domingo, 30 de setembro de 2012

Três pensamentos no café da manhã




Carta a Marcelo Contar Adolfi  



Marcelo,


Nós nos conhecemos há pouco tempo, mas tomei a liberdade de aborrecê-lo um tantinho e voltar ao assunto de que falávamos ontem pela manhã. Você disse que seria mais fácil ajustar o calibre das aulas, agora que conhece melhor o perfil das turmas e, assim, não iria mais cometer certos erros de comunicação. Eu estava talhando um pedaço de mamão e sorri das suas expectativas. Espero que você perdoe o sorriso: não era careta de pouco caso. Por formação e por inclinação, sou cético e desconfio das tentativas de administrar o futuro. Entenda bem, eu não duvido da sua capacidade de corrigir os erros que você acredita ter cometido, nem duvido da lucidez de sua preocupação com os alunos. Se estou escrevendo esta carta é justamente porque respeito muito a sua inteligência, bem como a justeza e sensatez de suas opiniões. Minha intenção é apenas a de expor minha perspectiva sobre essa questão delicada que é a comunicação entre o professor e os alunos. 

A pedagogia tem um termo para situar o problema de que falamos, que é “transposição didática”. Felizmente o conceito tem um lastro sociológico sério no trabalho de Michel Verret em Le Temps des Études (1975).  Mais tarde foi retomado no campo da didática da matemática por Yves Chevallard em La Transposition Didatique. Du savoir savant au savoir enseigné  (1985). Desde então tornou-se expressão corrente no mundo francófono, de onde foi importado pelos pedagogos brasileiros que consomem as novidades francesas sobre educação.

Verret estudou a maneira como as teorias desenvolvidas pelos especialistas são transformadas naquilo que se ensina em sala de aula. Tomando como exemplo a disciplina que você leciona,  numa extremidade do processo temos a diversidade conflitante de interpretações propostas pelos historiadores profissionais;  de outro lado, temos o currículo escolar de história, dividido em assuntos que devem ser ensinados dentro de um número predeterminado de horas-aula.  Portanto, numa ponta, há a massa contínua e interrelacionada de saberes da história (que se ligam à geografia, à sociologia, à economia, à filosofia etc.) e, na outra ponta, os pequenos pacotes semanais a serem ministrados aos alunos, levando em conta a sua faixa etária, sua formação cultural e seu nível de desenvolvimento (e também os recursos disponíveis e os  humores do momento, deles e nossos...).

O que Michel Verret descreveu foi precisamente esse processo de compartimentação, fragmentação e simplificação pelo qual – necessariamente – deve passar o saber existente quando é ensinado. Essas etapas são a “dessincretização” (que separa o saber erudito em disciplinas: história, geografia, sociologia, filosofia etc); a “despersonalização” (que apresenta o conhecimento separado dos indivíduos ou grupos que o produziram, de modo que a teoria proposta por um certo historiador passa a ser ensinada simplesmente como a verdade aceita sobre aquele período histórico); a “programação” (que estabelece as balizas e etapas pela qual o conhecimento vai ser ensinado – o currículo e o número de aulas necessário para cumpri-lo).

O que me interessa é o momento em que esse saber já reduzido a unidades curriculares compactas chega ao professor que vai ensiná-lo a turmas necessariamente heterogêneas. Todo professor, especialmente  os que tem inclinação para a pesquisa e gosto pelo saber, sente uma forte contradição entre o saber erudito e transdisciplinar formulado por gente como Braudel ou Antonio Cândido e as pílulas mínimas ministradas em sala de aula, ainda mais quando percebemos que as pílulas devem ser moídas para serem servidas a algumas turmas. Parece que com isso, mais do que as pílulas, é a nossa dignidade profissional e intelectual que se desintegra. Fazemos o serviço com má consciência e temos que inventar escusas para conseguirmos dormir em paz. É claro que há professores que não se incomodam, mas todo ofício tem seus cínicos e seus sonâmbulos. 

Como ia dizendo, o que me interessa na questão da transposição didática é o elo final: as escolhas que o professor precisa fazer para garantir que os pacotes de conhecimento, ou as pílulas, se transformem em conhecimento na cabeça de um estudante. É este problema que você levantou quando eu já terminara o pedaço de mamão e passara a remover as sementes de uma fatia de melancia. Você lembrou da dificuldade de usar um vocabulário que pode enriquecer o léxico tão ralo dos adolescentes, correndo o risco de não ser entendido por eles.  Acredito que esse dilema só pode ser resolvido caso a caso, no pacto que se constitui entre o professor e a turma ao longo do ano. 

Nós trabalhamos com uma realidade movente. Os alunos mudam durante o ano, mudam de semana a semana. Numa sala de cem alunos, como as do cursinho, temos cem variáveis. Se seguirmos o eixo do tempo, vemos que cada uma dessas variáveis segue uma trajetória mais ou menos inesperada, de modo que é impossível prever como será a aula naquela turma dentro de um mês. Esse pensamento é desesperador para a ilusão de controle que todo professor alimenta (ilusão que é requisito prévio para exercer a nobre atividade docente). 

Pense nas conversas de sala dos professores. É comum avaliarmos as turmas como blocos homogêneos, de acordo com seus níveis de empatia e receptividade ao conhecimento. Dizemos que a turma X é antipática e que a turma Y é muito perguntadora,  e enunciamos esses juízos com a mesma tranquilidade inconsciente dos ditadores que proclamam que o povo quer isso ou aquilo. Acreditamos entender as turmas como Hitler ou Stálin acreditavam conhecer os povos que dominavam. 

