quarta-feira, 21 de março de 2018

Dicionário aleatório #4










Combate à Ignorância



Nem todos têm o ócio e o vagar necessários para colocar em prática a profilaxia que conduz à douta ignorância. Essa tarefa nem mesmo faz sentido para as pessoas engajadas nos seus afazeres, nas suas crenças e nos seus hábitos. Por isso, nem todos podem ser filósofos.

O exercício da filosofia, até para os filósofos mais aferrados à imanência do chão e à concretude, é uma ascese desmundanizadora. Implica afastamento, estranhamento, deslocamento, reversão do olhar, suspensão da tese do mundo, dúvida metódica, crítica, angústia, sképsis. Onde alguns veem vultos inquietantes, o filósofo pergunta: se pudermos nos afastar um pouco para olhar esses vultos a partir de outro lugar, não é possível que eles se revelem apenas sombras projetadas por algo bem diferente do que imaginamos? Se pudermos levar adiante nosso estranhamento diante do mundo, não acabaremos por ver que esses vultos obscuros invocados sob o nome de Deus, História, Mercado e Sociedade são apenas sombras ou projeções que merecem ser investigadas, mesmo que, ao final, só tenhamos em mãos um punhado de hipóteses incertas? Mas é nisso que está a aposta do filósofo: arriscar a certeza da ilusão  para ganhar a incerteza da sabedoria. 

A beleza das grandes filosofias está em serem interpretações que deslocam as perspectivas, revelando que os fantasmas que assombram o discurso são apenas sombras. A tarefa da filosofia é interpretar o mundo para libertar-nos dos erros antigos, já cristalizados em hábitos inconscientes e vícios de pensamentos. Esse é o poder próprio da filosofia, embora pareça pouco ou nada para os que estão engajados na vida do trabalho, dos negócios, da política ou da revolução, como o jovem Marx, que queria que a filosofia transformasse o mundo ao invés de apenas interpretá-lo. Tal ardor revolucionário era sustentado pelo desejo apaixonado de alcançar um estado de transparência racional, livre de ruído, mistificação ou dominação, em que o exercício da filosofia se tornasse inútil no plano de uma vida social emancipada. Contudo, essa emancipação ainda não veio e não podemos adiar a tarefa urgente de interpretação do mundo. Em lugar de uma transparência racional completa, eu proponho o princípio da conservação da falibilidade do conhecimento humano: não saltaremos do erro para a verdade, mas podemos sair dos erros antigos em direção a erros mais interessantes, mais fecundos, mais belos.  Erros melhores, erros dos quais temos ciência e consciência. Assim é que alcançamos a ignorância douta, a maior forma de combate à ignorância ignorante em todas as suas variedades.

Contudo, nem todos podem ser filósofos, nem todos têm o ócio e o vagar para isso. De que modo combater, então, as formas de ignorância ignorante que mencionei na semana passada? 




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