Combate à Ignorância
Nem todos têm o ócio e o vagar necessários para colocar em prática
a profilaxia que conduz à douta ignorância. Essa tarefa nem mesmo
faz sentido para as pessoas engajadas nos seus afazeres, nas suas crenças e nos
seus hábitos. Por isso, nem todos podem ser filósofos.
O exercício da filosofia, até para os filósofos
mais aferrados à imanência do chão e à concretude, é uma ascese
desmundanizadora. Implica afastamento, estranhamento, deslocamento, reversão do
olhar, suspensão da tese do mundo, dúvida metódica, crítica, angústia, sképsis.
Onde alguns veem vultos inquietantes, o filósofo pergunta: se pudermos nos
afastar um pouco para olhar esses vultos a partir de outro lugar,
não é possível que eles se revelem apenas sombras projetadas por algo bem
diferente do que imaginamos? Se pudermos levar adiante nosso estranhamento
diante do mundo, não acabaremos por ver que esses vultos obscuros invocados sob
o nome de Deus, História, Mercado e Sociedade são apenas sombras ou projeções
que merecem ser investigadas, mesmo que, ao final, só tenhamos em mãos um
punhado de hipóteses incertas? Mas é nisso que está a aposta do filósofo:
arriscar a certeza da ilusão para ganhar a incerteza da sabedoria.
A beleza das grandes filosofias está em serem
interpretações que deslocam as perspectivas, revelando que os fantasmas que
assombram o discurso são apenas sombras. A tarefa da filosofia é interpretar o
mundo para libertar-nos dos erros antigos, já cristalizados em hábitos
inconscientes e vícios de pensamentos. Esse é o poder próprio da filosofia, embora pareça pouco ou nada para os que estão engajados na vida do
trabalho, dos negócios, da política ou da revolução, como o jovem Marx, que queria que a
filosofia transformasse o mundo ao invés de apenas interpretá-lo. Tal ardor
revolucionário era sustentado pelo desejo apaixonado de alcançar um estado de
transparência racional, livre de ruído, mistificação ou dominação, em que o
exercício da filosofia se tornasse inútil no plano de uma vida social
emancipada. Contudo, essa emancipação ainda não veio e não podemos adiar a
tarefa urgente de interpretação do mundo. Em lugar de uma transparência
racional completa, eu proponho o princípio da conservação da falibilidade do
conhecimento humano: não saltaremos do erro para a verdade, mas podemos sair dos
erros antigos em direção a erros mais interessantes, mais fecundos, mais
belos. Erros melhores, erros dos quais temos ciência e consciência.
Assim é que alcançamos a ignorância douta, a maior forma de
combate à ignorância ignorante em todas as suas variedades.
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