Muito mais importante do que essa pseudocompreensão, enunciada em forma de clichês e frases feitas, que vem misturadas  com muito ressentimento contra as condições de trabalho e idealizações fantasiosas sobre o professor como sacerdote, como pai, como psicólogo e até como artista – verdadeiras manifestações das defesas narcísicas que erguemos contra as dificuldades da profissão -, muito mais importante do que nossas ilusões sobre nós mesmos e sobre a massa quase anônima de estudantes que temos à frente é o pacto que assumimos com cada turma desde as primeiras aulas. O pacto pelo qual mostramos que nossa intenção de ensinar é séria, de que é firme nosso propósito de ajudar quem quiser aprender. Esse pacto pode até ser formulado explicitamente, mas tem valor apenas quando é endossado em cada aula por comportamentos claros e coerentes do professor. 

Acho que seria um erro você deixar de usar palavras como “acirramento” ou “colapso” por causa do letramento insuficiente de alguns alunos. É importante insistir. Há um truque simples, que é repetir a palavra acompanhada de dois ou três sinônimos mais conhecidos. Isso deve ser feito não como quem catequisa uma horda bárbara, mas como quem lisonjeia a inteligência sutil do auditório. Deste modo, a palavra mais “difícil” se integra ao vocabulário passivo do estudante. Aprendi isso com meu amigo Antonio Carlos Biasse, professor de História do Brasil que eu admiro muito. Na época em que trabalhávamos juntos, ele gostava de usar expressões como “condição sine qua non”, sempre acompanhadas de perífrases do tipo “as condições necessárias e imprescindíveis”. Em 1998 ou 1999, uma questão da Fuvest perguntava o que era “condição sine qua non”. Todos os alunos do Biasse sabiam a resposta correta e creio até que muitos passaram a usar a expressão.

O professor é uma das últimas barreiras na vida de um adolescente contra a maré montante da ignorância e da burrice deslavada.  As injunções da transposição didática nos impõem lidar com uma versão simplificada e fragmentada do conhecimento, mas – como diria o conselheiro Acácio – as coisas podem ser feita de diferentes maneiras. O feijão-com-arroz pode ser bem preparado e bem servido, ou não. 

Já me estendi demais e repeti muitas obviedades:  é que chover no molhado é parte do ofício até quando um professor conversa com um colega que respeita. Começa como bate-papo e acaba virando aula. 

De volta àquele sorriso de ceticismo de que falei no início, estou convencido de que você não vai repetir os possíveis erros de comunicação ou de transposição didática que aconteceram este ano. Espero que eu também não repita os meus erros, mas uma coisa é querer evitar erros antigos, outra coisa é diminuir a soma total dos erros. Isso não acontece nunca. Há uma espécie de princípio da conservação da falibilidade. Deixamos de errar num ponto e passamos a errar em outro. Continuamos tão imperfeitos quanto antes. Então, não adianta fazer planos napoleônicos para conquistar Moscou. 

Não sei se Tolstói exagerou ficcionalmente a situação, mas lendo Guerra e Paz, eu sempre ria quando o general Kutuzov cochilava naquelas reuniões do alto comando em que oficiais brilhantes e dedicados apresentavam planos infalíveis para impedir uma invasão francesa. Kutuzov estava bem ciente da inutilidade das grandes estratégias (fez falta ao criador da linha Maginot ter lido Tolstói com mais atenção). 

Meu ceticismo me alinha com os teóricos da guerrilha, como T.E. Lawrence no verbete que escreveu para a Enciclopédia Britannica. Várias de suas lições podem ser perfeitamente adaptadas para nosso combate cotidiano: é preciso ter agilidade e usar como trunfo as próprias dificuldades do terreno. Só não acredito que destruir as comunicações seja uma parte válida da operação.

Bom, espero que você aceite esta carta como sinal de que não fiquei chateado por causa da carona que não aconteceu. 

um grande abraço!






domingo, 23 de setembro de 2012

A foto e a cidade





Carta a Daniel Pereira Leite



Daniel,

De todas as formas de produção de imagens, a fotografia e o cinema são as mais sujeitas aos acidentes e às contingências. Mesmo para quem – como eu - nunca saiu do mundinho das câmeras amadoras, há muitos parâmetros a serem controlados: luz, nivelamento, distância, preto e branco ou cor, enquadramento; há muitíssimos outros para o profissional. Tudo isso supondo que já sabemos o que queremos fotografar, que já temos o desenho da foto que queremos, que já nos colocamos em posição para efetuar o click – ou os clicks, porque não existe foto única. O fotógrafo fica como mariposa em volta do objeto, tentando uma união impossível com a luz. 

O disparo da máquina é o início de outro percurso acidentado: o da produção da imagem que os outros vão ver, quando o negativo for revelado ou quando os bits e bytes forem processados em um software de edição. 

A diferença entre o amador e o profissional está na capacidade de lidar com a contingência. O profissional dispõe de capacidade técnica para controlar as variáveis por meio do equipamento adequado e pode, assim, diminuir o papel dos efeitos acidentais no resultado final. Um fotógrafo profissional é alguém que chega muito perto de produzir a foto que imaginou. 

Contudo perde-se algo com isso: é o que diz o pequeno Rousseau que há em mim, ou o potencial ludita em revolta permanente contra a máquina. A fotografia profissional é uma elaboração que dá pouca margem para a surpresa e o acidentado encontro entre o homem da câmera e a coisa vista. A fotografia profissional deixa de reproduzir a situação do encontro, como se o profissional fosse um olho absoluto, que pode apagar a si mesmo da fotografia, ao passo que a própria imperícia ou limitação técnica do amador é a exposição da sua situação de indivíduo sujeito a todos os imprevistos. Ele recolhe as migalhas afortunadas do acaso. Para quem ainda é romântico, há o prazer de saber que a fotografia poderá ser reproduzida inúmeras vezes, mas a situação do encontro foi única e irrepetível. 

