quarta-feira, 25 de abril de 2018

Dicionário aleatório #9







Verdade e Sentido


Até aqui tenho escrito sobre as pretensões de conhecimento e a profilaxia necessária para evitar a bobagem desbragada. Indiquei que a preguiça (associada à pressa e à economia de esforço) e o orgulho (associado à autossuficiência e à certeza dogmática) levam à diversas formas de ignorância, que consistem grosso modo em tomar como verdadeiro o que é falso, em julgar indubitáveis as declarações mais duvidosas e incertas.

Há, porém, um campo de atividade e pensamento em que a questão da verdade e da certeza não se coloca. Diferentemente das teorias científicas ou das opiniões, as obras de arte não são verdadeiras ou falsas. Um poema, uma sinfonia ou uma pintura não podem ser refutadas por argumentos céticos. As alegações de verdade e de fidelidade à realidade feitas pelos artistas não podem ser tomadas pelo seu valor de face; elas devem antes ser subsumidas às estruturas de produção de sentido inerentes à atividade artística, como os procedimentos estilísticos. A mímese artística do real é  diferente da objetividade da teoria, pois não diz respeito à verdade, mas ao sentido.

O sentido, isto é, o feixe de significações, não é algo preexistente que se descobre por investigação. É algo que se constrói segundo regras de convenção ou definidas pelo arbítrio do artista. Descobrir a verdade é o objetivo do conhecimento. Elucidar o sentido é o objetivo da interpretação. O campo do sentido e da interpretação é imenso. Vai além das artes, abrange toda a esfera ritual e religiosa, o âmbito antropológico da cultura e, a meu ver, alcança toda a atividade especulativa dos filósofos. 

O que proponho é que o campo da produção de sentido produz as suas próprias formas de bobagem e de ignorância. Parece-me que isso pode acontecer de duas maneiras. A primeira consiste em confundir sentido e verdade, atribuindo valor de verdade ao que é simplesmente uma interpretação interessante, sutil ou sedutora. A segunda consiste na interpretação que falha por carência de entendimento ou por falta de respeito aos limites da boa interpretação.














quarta-feira, 18 de abril de 2018

Dicionário aleatório #8









Máquina do mundo

Se os deuses me oferecessem contemplar a máquina do mundo, eu daria uma gargalhada homérica. Desconfio dos deuses, tanto quanto dos gregos, quando aparecem com presentes e sempre me pareceu que os avistamentos da máquina do mundo não diferem muito das alucinações do presidente Schreber. Ao invés de uma realidade toda movida a partir do seu cerne, ao invés de um motor primeiro universal, ao invés de uma totalidade que emerge pronta a partir do Absoluto, eu me contento com o conhecimento possível, parco e precário como uma trilha de migalhas na mata.

Somente os metafísicos mais ousados arriscam que o mundo seja uma máquina bem azeitada e a realidade, a solução última do puzzle. Admiro muito a ousadia dos metafísicos, mas tenho para mim que o mundo e o real são a confusão, o misto, o tudo ao mesmo tempo, sem diagrama nem centro reconhecível, bruto e vário, emaranhado e cheio de pontas. O que resiste ao nosso esforço de investigação. O que nos pega de surpresa, refuta nossas hipóteses e desengana nossas ilusões. A falha que ultrapassa a margem de erro prevista. 

Incertos quanto à essência, à origem e ao destino dos seres, podemos apenas circum-navegar as coisas, alterando os pontos de vista, fazendo medições por paralaxe, corrigindo as estimativas prévias. O método de conhecimento consiste na multiplicação de perspectivas, com alguma esperança de que a rotação em torno do objeto venha a ser aproximação assintótica. 

As tarefas do pensamento são bem modestas: traçar mapas, estabelecer relações, enumerar impasses, medir graus de relevância, classificar os objetos em famílias, formular tábuas de categorias. No entanto, esse percurso é guiado por uma imensa ambição de totalização que deve permanecer como ponto de fuga no horizonte. 

