quarta-feira, 18 de abril de 2018

Dicionário aleatório #8









Máquina do mundo

Se os deuses me oferecessem contemplar a máquina do mundo, eu daria uma gargalhada homérica. Desconfio dos deuses, tanto quanto dos gregos, quando aparecem com presentes e sempre me pareceu que os avistamentos da máquina do mundo não diferem muito das alucinações do presidente Schreber. Ao invés de uma realidade toda movida a partir do seu cerne, ao invés de um motor primeiro universal, ao invés de uma totalidade que emerge pronta a partir do Absoluto, eu me contento com o conhecimento possível, parco e precário como uma trilha de migalhas na mata.

Somente os metafísicos mais ousados arriscam que o mundo seja uma máquina bem azeitada e a realidade, a solução última do puzzle. Admiro muito a ousadia dos metafísicos, mas tenho para mim que o mundo e o real são a confusão, o misto, o tudo ao mesmo tempo, sem diagrama nem centro reconhecível, bruto e vário, emaranhado e cheio de pontas. O que resiste ao nosso esforço de investigação. O que nos pega de surpresa, refuta nossas hipóteses e desengana nossas ilusões. A falha que ultrapassa a margem de erro prevista. 

Incertos quanto à essência, à origem e ao destino dos seres, podemos apenas circum-navegar as coisas, alterando os pontos de vista, fazendo medições por paralaxe, corrigindo as estimativas prévias. O método de conhecimento consiste na multiplicação de perspectivas, com alguma esperança de que a rotação em torno do objeto venha a ser aproximação assintótica. 

As tarefas do pensamento são bem modestas: traçar mapas, estabelecer relações, enumerar impasses, medir graus de relevância, classificar os objetos em famílias, formular tábuas de categorias. No entanto, esse percurso é guiado por uma imensa ambição de totalização que deve permanecer como ponto de fuga no horizonte. 

Dado que não podemos desvendar a mola íntima da máquina do mundo, tampouco mostrá-la em sua inteireza de coisa-em-si, temos que humildemente reconhecer que o pensamento não se apoia somente na potência da dedução rigorosa. É que, destituídos de certezas, os objetos nos aparecem inseparáveis da força do verbo que os decifraDevido à condição frágil e humana do nosso conhecimento, a investigação rigorosa não pode prescindir da exposição persuasiva.  A lógica não nos basta e carecemos de poesia e retórica. Como sabem os apaixonados, o amor ganha a forma das palavras que tentam defini-lo, enquanto a coisa-em-si se agita, inominável e imprevisível. Com as palavras dos filósofos não é diferente.
















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