Portanto, o que me encanta na fotografia amadora é a marca da mão humana: a relação intrínseca do ser humano com o mundo. Infelizmente, no campo da fotografia de arquitetura e urbanismo, que me interessa muito, é fortíssima a tendência de apagar os traços humanos presentes na obra arquitetônica e isolá-la do ambiente humano que a circunda. O prédio aparece despojado de todos os elementos que causam “ruído” na informação estética: transeuntes, veículos, árvores, fios, condições atmosféricas, sujeira em suspensão no ar. Nesse tipo de fotografia, as construções aparecem num espaço socialmente vazio, cada prédio se comporta como o famoso indivíduo autônomo do liberalismo clássico. O fotógrafo precisa apenas produzir visualmente esta “autonomia” criando um deserto urbanístico em que todas as outras construções e o mundo humano aparecem minimizados ou meramente circunstanciais. O fotógrafo de arquitetura, como se fosse seguidor da escritora ultraindividualista Ayn Rand (Fountainhead), vê no arquiteto o herói visionário que faz do projeto a manifestação do seu poder soberano.

Essa desconsideração pelo coletivo e pelo social é uma doença profissional dos fotógrafos de arquitetura e dos próprios arquitetos, os quais geralmente desprezam as cidades existentes. A ambição arquitetônica é partir da tabula rasa ou, pelo menos, “reinventar” o espaço. Disso vem a beleza quase onírica das fotos que Marcel Gautherot fez durante a construção de Brasília: um imenso tabuleiro vazio em que as estruturas se elevavam como miragens na poeira do cerrado.

A maior lição do materialismo histórico é a de nunca esquecer o processo pelo qual as coisas são produzidas.  A grande arquitetura fotografada por grandes fotógrafos e mostrada para o mundo em grandes revistas depende totalmente do grande capital. A construção de prédios precisa de investimentos maciços, os equipamentos fotográficos precisam ser financiados, as publicações de divulgação de arquitetura tem um custo bem alto. Todo o circuito que vai da aquisição do terreno, a contratação de um escritório de projeto, o trabalho da construtora, o registro fotográfico da obra final e a divulgação pelas revistas especializadas é um circuito irrigado pelo capital. Por isso, a fotografia de arquitetura sofre as injunções do mundo da mercadoria, principalmente pela maneira laudatória e fetichista com que mostra a obra arquitetônica – que por definição é um trabalho coletivo – como produto apenas da mente do arquiteto, como se o projeto tivesse se materializado por si mesmo. A fotografia de arquitetura endossa a utopia capitalista de um mundo de mercadorias em que o trabalho humano desaparece ou é apenas mais um insumo (que eu saiba, nenhum fotógrafo de arquitetura fotografa acidentes de trabalho em obras ou registra a arquitetura das moradias dos empregados na construção).  Os andaimes e o esqueleto do prédio servem apenas para belas composições geométricas e jogos de luz e sombras entrelaçadas.

Do ponto de vista estético, na minha modesta escala de amador bem intencionado, aprendi muita coisa observando essas fotografias que transformam o prédio em maravilha. É difícil negar a beleza e o poder hipnótico dessas fotos. A grande tradição da fotografia arquitetônica modernista, representada por Yukio Futagawa e a revista Global Architecture, exalta um mundo ordenado e purificado como um arranjo de ikebana ou um jardim de pedras Zen.  

Já o pós-modernismo arquitetônico veio acompanhado de uma multiplicação de “efeitos especiais” (eufemismo para as técnicas de re-encatamento manipulatório e fetichista). Os álbuns fotográficos de arquitetura pós-modernista tem alguma coisa de portfolio de top model.  Não se trata apenas de beleza, mas do sex-appeal do prédio. A fotografia arquitetônica modernista oferecia o prédio como escultura; na fotografia pós-modernista, a arquitetura aparece como “nu artístico” com intenções comerciais. Uma pornografia soft de concreto, aço e vidro. É claro que a generalização é injusta, por isso, vou mencionar uma exceção entre outras: Iwan Baan.

Contra essa estética, com a qual tento lutar como amador, eu elejo as fotografias de Atget, cuja qualidade espectral lhe permitia construir, em negativo, imagens de um espaço urbano denso de vida e de concretude histórica; os grandes fotógrafos de rua: Kertész, Doisneau, Brassaï e Cartier-Bresson; e, não menos importante para mim, a fotografia do patrimônio construído, de Cristiano Mascaro.

Passo para as minhas fotos. Os defeitos são todos meus, as possíveis qualidades são todas do feliz - e irrepetível - encontro com certas ruas e construções. 

Bananal 

Bruges
Bruges

Bruges

Diamantina
Diamantina
Angers
Bayeux
Paris
Paris
Paris

Paris
Paris
Paris
Paris
Niterói
Ouro Preto
Ouro Preto
Ouro Preto
Ouro Preto
Porto Alegre
Porto Alegre
Porto Alegre

Porto Alegre

Porto Alegre

Porto Alegre
Rio de Janeiro

Roma

Salvador

Salvador

São Paulo

São Paulo

São Paulo

Verona

Hoje abri solenemente a garrafa de cachaça de Januária. Potabilíssima! Agora falta ver as fotos da viagem off-road até Diamantina. Veja se é possível na próxima sexta-feira.

um grande abraço!





domingo, 16 de setembro de 2012

Dante, raízes e pizzas





Carta a Umberto Chacon Malanga



Umberto,


A situação era de fazer rir: a pizzaria vazia por causa de uma pane elétrica, as luzes intermitentes, a maior parte das mesas na escuridão. Robinson e eu logo nos lembramos do Guido, que tem pavor do escuro. Seria muito bom se a antiga confraria dos “amigos do Nelson” estivesse reunida: teríamos gargalhadas maldosas garantidas até depois da meia-noite ou até o Guido tomar a “saideira” – a última de verdade –, sabe-se lá a que horas, com os garçons impacientes arrumando as mesas.

A confraria antiga se desfez, mas não importa quantos sejam os apóstolos: a ceia continua santa, com a vantagem imensa de que nunca aceitaremos um Judas entre nós. Somos bem mais seletivos do que Jesus. E nosso cardápio é mais variado. As pizzas sempre me trazem alegria; a cerveja, a caipirinha ou o vinho elevam a alma dois palmos acima do corpo. Falo por mim, acredito que também pelo Robinson, porque sei que você prefere ir mansamente de Coca-Cola. Eu, que gosto de um bocado de álcool na corrente sanguínea, só perdoo essa desfeita porque você sempre traz novidades boas dos meninos que estão crescendo, do apartamento que está quase pronto, da pensão que vai aumentar. 

