Máquina do mundo
Se os deuses me oferecessem contemplar a
máquina do mundo, eu daria uma gargalhada homérica. Desconfio dos deuses, tanto
quanto dos gregos, quando aparecem com presentes e sempre me pareceu que os avistamentos da máquina do mundo não diferem muito das alucinações do presidente Schreber. Ao
invés de uma realidade toda movida a partir do seu cerne, ao invés de um motor
primeiro universal, ao invés de uma totalidade que emerge pronta a partir do
Absoluto, eu me contento com o conhecimento possível, parco e precário como uma
trilha de migalhas na mata.
Somente os
metafísicos mais ousados arriscam que o mundo seja uma máquina bem azeitada e a realidade, a
solução última do puzzle. Admiro muito a ousadia dos metafísicos, mas tenho
para mim que o mundo e o real são a confusão, o misto, o tudo ao mesmo tempo, sem diagrama nem centro reconhecível, bruto e vário, emaranhado e cheio de pontas. O que
resiste ao nosso esforço de investigação. O que nos pega de surpresa, refuta
nossas hipóteses e desengana nossas ilusões. A falha que ultrapassa a margem
de erro prevista.
Incertos quanto à essência, à origem e
ao destino dos seres, podemos apenas circum-navegar as coisas, alterando os
pontos de vista, fazendo medições por paralaxe, corrigindo as estimativas
prévias. O método de conhecimento consiste na multiplicação de perspectivas,
com alguma esperança de que a rotação em torno do objeto venha a ser aproximação
assintótica.
As tarefas do pensamento são bem modestas: traçar mapas,
estabelecer relações, enumerar impasses, medir graus de relevância, classificar
os objetos em famílias, formular tábuas de categorias. No entanto, esse
percurso é guiado por uma imensa ambição de totalização que deve permanecer
como ponto de fuga no horizonte.
Dado que não podemos desvendar a mola
íntima da máquina do mundo, tampouco mostrá-la em sua inteireza de coisa-em-si,
temos que humildemente reconhecer que o pensamento não se apoia
somente na potência da dedução rigorosa. É que, destituídos de certezas, os objetos nos aparecem inseparáveis da força do verbo que os decifra. Devido à condição frágil e humana do nosso conhecimento, a investigação rigorosa não pode prescindir da exposição
persuasiva. A lógica não nos basta e carecemos de poesia e retórica. Como sabem os apaixonados, o
amor ganha a forma das palavras que tentam defini-lo, enquanto a coisa-em-si se
agita, inominável e imprevisível. Com as palavras dos filósofos não é
diferente.
lindo
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