Erudição,
instrução, cultura
Parte
1
Foi em 2009, mas poderia ter sido ontem.
Um
aluno que tinha aulas particulares de redação precisava escrever uma
dissertação sobre o homem e o espaço. Embora eu lecione literatura, ele queria ouvir a minha opinião. Perguntei-lhe qual era a
dificuldade.
- Meu
professor particular passou uma coletânea com quatro textos sobre o assunto,
mas eu achei que não era suficiente. Busquei na Internet e baixei onze páginas
sobre o assunto. Agora não estou conseguindo dar conta porque tenho material
demais.
-
O que você fez não é certo. No vestibular você não poderá consultar a Internet.
Tem que aprender a elaborar a redação com o material oferecido pela proposta.
- É que eu achei que podia aumentar o meu vocabulário com o material que peguei na Internet.
-
Deixa eu ver o que você arranjou.
-
Olha só, professor. São onze páginas. Mas não consegui ler tudo. Tem aí um
material sobre um filósofo que falou do espaço do pensamento. Não entendi
direito. Não li o texto todo. Será que posso falar sobre o espaço do
pensamento?
Dei
uma olhada nas onze páginas impressas. Era um longo artigo universitário sobre
Heidegger, cujo nome o aluno não conseguia pronunciar e a quem ele se referia
como "esse filósofo aí", talvez fazendo eco ao conceito
de "ser-aí", repetido ao longo das folhas cobertas de
faixas fluorescentes de marcador de texto.
-
Acho melhor você deixar de lado a questão do “espaço de pensamento”. Isso vai
te levar muito longe e o texto vai ficar abstrato demais. Por que você não fala
do espaço físico, do ambiente em que os seres humanos vivem? Pense nos tipos de
relação do ser humano com o espaço - adaptação, transformação, estranhamento,
deslocamento etc. Pense em casos concretos que você possa usar como exemplos.
-
Professor, isso não seria pegar o tema de maneira literal?
-
Qual é o problema nisso?
-
O texto não fica muito pobre?
-
Na verdade, ficaria mais pertinente ao tema.
-
É que eu estou com dificuldade de escrever. Outro dia eu fiz uma redação sobre
a mídia e tirei nota 4,0. Eu não entendo, professor. Eu falei sobre um monte de
coisas. Falei até do império romano.
-
Mas o império romano está muito longe do tema. Se você recuar tanto no tempo,
não dá para chegar a conclusão nenhuma. O espaço para escrever
a redação é muito curto para tratar de tanta coisa. Quando você chega
ao que foi proposto, o assunto fica espremido e sem desenvolvimento
adequado.
O
aluno agradeceu sinceramente as "dicas" e saiu. Um pequeno grupo
havia se formado para ouvir a conversa e pedir auxílio. Uma aluna pediu
indicação de livros de filosofia e sociologia, de preferência curtos, para ela
ter argumentos quando for escrever dissertações:
-
Professor, eu queria algum livro que falasse dos filósofos, inclusive Kant.
Parece que é importante falar de Kant nas dissertações. Eu fiz uma redação
citando aquele poeta Goethe. O senhor acha bom eu citar esse poeta?
Parte
2
Nada
disso é novo, mas revela que, de maneira geral, o retorno da filosofia e da
sociologia ao currículo escolar serviu para atiçar a ansiedade daqueles alunos
que sentem que nada tem a dizer. Filósofos e sociólogos parecem ser
porta-citações; um nome de peso é chancela para qualquer tolice ou sensaboria.
O que vale é arranjar uma boa epígrafe: sentenciosa, definitiva, generalizante,
solene. Uma joia do Conselheiro Acácio. Uma epígrafe très
chic mais alguns "índices" de órgãos internacionais (OMS, UNESCO,
Greenpeace): eis o fiat-lux da palavra escrita para esses jovens.
Queria
que eles deixassem Kant em paz e não usassem o santo nome de Goethe em vão.
Quase tenho saudades rapazes broncos do bairro de periferia em que cresci. O
valentão que dava porrada nada sabia de Nietzsche; o pilantrinha não citava
Maquiavel; o derrotado não reivindicava Schopenhauer; o bunda-mole não fazia
firulas com as palavras "determinismo" e "fatalismo". Ninguém condenava
veementemente o "maniqueísmo" em nome do oposto disso; os garanhões comedores
não faziam proselitismo do "hedonismo". Ninguém fazia parte dos 75% que,
segundo o IBGE, vão se tornar 83% nos próximos quinze anos, se a taxa continuar
constante.
A
ignorância antiga não foi suprimida por um tsunami de instrução de alto nível, apenas foi camuflada por rituais de name dropping que se aprendem em livrinhos fáceis, em cafés filosóficos, em palestras de divulgadores profissionais. Mas é sobretudo a atividade bem-intencionada e correta dos professores de Humanidades que acaba por fornecer a munição com que se disparam as tolices das quais esses mesmos professores se queixam.
(continua)
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