensidão do desconhecido e à dificuldade de encontrar a verdade.  Trata-se de uma ignorância que deve ser treinada pela uma rigorosa profilaxia intelectual, que foi recomendada por muitos pensadores e  sistematizada pelos céticos desde a Antiguidade.















quarta-feira, 7 de março de 2018

Dicionário aleatório #2







Erudição, instrução, cultura


 Parte 1
Foi em 2009, mas poderia ter sido ontem.

Um aluno que tinha aulas particulares de redação precisava escrever uma dissertação sobre o homem e o espaço. Embora eu lecione literatura, ele queria ouvir a minha opinião. Perguntei-lhe qual era a dificuldade.

-  Meu professor particular passou uma coletânea com quatro textos sobre o assunto, mas eu achei que não era suficiente. Busquei na Internet e baixei onze páginas sobre o assunto. Agora não estou conseguindo dar conta porque tenho material demais.

- O que você fez não é certo. No vestibular você não poderá consultar a Internet. Tem que aprender a elaborar a redação com o material oferecido pela proposta.

- É que eu achei que podia aumentar o meu vocabulário com o material que peguei na Internet.

- Deixa eu ver o que você arranjou.

- Olha só, professor. São onze páginas. Mas não consegui ler tudo. Tem aí um material sobre um filósofo que falou do espaço do pensamento. Não entendi direito. Não li o texto todo. Será que posso falar sobre o espaço do pensamento?

Dei uma olhada nas onze páginas impressas. Era um longo artigo universitário sobre Heidegger, cujo nome o aluno não conseguia pronunciar e a quem ele se referia como "esse filósofo aí", talvez fazendo eco ao conceito de "ser-aí", repetido ao longo das folhas cobertas de faixas fluorescentes de marcador de texto.

- Acho melhor você deixar de lado a questão do “espaço de pensamento”. Isso vai te levar muito longe e o texto vai ficar abstrato demais. Por que você não fala do espaço físico, do ambiente em que os seres humanos vivem? Pense nos tipos de relação do ser humano com o espaço - adaptação, transformação, estranhamento, deslocamento etc. Pense em casos concretos que você possa usar como exemplos.

- Professor, isso não seria pegar o tema de maneira literal?

- Qual é o problema nisso?

- O texto não fica muito pobre?

- Na verdade, ficaria mais pertinente ao tema.

- É que eu estou com dificuldade de escrever. Outro dia eu fiz uma redação sobre a mídia e tirei nota 4,0. Eu não entendo, professor. Eu falei sobre um monte de coisas. Falei até do império romano.

- Mas o império romano está muito longe do tema. Se você recuar tanto no tempo, não dá para chegar a conclusão nenhuma. O espaço para escrever a redação é muito curto para tratar de tanta coisa. Quando você chega ao que foi proposto, o assunto fica espremido e sem desenvolvimento adequado.

O aluno agradeceu sinceramente as "dicas" e saiu. Um pequeno grupo havia se formado para ouvir a conversa e pedir auxílio. Uma aluna pediu indicação de livros de filosofia e sociologia, de preferência curtos, para ela ter argumentos quando for escrever dissertações:

- Professor, eu queria algum livro que falasse dos filósofos, inclusive Kant. Parece que é importante falar de Kant nas dissertações. Eu fiz uma redação citando aquele poeta Goethe. O senhor acha bom eu citar esse poeta?


Parte 2
Nada disso é novo, mas revela que, de maneira geral, o retorno da filosofia e da sociologia ao currículo escolar serviu para atiçar a ansiedade daqueles alunos que sentem que nada tem a dizer. Filósofos e sociólogos parecem ser porta-citações; um nome de peso é chancela para qualquer tolice ou sensaboria. O que vale é arranjar uma boa epígrafe: sentenciosa, definitiva, generalizante, solene. Uma joia do Conselheiro Acácio. Uma epígrafe très chic mais alguns "índices" de órgãos internacionais (OMS, UNESCO, Greenpeace): eis o fiat-lux da palavra escrita para esses jovens.

Queria que eles deixassem Kant em paz e não usassem o santo nome de Goethe em vão. Quase tenho saudades rapazes broncos do bairro de periferia em que cresci. O valentão que dava porrada nada sabia de Nietzsche; o pilantrinha não citava Maquiavel; o derrotado não reivindicava Schopenhauer; o bunda-mole não fazia firulas com as palavras "determinismo" e "fatalismo". Ninguém condenava veementemente o "maniqueísmo" em nome do oposto disso; os garanhões comedores não faziam proselitismo do "hedonismo". Ninguém fazia parte dos 75% que, segundo o IBGE, vão se tornar 83% nos próximos quinze anos, se a taxa continuar constante.

A ignorância antiga não foi suprimida por um tsunami de instrução de alto nível, apenas foi camuflada por rituais de name dropping que se aprendem em livrinhos fáceis, em cafés filosóficos, em palestras de divulgadores profissionais. Mas é sobretudo a atividade bem-intencionada e correta dos professores de Humanidades que acaba por fornecer a munição com que se disparam as tolices das quais esses mesmos professores se queixam.

(continua)