Confesso que admiro muito quem se dispõe a fazer as coisas, embora não goste nem um pouco de palavras como “empreendedorismo” ou “iniciativa”. O trabalho bem executado por mãos experientes, o sentido de que vale a pena fazer para durar, o gosto de ver a obra ganhar forma, o prazer de ir para o próximo projeto, tudo isso constitui, a meu ver, sinais evidentes de maturidade. 

Numa outra carta deste blog, eu tentei mostrar que chegamos à maturidade quando estamos preparados para o fato de que nunca estaremos totalmente preparados. Isso não acontece por alguma culpa ou incapacidade nossa: é que o mundo funciona à revelia de nossos desejos e de nossos projetos. Quando somos jovens, acreditamos que tudo depende de tomar a decisão certa no momento certo: queremos ganhar a partida com xeque-mate no terceiro ou no quarto movimento. Os jovens não se contentam com menos do que vitórias esmagadoras, aliás, altamente improváveis. Chegar à maturidade é saber lidar com a contingência, através da paciência, da astúcia, da busca de caminhos diferentes, sabendo que o resultado da partida é incerto e nunca será plenamente a nosso favor.  

Descartes acreditava que, quando estamos perdidos, o melhor é seguir em linha reta. É sinal de que Descartes nunca ficou perdido e, acostumado com planos cartesianos, não entendia que o caminho depende da topologia do terreno e dos obstáculos variados que vamos encontrar. O grande filósofo e matemático pensava de maneira juvenil...

Ser capaz de encontrar o caminho certo não resulta de uma decisão voluntária.  A vontade (inclusive a força de vontade) é uma faculdade humana superestimada. A possibilidade de realizar algo depende menos da vontade do que da capacidade de lidar com os imprevistos, com os atrasos, com as decepções, com as negações, enfim, com a resistência dos materiais e das pessoas. Ou seja, é escultor não quem tem vontade de sê-lo, mas quem sabe que a dureza da pedra trabalha contra e a favor do processo de esculpir. Para isso, é preciso treino, experiência, paciência e o reconhecimento de que a possibilidade de fracasso está à espreita a cada momento. A mesma coisa acontece com materiais mais flexíveis. Pode perguntar para o Robinson: quantas lâminas um cuteleiro tem que estragar para fazer uma boa faca? Mesmo o mais experiente vidreiro de Murano perde peças por causa de bolhas ou fissuras que surgem no resfriamento do vidro.  Todo artesão ou artista acumula uma série de desastres de oficina, que os clientes e compradores costumam ignorar porque preferem acreditar em objetos que surgem por milagre das mãos de um artífice consumado. E ninguém presta atenção na enorme cesta de lixo com todos os esboços rasurados de cada página de Dom Casmurro

A relação entre o escultor e a pedra, entre o tecelão e os fios, entre o empreendedor e o empreendimento não é a de uma vontade ativa que impõe a forma a um material passivo e inerte. A relação é mais como uma luta amorosa, em que cada lado cede, mas faz suas exigências.  Gilles Deleuze, um filósofo de que gosto muito, chamava este processo de modificação recíproca de “agenciamento”.  Para que haja uma obra realizada é preciso que haja um agenciamento do construtor e das condições de construção. Quando um empreendedor observa um terreno, é o tamanho e o recorte do terreno que sugerem o que poderá ser construído ali. O terreno agenciou o empreendedor, que, por sua vez, emprega sua experiência e seus recursos, para usar as características do terreno da melhor forma possível. Aí o  empreendedor agencia o terreno. 

A obra final não é a que tínhamos projetado em nossa “vontade”, mas sim o resultado de todas as concessões necessárias para vencer a resistência dos materiais e das pessoas. Por isso, toda obra na sua forma final – mesmo a mais perfeita – ainda não é aquela que tínhamos sonhado. Nunca realizamos um sonho, realizamos apenas a própria realidade. Querer realizar sonhos é para os jovens; realizar a realidade é coisa de gente madura. Isso não significa que uma pessoa madura não queira realizar sonhos. O fato é que nunca amadurecemos totalmente. Mesmo o empreendedor mais pragmático continua querendo realizar sonhos quixotescos. 

Os filósofos sabem disso há muito tempo. O ser humano não está todo contido naquilo que faz. O fazer, mesmo o que mais se aproxima da perfeição, nunca esgota as possibilidades humanas. Na verdade, vivemos mais de possibilidades do que de realizações. Somos complacentes com os sonhos, com as nossas próprias ilusões, com os autoenganos e sempre vamos admirar mais Dom Quixote do que Sancho Pança. Daí que as pessoas também sejam julgadas pela qualidade de seus sonhos e não apenas de suas realizações. We are such stuff as dreams are made on, diz Próspero n’A Tempestade, de Shakespeare.

Tudo isso eu devaneava, com a cabeça na lua, enquanto trinchava com a minha Durindana uma forte fatia de pizza napolitana, e pensava naquele outro agenciamento que reuniu um Malanga, da Campania, um Bucci, da Marche, e um Veronezi, do Vêneto, numa pizzaria que conhecemos por causa de outro grande amigo - o Ítalo -, cujo nome é a própria afirmação da nossa comum condição de oriundi. 

Quando eu, pela primeira vez, coloquei meus pés – e não mais as mãos, como faziam meus ancestrais vênetos -, na terra sagrada de Verona (sagrada por causa dos personagens de Shakespeare, não da  gente mia campagnola pobrezinha e ignorante), era um dia frio e nevoento. 