Dado que não podemos desvendar a mola íntima da máquina do mundo, tampouco mostrá-la em sua inteireza de coisa-em-si, temos que humildemente reconhecer que o pensamento não se apoia somente na potência da dedução rigorosa. É que, destituídos de certezas, os objetos nos aparecem inseparáveis da força do verbo que os decifraDevido à condição frágil e humana do nosso conhecimento, a investigação rigorosa não pode prescindir da exposição persuasiva.  A lógica não nos basta e carecemos de poesia e retórica. Como sabem os apaixonados, o amor ganha a forma das palavras que tentam defini-lo, enquanto a coisa-em-si se agita, inominável e imprevisível. Com as palavras dos filósofos não é diferente.
















quarta-feira, 11 de abril de 2018

Dicionário aleatório #7








Futuro

Lidamos bem com o que desconhecemos de nosso passado. Quase preferimos esquecer o que sabemos dele. Cheios de alegria negligente e alívio, deixamos que partes cada vez maiores do que foi tombem no olvido. A memória é cansativa. Exige determinação férrea, documentos, arquivos e frequentação do passado. Tal teimosia só se mantém pelo mais profundo ressentimento e melancolia. Menos custoso é apegar-se à leve espuma que ficou dos dias pretéritos: uma tarde bonita, um passeio, um brinquedo, um dar-se as mãos. Uma ignorância suave e benévola. O opiáceo da alma.

Lidamos bem com o nosso desconhecimento de tudo o que nos cerca no presente. Quem poderia, afinal, dar conta do mundo? Por que deveríamos ser oniscientes? O presente não exige mais do que estarmos aqui e acolá, lançados ao mundo.  No presente, basta que cuidemos de nosso jardim e que nos seja permitido dar uma espiadela ocasional no jardim alheio. Inveja e desprezo são pecadilhos perdoáveis e querer um pouco de conforto e diversão não é pedir demais. 

O futuro, porém, é a nossa ignorância mais dolorosa. Estamos condenados ao desconhecimento das condições do amanhã e das consequências vindouras de nossas ações. O futuro é um caos de possibilidades, ao qual procuramos dar forma pelo esforço presente de transformar o mundo numa certa direção. Todavia, o engajamento – por mais que se queira iluminado pelo conhecimento das condições presentes ou pela memória rigorosa das condições passadas - nunca é independente das nossas expectativas, nutridas pelo medo ou pela esperança. Para esconjurar a obscuridade do futuro, carregada do fardo de nossos temores e aspirações, a imaginação invoca as rezas, os palpites, as conjeturas, as hipóteses, as profecias, as previsões do tempo, os pareceres dos experts, os modelos matemáticos, as teorias sobre o sentido da História: toda a gama de racionalizações do que não poder ser legitimamente conhecido. 

Todas essas ciências ignorantes são mais atraentes do que a ignorância douta. É que a ignorância com foro de saber é altiva, loquaz e se presta ao comércio de opiniões, que é uma das delícias da vida social, ao passo que a douta ignorância padece de laconismo e de incerteza. Para escapar à tolice e à impostura congeniais às ciências ignorantes, seria preciso aderir a uma profilaxia muito mais profunda e muito mais enérgica do que as providências simples para não dizer bobagem. Seria preciso ir mais longe e extirpar o medo e a esperança. Seria preciso levar a sério Sêneca e Spinoza. Mas quem quer levantar a cabeça do travesseiro? 










quarta-feira, 4 de abril de 2018

Dicionário aleatório #6







Patologia da ignorância


Não falo da preguiça que é o justo desejo de estar livre das urgências que nos avassalam, mas da outra: a inércia de quem se encolhe diante das tarefas difíceis para fugir ao esforço prolongado. O preguiçoso duvida que tais tarefas sejam necessárias ou que a via seja tão árdua. Tudo isso lhe parece preciosismos e rodeios de quem não chega logo ao ponto. Então o preguiçoso assume o seu disfarce favorito, o de pessoa prática que exige soluções rápidas e simples. Ele proclama que não há tempo a perder. Ele está decidido a pegar o atalho mais próximo, a dar ouvido ao primeiro boato, a colocar em prática um esquema infalível, a acreditar na “intuição”, na sorte ou no pensamento positivo. O preguiçoso é avesso à profilaxia intelectual que sustenta a legitimidade do conhecimento. O que marca o conhecimento legítimo não é a descoberta da verdade, mas tão somente o rigor na aplicação dos métodos e a possibilidade de escrutínio e revisão dos resultados obtidos. Por limitada que seja, tal profilaxia demanda virtudes beneditinas de dedicação e paciência, as quais repelem a ilusão de onisciência e onipotência própria dos preguiçosos. Pois os preguiçosos são orgulhosos. Eles estão convencidos de suas próprias capacidades e de seus próprios conhecimentos. Pascal dizia que a preguiça e o orgulho são as duas fontes do pecado. O pecado aqui é a bobagem e a estupidez, seja na forma de discurso leviano, de tolice pretensiosa, de impostura intelectual ou de ignorância militante.