quarta-feira, 7 de março de 2018

Dicionário aleatório #2







Erudição, instrução, cultura


 Parte 1
Foi em 2009, mas poderia ter sido ontem.

Um aluno que tinha aulas particulares de redação precisava escrever uma dissertação sobre o homem e o espaço. Embora eu lecione literatura, ele queria ouvir a minha opinião. Perguntei-lhe qual era a dificuldade.

-  Meu professor particular passou uma coletânea com quatro textos sobre o assunto, mas eu achei que não era suficiente. Busquei na Internet e baixei onze páginas sobre o assunto. Agora não estou conseguindo dar conta porque tenho material demais.

- O que você fez não é certo. No vestibular você não poderá consultar a Internet. Tem que aprender a elaborar a redação com o material oferecido pela proposta.

- É que eu achei que podia aumentar o meu vocabulário com o material que peguei na Internet.

- Deixa eu ver o que você arranjou.

- Olha só, professor. São onze páginas. Mas não consegui ler tudo. Tem aí um material sobre um filósofo que falou do espaço do pensamento. Não entendi direito. Não li o texto todo. Será que posso falar sobre o espaço do pensamento?

Dei uma olhada nas onze páginas impressas. Era um longo artigo universitário sobre Heidegger, cujo nome o aluno não conseguia pronunciar e a quem ele se referia como "esse filósofo aí", talvez fazendo eco ao conceito de "ser-aí", repetido ao longo das folhas cobertas de faixas fluorescentes de marcador de texto.

- Acho melhor você deixar de lado a questão do “espaço de pensamento”. Isso vai te levar muito longe e o texto vai ficar abstrato demais. Por que você não fala do espaço físico, do ambiente em que os seres humanos vivem? Pense nos tipos de relação do ser humano com o espaço - adaptação, transformação, estranhamento, deslocamento etc. Pense em casos concretos que você possa usar como exemplos.

- Professor, isso não seria pegar o tema de maneira literal?

- Qual é o problema nisso?

- O texto não fica muito pobre?

- Na verdade, ficaria mais pertinente ao tema.

- É que eu estou com dificuldade de escrever. Outro dia eu fiz uma redação sobre a mídia e tirei nota 4,0. Eu não entendo, professor. Eu falei sobre um monte de coisas. Falei até do império romano.

- Mas o império romano está muito longe do tema. Se você recuar tanto no tempo, não dá para chegar a conclusão nenhuma. O espaço para escrever a redação é muito curto para tratar de tanta coisa. Quando você chega ao que foi proposto, o assunto fica espremido e sem desenvolvimento adequado.

O aluno agradeceu sinceramente as "dicas" e saiu. Um pequeno grupo havia se formado para ouvir a conversa e pedir auxílio. Uma aluna pediu indicação de livros de filosofia e sociologia, de preferência curtos, para ela ter argumentos quando for escrever dissertações:

- Professor, eu queria algum livro que falasse dos filósofos, inclusive Kant. Parece que é importante falar de Kant nas dissertações. Eu fiz uma redação citando aquele poeta Goethe. O senhor acha bom eu citar esse poeta?


Parte 2
Nada disso é novo, mas revela que, de maneira geral, o retorno da filosofia e da sociologia ao currículo escolar serviu para atiçar a ansiedade daqueles alunos que sentem que nada tem a dizer. Filósofos e sociólogos parecem ser porta-citações; um nome de peso é chancela para qualquer tolice ou sensaboria. O que vale é arranjar uma boa epígrafe: sentenciosa, definitiva, generalizante, solene. Uma joia do Conselheiro Acácio. Uma epígrafe très chic mais alguns "índices" de órgãos internacionais (OMS, UNESCO, Greenpeace): eis o fiat-lux da palavra escrita para esses jovens.

Queria que eles deixassem Kant em paz e não usassem o santo nome de Goethe em vão. Quase tenho saudades rapazes broncos do bairro de periferia em que cresci. O valentão que dava porrada nada sabia de Nietzsche; o pilantrinha não citava Maquiavel; o derrotado não reivindicava Schopenhauer; o bunda-mole não fazia firulas com as palavras "determinismo" e "fatalismo". Ninguém condenava veementemente o "maniqueísmo" em nome do oposto disso; os garanhões comedores não faziam proselitismo do "hedonismo". Ninguém fazia parte dos 75% que, segundo o IBGE, vão se tornar 83% nos próximos quinze anos, se a taxa continuar constante.

A ignorância antiga não foi suprimida por um tsunami de instrução de alto nível, apenas foi camuflada por rituais de name dropping que se aprendem em livrinhos fáceis, em cafés filosóficos, em palestras de divulgadores profissionais. Mas é sobretudo a atividade bem-intencionada e correta dos professores de Humanidades que acaba por fornecer a munição com que se disparam as tolices das quais esses mesmos professores se queixam.

(continua)








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