Acho que já admiti, em alguma conversa, que preciso fazer muita força para vencer meu impulso fantasista, traço juvenil que a maturidade não removeu e que, talvez, seja atávico. Os italianos costumam dizer: veronesi tutti matti.  Pois eu sou, e dou prova: enquanto caminhava à frente da Ludmila, do Ivan e da Beatriz, através da neblina densa que não nos permitia ver dez passos à frente, eu pensava que algum de meus antenati iria emergir da névoa a dizer aquelas palavras tão belas e comoventes que Cacciaguida, tetravô de Dante, disse ao poeta quando eles se encontraram no Paraíso:

O fronda mia in che  io compiacemmi
Pur aspettando, io fu la tua radice  
(Divina Comédia, Paraíso, XXV, 88-89)

Obviamente o ancestral não apareceu, mas o hotel nos recebeu muito bem, assim como a vendedora de frutas de quem comprei algumas maçãs e uvas, e o rapaz da mercearia que me vendeu uma bela garrafa de Valpolicella.  Em Verona, até eu era um produto D.O.C., mesmo falando mal o italiano – mas que importa? meu bisavô Battista também não tinha a fineza viril do toscano antigo do tetravô de Dante. Cada um tem os antenati que merece. Ai de mim!

Quanto a você, vá firme nos seus planos, com a mesma habilidade que você tem demonstrado até agora. Como diria Madame Carlota, acredito que as maiores dificuldades já passaram. La strada è  ormai sgombra. 

Grande abraço para as três gerações dos Malanga e para todo povo de Materdomini. 

Auguri a tutti!




sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sobre a Maturidade




Carta a Losana Hada de Oliveira Prado



Lô,


De todos os clichês literários, o que eu mais desprezo é o que associa cada fase da vida a uma estação do ano: a infância como uma primavera cheia de promessas, a juventude como um verão intenso e solar, a maturidade como um outono cheio de frutos, e a velhice como um inverno coberto de manto branco. 

Essa ladainha enjoativa pode ter algum interesse para os habitantes do Hemisfério Norte, mas essas metáforas e as analogias resultantes são de escasso valor heurístico para os moradores do tórrido Hemisfério Sul, em que as estações não são muito definidas.  A própria ordem das estações ao longo do ano não ajuda muito quando se vive do lado de baixo do Equador. O inverno é o meio do ano, não o final. Nossos anos começam e terminam com calor ou chuva, frequentemente os dois. Enfim, as metáforas sobre a primavera ou o outono da vida não funcionam aqui. Mas não quero perder tempo em brigas com os poetastros, embora eu não acredite que haja licença poética para burrice geográfica.  

O que me incomoda é o “etapismo” (para pegar uma velha palavra dos comunistas) inerente à concepção de uma vida humana dividida em fases. O “etapismo” consistiria em estabelecer faixas etárias nítidas e definir as peculiaridades de cada uma delas, assim como as características da transição de cada etapa à etapa seguinte. Para evitar erros grosseiros, os etapistas costumam definir as etapas com margens generosas. Por exemplo, a puberdade masculina se iniciaria entre os 10 e os 15 anos...

Contudo, nenhum etapista consegue dar limites definidos para a maturidade. Parece que as pessoas são diferentes dos melões: não há um método empírico para ver se estão “no ponto” ou se estarão daqui a dois dias. Essa aparente diferença entre as pessoas e os melões é uma das que mais me surpreende porque, apesar de todos os métodos que os vendedores de frutas já me ensinaram para reconhecer a maturação dos melões, acho muito mais fácil reconhecer sinais de maturidade nos seres humanos. Em outras palavras, quando vejo um freguês apalpando um melão, sei, por exemplo, que não se trata de um jovem. Vivemos num mundo em que jovens não compram melões, de modo que dirigir-se a uma banca de frutas para escolher melões já é um sinal de maturidade. 

Mas quando é que uma pessoa está pronta para comprar melões? Essa é uma pergunta que me faço desde os trinta anos de idade, quando passei a interessar-me decididamente pelo ritual de compra de melões e abacaxis e comecei a usar meus argumentos céticos para desbancar as teorias dogmáticas dos fregueses contumazes e a fenomenologia dos vendedores de frutas. 

Partindo da equação Maturidade = Disposição para comprar melões (M=Dcm), eu, que já disse cobras e lagartos sobre a velhice numa das cartas anteriores, quero agora falar mal da juventude. 

É fácil reconhecer um jovem. Eles são canhestros. Falta-lhes um currículo de fracassos pessoais: eles tem apenas fracassos de empréstimo, testemunhas ou vítimas que foram dos fracassos de pais e professores.

Ainda não moldados pelos fracassos, os jovens vivem no temor das suas incapacidades, as quais tentam esconder de todas as maneiras, fazendo-se de sonsos e desentendidos, jogando charminhos baratos, desprezando as convenções ou empostando a voz de maneira solene, convencidos de que o mundo espera por eles para ser salvo. Nós, os compradores de melões, conhecemos bem o tipo: nós temos filhos, temos alunos e já fomos assim, e essa lembrança é uma vergonha indelével da qual aprendemos a rir  (isso também é requisito para ser um comprador de melões). 

Não sei se Camilo Pessanha pensou nisso, mas acredito que ele colocou em palavras a angústia que vejo nos rostos de meus filhos e de meus alunos:

Tenho sonhos cruéis, n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente... (Clepsidra, Caminho, I)

Sentir o futuro como “aresta” é e sempre será um motivo de angústia na juventude. Para os jovens, o futuro é o armazém de todas as realizações e êxitos, que poderá ser alcançado assim que se ultrapassar a “aresta”: quando eu fizer 18 anos...; quando eu entrar na faculdade...; quando eu terminar a faculdade...; quando eu arranjar trabalho... (só para dar exemplos das “arestas” mais usuais quando se trata de jovens de classe média). Para os compradores de melões, o futuro não é mais uma aresta, mas uma superfície curva que nunca termina de ser ultrapassada. É a topologia do tempo que muda e, com ela, a natureza das expectativas. Do ponto de vista do jovem, o futuro contínuo em que os compradores de melões circum-navegam é rendição ao conformismo e medo das rupturas; do ponto de vista do adulto, o futuro com aresta definida e decisória, de êxito ou de fracasso, é uma miragem ou ilusão juvenil. O tempo futuro juvenil está no modo indicativo das decisões com hora marcada; o tempo futuro adulto está no modo subjuntivo das contingências. Um é todo brusco, o outro é pouco a pouco.

