Caminhão, caminhoneiros
Um dos meus tios foi caminhoneiro na década de 1970. Ele conduzia
um caminhão do frigorífico Chapecó, que fazia a distribuição desde Santa Catarina até o eixo Rio-São Paulo. Naquelas priscas eras anteriores ao monitoramento
por GPS e em plena crise do petróleo de 73, um bom caminhoneiro conhecia
todas os atalhos para desviar dos postos de cobrança de pedágio, embolsar o dinheirinho e assim engordar um pouco o valor final pago pelas empresas. Quase
três décadas depois, meu irmão também trabalhou como caminhoneiro transportando
grãos para o congestionado porto de Santos, no auge de preço das commodities que
tanto favoreceu o governo de Lula.
Meu irmão sempre foi aficionado por caminhões.
Ainda meninos, nós nos divertíamos na pick-up Ford 1950 da
oficina mecânica que meu pai teve no fundo da Zona Leste de São Paulo. No
desventurado ano em que o Brasil foi “campeão moral” na Copa da Argentina,
ficamos siderados por mais de uma hora diante da televisão assistindo ao Caso
Especial da TV Globo em que Antonio Fagundes interpretava o
caminhoneiro protagonista e narrador na adaptação de Jorge, um
Brasileiro, romance que Oswaldo França Júnior publicou em 1967, ano do meu
nascimento. Com o mesmo entusiasmo, víamos todas as semanas a série Carga
Pesada, em que Fagundes e Stenio Garcia interpretavam Pedro e Bino, dois
caminhoneiros pícaros em suas andanças pelos Brasil. Em suma: “frete”,
“boleia”, “três eixos” eram palavras que ouvi desde pequeno mas, quando me tornei professor, elas ficaram
distantes. A última vez que subi à boleia foi no caminhão que guinchava o meu
carro por causa de uma pane elétrica. Meu pai, que estava comigo, perguntava,
com ar divertido, se eu já tinha feito uma viagem assim antes...
Há uma semana, quando os caminhoneiros começaram
uma paralisação em protesto contra o elevado preço do diesel, a crise política
e institucional que o Brasil vive desde 2016 agravou-se consideravelmente. A
julgar pelo desencontrado nas análises da situação, os jornalistas e blogueiros
também estão desorientados. O que está acontecendo? Um lockout das
empresas de transporte e logística para afastar o atual presidente da
Petrobrás, Pedro Parente? Uma manobra do setor do agronegócio, prejudicado com
a alta do custo dos transportes? Uma conjuntura geopolítica desfavorável em que
o Brasil é um peão na pesada disputa econômica entre os Estados Unidos e a
China? A consequência lógica de falhas estruturais e decisões políticas
equivocadas acumuladas desde os anos de Lula à frente da Presidência? O
resultado das políticas fiscais adotadas por Dilma Rousseff desde seu primeiro
mandato? O efeito da incompetência de figuras como Pedro Parente, próximo do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e tachado de “ministro do
apagão”? Ou precisamente o efeito da competência com que figuras como
Pedro Parente servem aos interesses do mercado internacional e dos stakeholders da
Petrobrás e, talvez da Bunge, grande corporação do agronegócio?
A falta de combustível e de gêneros nos mercados
provocada pela paralisação dos caminhoneiros deu livre vazão às manifestações de descontentamento contra o governo de Michel Temer, tanto por parte dos que apoiaram
Dilma Rousseff durante o polêmico processo de impeachment, quanto por parte dos que achavam que um governo liderado por figuras carimbadas do PMDB, como Temer, Eliseu Padilha e Romero Jucá, pudesse ter algo a ver com honestidade,
eficiência e diálogo com a sociedade.
Agora ouve-se a lamúria de muitas boas almas órfãs de
projeto a exigir que o governo brasileiro defenda a soberania nacional com
ações politicamente orientadas para reduzir o preço dos combustíveis, mas sem
abrir mão da inserção do mercado internacional e das práticas de gerenciamento ensinadas pelas boas escolas norte-americanas... Diante da
fragilidade desses centristas confusos, é fácil entender a força
crescente do grupo que clama pela ordem que poderia ser trazida por uma
intervenção das Forças Armadas.
Como cidadão brasileiro, acompanho com aflição a
situação em que o ressentimento lowbrow, potencializado pelas
várias formas de ignorância e de estupidez crônica, ameaça mergulhar o Brasil
num caos social à maneira da Venezuela ou num arremedo de democracia à maneira
da Itália. Porém, como estudioso da ignorância e da estupidez,
confesso que me rejubilo com a farta documentação que tenho reunido nos últimos
anos.
PS – Eu deveria estar no trabalho hoje, mas a
incerteza provocada pela falta de combustível levou muitas escolas a
suspenderem as aulas nesta segunda-feira.