O problema é que, em cada homem e mulher adultos, os dois modos temporais, com suas respectivas topologias, convivem. Nosso decisionismo juvenil, assim como nossas expectativas ou ilusões, não se dissipam repentinamente ao som de algum despertador estridente da maturidade. Os adultos continuam jovens renitentes de muitas maneiras. 

O caráter aberto do processo de amadurecimento, o fato de que nunca somos definitivamente maduros, mas apenas estamos maduros para certas coisas (por exemplo, comprar melões) é resultado do reconhecimento da contingência. Significa que seremos canhestros novamente diante de cada situação imprevista que não se enquadre na experiência anterior. Significa que seremos  sempre modelados por escolhas erradas e suas consequências. Significa que nunca estaremos prontos e nunca chegaremos lá.

Não conheço adulto que não se rebele contra essa situação e que não queira assumir, à maneira dos jovens sonhadores, as rédeas do seu próprio destino. E anseiam pelo momento da “virada”, quando finalmente vão superar a aresta do futuro com alguma espécie de salto à distância existencial.

A persistência de várias ilusões, apesar dos fracassos acumulados no decorrer de trinta, quarenta, cinquenta, sessenta anos de vida (e sessenta anos não é nenhuma data limite nessa enumeração), é um dos componentes que definem as idiossincrasias da maturidade de cada um. 

Os jovens são muito parecidos entre si e, por isso, afirmam agressivamente seu Eu através da identificação com uma coletividade (o bando, a gang, a tribo). As pessoas amadurecidas são muito diferentes entre si, mas querem acreditar que são semelhantes. 

É duro perder a ilusão de pertencimento e reconhecer o fato nu e cru de que somos exemplares únicos e solitários. É duro admitir que os fracassos que tivemos moldaram de forma idiossincrática a nossa maneira de ver o mundo. Gostaríamos ainda de fazer parte de uma roda maior, gostaríamos de encontrar pessoas com quem tivéssemos interesses comuns, mas, assim que começamos a conhecer melhor outro ser humano amadurecido, percebemos logo os abismos da singularidade, começamos a ver inseguranças, medos e angústias de que não compartilhamos e outras que nos envergonham intimamente. E geralmente não temos muita paciência em lidar com outra singularidade além da nossa. As cólicas existenciais alheias, nós as suportamos com uma paciência verdadeiramente desinteressada, bem à maneira do preceito de Brás Cubas (capítulo 119).

A ilusão de pertencimento é uma dessas que persistem na forma de retorno imaginário à sua gente, à sua grei, às suas raízes. Veja o meu caso. Quantas saudades de pátrias imaginárias eu cultivo! Eu que moro a pouco mais de 20 km do lugar onde nasci e a 45 km do lugar onde cresci! E que vontade de produzir, através destas cartas neste blog, uma comunidade de amigos em diálogo vivo! E eu sei que é tudo ilusão! 

O que marca o amadurecimento não é a ausência ou extinção das ilusões, mas uma certa capacidade de mantê-las vivas em certos limites. Em comover-se secretamente com elas e saber enunciá-las de maneira brincalhona. Como ocorre com aqueles guilty pleasures que nos comprazemos em confessar.

A persistência dos sonhos e ilusões ditos juvenis é a marca do nosso fracasso em realizá-los, mas esse fracasso também é a prova de nossa capacidade de lidar com as contingências. Significa que depois de avaliarmos o custo de brigar com moinhos de vento, desistimos de ser Dom Quixotes. No jogo entre o que sonhávamos e o que era factível, optamos pelo que era factível. Engolimos mal cada uma dessas escolhas; o "cálculo mesquinho" que elas supõem nos pesa como alimento mal digerido. Por isso, a desistência de ser um Dom Quixote será sempre provisória e um tanto da boca para fora. Qual a alternativa? Abrir mão até do cripto-quixotismo? Para quê? Mesmo um descrente como Cioran nunca abriu mão da sua luta quixotesca contra as ilusões recalcitrantes da humanidade, escritas num francês que, em si mesmo, é uma pérola quixotesca doutros tempos. 

Um certo grau de imaturidade sonhadora e angustiada faz parte dos direitos da maturidade pragmática, como sabem todos os compradores de melões. Quanto à sabedoria serena da velhice, é bom que seja deixada no depósito mofado de clichês literários, que impressionam apenas alguns pobres juniores inexperientes e iludidos. Sabedoria serena não existe. 

Um grande abraço do seu amigo de juventude e maturidade

PS - A obra que aparece na foto é da Ludmila. Chama-se "Gaiola". Numa das cartas, eu comento essa e outras peças que a Ludmila tem feito. A foto, como as outras deste blog, é minha.




segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Sobre um verso de Camões





Carta a Antonio Carlos Moreira de Souza




Cacá,


Não vou gastar nosso tempo condenando anacronicamente Camões pelos seus maus passos políticos e ideológicos, embora seja mais fácil perdoar os desacertos de sua juventude irresponsável e exuberante do que aguentar a celebração "Daqueles Reis que foram dilatando/ A Fé, o Império, e as terras viciosas/ De África e de Ásia andaram devastando". Os atuais padrões de correção política exigiriam antologias d’Os Lusíadas escoimadas ad usum delphini.


Também não serei o enésimo professor de literatura a recordar as belíssimas oitavas, que nos comoveram desde a primeira leitura d’Os Lusíadas, e cuja evocação constitui um dos mais doces deveres de um falante culto da língua portuguesa. Acontece, porém, que não sou um esteta e jamais a beleza foi para mim causa suficiente de coisa alguma. Daí minha frustração quando volto ao poema de Camões.


Como narrativa de grandes ações, Os Lusíadas é lamentável. Nada na epopeia camoniana se compara a um entrevero nos campos da Ílion de fortes muralhas. É por isso que – para não sair do século XVI europeu - tranquilamente troco todas as façanhas do terrível Albuquerque por um sonoro peido de Gargantua, seguido de um comentário do frade João.


Camões também é fraco em dar vida às figuras históricas. Os Lusíadas não tem a variedade e verdade humana que tanto fascina e surpreende na Divina Comédia. Inês de Castro fala com palavras de empréstimo, dubladas em falsete. Parece uma boneca de papel, como de resto toda a galeria de reis portugueses e o próprio Gama.


Para complicar, as convenções do gênero épico perderam sua transparência e, hoje, a maior parte do poema de Camões nos parece feito de uma espécie de material de preenchimento mais ou menos inerte – um tipo de poliestireno metrificado – infinitamente aborrecido, seja para o esteta, seja para o nacionalista lusitano. O que fazer com uma oitava como esta?


O Gama e o Catual iam falando

Nas cousas que lhe o tempo oferecia;
Monçaide, entre eles, vai interpretando
As palavras que de ambos entendia;
Assi pela cidade caminhando,
Onde uma rica fábrica se erguia
De um suntuoso templo já chegavam,
Pelas portas do qual juntos entravam. (VII, 46)

Em momentos assim, o único heroísmo n’Os Lusíadas é o do leitor. No entanto, isso não diminui Camões: é parte da sua grandeza que ele tenha legado também, entre tantos tesouros, um amplo acervo de decassílabos insípidos que abasteceu generosamente a versalhada de seus epígonos nos séculos XVII e XVIII, como sabe qualquer um que teve o desprazer de ler O Caramuru, de Santa Rita Durão, apenas para citar um exemplo menos desastroso do tédio didático-histórico que marca as epopeias vernáculas.


Que inveja tenho dos italianos que podem rir e devanear viagens à Lua lendo o seu Ariosto, sem as bravatas patrióticas e sem a nostalgia das grandezas perdidas que permeiam o épico de Camões,  as quais ficam ainda mais evidentes naquela sisuda edição escolar feita pela Porto Editora nos tempos de Salazar. Uma edição que pretendia ser uma "obscura mas sincera homenagem do nosso amor ao maior Livro da Raça" (prefácio da 3ª edição).


O meu exemplar do "Livro da Raça", tão gasto e ensebado, tem hoje uma triste semelhança com os velhos catecismos do primeiro Concílio do Vaticano, com os quais eu fiz meu treinamento religioso na infância. São livros que poderiam estar na estante de qualquer capelão de prisão.


Se a epopeia de Camões me toca profundamente não é decerto pela ação pífia, mas pela dicção inigualável. Camões fala - e como fala!  Como discurso sobre a força, Os Lusíadas não tem rival. Desde a primeira estrofe, vemos os "barões assinalados" esforçarem-se "mais do que prometia a força humana". E essa força ergue, ama, sublima, subjuga e devasta; essa força é um imperium, como aquele que o Amor exerce "com força crua/ que os corações humanos tanto obriga" (III, 119) ou imperium que os romanos tiveram no mundo antigo:


"(...) Vênus bela,

Afeiçoada à gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada sua, Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual, quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina."
(I,33)

É esse imperium que Camões reivindica para "uma gente fortíssima de Espanha", "os fortes Portugueses" (I, 31 e 32), usando uma língua que, com pouca corrupção, é a mesma dos romanos. Mas a tarefa não é fácil, porque não se trata de legitimar uma força existente e um poder efetivo. Camões não é o Rudyard Kipling do expansionismo português. Quando Camões publica Os Lusíadas, a máquina lusitana estava emperrada e sua energia seria desbaratada em Álcácer-Quibir pouco tempo depois. O imperium de que Camões fala só se vislumbra num passado mítico ou no profetismo onírico, como no sonho de Dom Manuel (canto IV).


Acredito que a estranheza do último canto d’Os Lusíadas resulta do fato de que o imperium é tão somente um wishful thinking. O canto décimo se abre com a matéria mítica da Ilha dos Amores, que se prolonga na grandiosa visão da máquina do mundo para desaguar em queixas e votos de que a força de Portugal venha à tona:


Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
Possam dizer que são para mandados,
Mais que para mandar, os Portugueses. (X,151)

Em outras palavras, Fernando Pessoa tinha razão: "Falta cumprir-se Portugal."


O imperium desejado e sonhado é assombrado pelo fantasma da fraqueza. Camões promete esconjurá-la com a força de seus braços "às armas feitos" e da sua mente "às Musas dada", em outras palavras, ele usará os meios de que dispõe: ferro, saliva, papel e tinta... se o rei assim o permitir (só me falece ser a vós aceito – X, 155). Talvez Camões esperasse demais do jovem D. Sebastião, mas não se pode acusá-lo de ser incoerente na sua crença nos poderes da realeza, expressa de maneira lapidar naquela joia que é o verso:


Que um fraco Rei faz fraca a forte gente

(III, 138)

A expressão se tornou proverbial e aplicável a todos os casos em que líderes ou governos fracos levam à anarquia interna e à capitulação diante do inimigo. Equivaleria a dizer que o povo é a vítima da incompetência de seus chefes, e é nesse sentido que muitos portugueses a retomaram na atual temporada de crise econômica. Todavia, acredito que essa interpretação do verso é errônea. Tentamos suprir o abismo de quase quinhentos anos entre o léxico de Camões e o nosso, mas as formas políticas persistem na sua diferença.


No verso de Camões, enxergamos chefes, líderes e governos onde lemos apenas a palavra "rei". A palavra continua no nosso vocabulário cotidiano, mas não a compreendemos mais como Camões a compreendia.


Na concepção tardo-medieval de que Camões era continuador, o rei é a cabeça de um corpo político, cujos membros são seus vassalos, ligados a ele por laços de dependência e amor. Um rei é um presente de Deus aos homens e, se for um rei justo, colocará todo o seu corpo político num estado que se assemelha à graça. Haverá boas colheitas, haverá paz, haverá vitória em caso de guerra, os iníquos não prevalecerão sobre os inocentes. Um rei é um elo dos homens com a esfera divina; o outro elo é a Igreja. A força de um rei consiste naquilo que fortalece o elo com a dimensão divina: o compromisso teológico-político tão bem expresso na dedicatória a D. Sebastião, verdadeiro documento da perspectiva de Camões a respeito da força de um rei:


E, vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade
Dada ao mundo por Deus (que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar grande parte) (I, 6)

Um rei forte garante a segurança e a independência de seu povo diante das potências estrangeiras e derrota os inimigos de Cristo. Um rei forte, como D. Manuel – rei modelar para Camões -, é um instrumento privilegiado da Providência:


Parece que guardava o claro Céu

A Manuel e seus merecimentos
Esta empresa tão árdua, que o moveu
A subidos e ilustres movimentos (IV, 66)

O rei fraco referido no famoso verso de Camões é D. Fernando, o Formoso, filho e sucessor do imponente D. Pedro, cognominado "o Justiceiro" – amigo do povo e vingador da morte de Inês de Castro.  Segundo Camões, foi o "baixo amor" por Leonor Telles, esposa de um súdito, que amoleceu D. Fernando.


"Mas quem pode livrar-se, porventura.

Dos laços que Amor arma brandamente
(...)
"Desculpado, por certo, está Fernando.
Para quem tem de amor experiência.
Mas antes, tendo livre a fantasia
Por muito mais culpado o julgaria." (III, 142-143)

A fraqueza do rei está na situação pecaminosa que arrasta o reino a uma "negra escuridade" (IV. 1). O discurso sobre as fraquezas e forças do rei é, portanto, teológico-político. Um rei forte é um sol que irradia o calor e a luz – que vem de Deus - a todo o seu povo. Um rei fraco é um dia nublado e frio, que traz o "inverno do descontentamento" para usar a bela expressão shakespeariana (Camões e Shakespeare usam metáforas atmosféricas ou cosmológicas para o poder dos reis).


Portanto, a força do rei está na sua presença, no seu exemplo, na sua fidelidade às leis divinas. Os grandes epítetos medievais para a realeza são "o Sábio", "o Justo", "o Bom". A ferocidade guerreira e o exercício nu do poder jamais foram vistos como atributos positivos e primordiais da força de um rei medieval. Na concepção teológico-politica da Idade Média tardia, o rei não é um líder ou um chefe, mas um repositório de virtudes em parte próprias da pessoa que ocupa o trono, em parte derivadas do valor místico do trono, conforme ensinaram Marc Bloch e Ernst Kantorowicz, em Les rois thaumaturges e The King’s Two Bodies: a study in Mediaeval Political Theology.


Nada disso se parece com a atual leitura do verso proverbial de Camões. Ao lermos a palavra "rei", pensamos hoje em lideranças e em competências para exercício do poder, inclusive do poder como força bruta. Fomos adestrados a pensar nos termos da "virtù" de Maquiavel e não nas virtudes místicas do Rei-Pescador da Demanda do Santo Graal: o que nos interessa são as habilidades do líder, sua capacidade de manter o consenso em torno de agendas e de solucionar os problemas. Nossos modelos de liderança não são mais o rei Davi ou Carlos Magno, mas sim Jeff Bezos (Amazon) ou Larry Page (Google) ou o mítico Steve Jobs. Nossa escola de liderança é a revista Forbes. Esses homens tem poder,  riquezas e status de pessoas influentes (a variante laica e pós-moderna do carisma messiânico dos antigos reis). Mas tudo isso depende de conjunturas e de consensos: riquezas podem se esvair em pouco tempo, o vago poder de influir e ditar preferências se evola, as cadeiras de CEO são escorregadias. Muitas vezes, um líder fraco (isto é, incompetente) é destituído pelo conselho de acionistas antes que enfraqueça seus "subordinados". No nosso mundo, é a adesão da gente forte que torna o líder forte, não o contrário.


Portanto, o verso proverbial de Camões só valia como verdade num contexto teológico-político que se tornou inaceitável em todo mundo ocidental há bastante tempo. Por qual razão, então, ele continua sendo citado como verdade óbvia? 


Acredito que não é pelo seu conteúdo político anacrônico, mas pelo seu valor como verdade psicológica. Quem são as pessoas que concordam com o verso de Camões?


De um lado, os que se sentem sem poder, os fracos, os inseguros, os tímidos, todos aqueles que não podendo admitir sem rebuços a própria condição subalterna ou a fragilidade intrínseca de sua pessoa, veem a sua fraqueza como derivada da fraqueza de seus chefes, de suas figuras paternas, de seus líderes. Para todos esses, a fraqueza é uma contaminação, é um efeito, não um destino, não o fundamento do seu éthos. Essas pessoas tem necessidade de pastores, no sentido próprio da palavra; elas precisam de alguém que alimente sua ilusão de força e a sua vaidade de serem eleitos.


De outro lado, os ressentidos que acreditam que a autoridade deve ser exercida através dos ditames da força, em nome de hierarquias inabaláveis e cadeias de comando inflexíveis, para além de qualquer consenso. Para esses, somente a força do chefe torna os subordinados dispostos a serem fortes. Este é o ponto de partida do Führerprinzip.


Nem inseguros, nem autoritários, nós nada temos a fazer com o verso proverbial de Camões, além de admirar a sua perfeição sonora. Querer extrair dele alguma verdade política para nosso tempo é comprometer-se com uma retórica da fraqueza travestida de força, que é ou cínica ou danosa.


Um grande abraço deste irmão em Camões