Carta a Marcelo Contar Adolfi
Marcelo,
Nós nos conhecemos há pouco tempo, mas tomei a liberdade de aborrecê-lo um tantinho e voltar ao assunto de que falávamos ontem pela manhã. Você disse que seria mais fácil ajustar o calibre das aulas, agora que conhece melhor o perfil das turmas e, assim, não iria mais cometer certos erros de comunicação. Eu estava talhando um pedaço de mamão e sorri das suas expectativas. Espero que você perdoe o sorriso: não era careta de pouco caso. Por formação e por inclinação, sou cético e desconfio das tentativas de administrar o futuro. Entenda bem, eu não duvido da sua capacidade de corrigir os erros que você acredita ter cometido, nem duvido da lucidez de sua preocupação com os alunos. Se estou escrevendo esta carta é justamente porque respeito muito a sua inteligência, bem como a justeza e sensatez de suas opiniões. Minha intenção é apenas a de expor minha perspectiva sobre essa questão delicada que é a comunicação entre o professor e os alunos.
A pedagogia tem um termo para situar o problema de que falamos, que é “transposição didática”. Felizmente o conceito tem um lastro sociológico sério no trabalho de Michel Verret em Le Temps des Études (1975). Mais tarde foi retomado no campo da didática da matemática por Yves Chevallard em La Transposition Didatique. Du savoir savant au savoir enseigné (1985). Desde então tornou-se expressão corrente no mundo francófono, de onde foi importado pelos pedagogos brasileiros que consomem as novidades francesas sobre educação.
Verret estudou a maneira como as teorias desenvolvidas pelos especialistas são transformadas naquilo que se ensina em sala de aula. Tomando como exemplo a disciplina que você leciona, numa extremidade do processo temos a diversidade conflitante de interpretações propostas pelos historiadores profissionais; de outro lado, temos o currículo escolar de história, dividido em assuntos que devem ser ensinados dentro de um número predeterminado de horas-aula. Portanto, numa ponta, há a massa contínua e interrelacionada de saberes da história (que se ligam à geografia, à sociologia, à economia, à filosofia etc.) e, na outra ponta, os pequenos pacotes semanais a serem ministrados aos alunos, levando em conta a sua faixa etária, sua formação cultural e seu nível de desenvolvimento (e também os recursos disponíveis e os humores do momento, deles e nossos...).
O que Michel Verret descreveu foi precisamente esse processo de compartimentação, fragmentação e simplificação pelo qual – necessariamente – deve passar o saber existente quando é ensinado. Essas etapas são a “dessincretização” (que separa o saber erudito em disciplinas: história, geografia, sociologia, filosofia etc); a “despersonalização” (que apresenta o conhecimento separado dos indivíduos ou grupos que o produziram, de modo que a teoria proposta por um certo historiador passa a ser ensinada simplesmente como a verdade aceita sobre aquele período histórico); a “programação” (que estabelece as balizas e etapas pela qual o conhecimento vai ser ensinado – o currículo e o número de aulas necessário para cumpri-lo).
O que me interessa é o momento em que esse saber já reduzido a unidades curriculares compactas chega ao professor que vai ensiná-lo a turmas necessariamente heterogêneas. Todo professor, especialmente os que tem inclinação para a pesquisa e gosto pelo saber, sente uma forte contradição entre o saber erudito e transdisciplinar formulado por gente como Braudel ou Antonio Cândido e as pílulas mínimas ministradas em sala de aula, ainda mais quando percebemos que as pílulas devem ser moídas para serem servidas a algumas turmas. Parece que com isso, mais do que as pílulas, é a nossa dignidade profissional e intelectual que se desintegra. Fazemos o serviço com má consciência e temos que inventar escusas para conseguirmos dormir em paz. É claro que há professores que não se incomodam, mas todo ofício tem seus cínicos e seus sonâmbulos.
Como ia dizendo, o que me interessa na questão da transposição didática é o elo final: as escolhas que o professor precisa fazer para garantir que os pacotes de conhecimento, ou as pílulas, se transformem em conhecimento na cabeça de um estudante. É este problema que você levantou quando eu já terminara o pedaço de mamão e passara a remover as sementes de uma fatia de melancia. Você lembrou da dificuldade de usar um vocabulário que pode enriquecer o léxico tão ralo dos adolescentes, correndo o risco de não ser entendido por eles. Acredito que esse dilema só pode ser resolvido caso a caso, no pacto que se constitui entre o professor e a turma ao longo do ano.
Nós trabalhamos com uma realidade movente. Os alunos mudam durante o ano, mudam de semana a semana. Numa sala de cem alunos, como as do cursinho, temos cem variáveis. Se seguirmos o eixo do tempo, vemos que cada uma dessas variáveis segue uma trajetória mais ou menos inesperada, de modo que é impossível prever como será a aula naquela turma dentro de um mês. Esse pensamento é desesperador para a ilusão de controle que todo professor alimenta (ilusão que é requisito prévio para exercer a nobre atividade docente).
Pense nas conversas de sala dos professores. É comum avaliarmos as turmas como blocos homogêneos, de acordo com seus níveis de empatia e receptividade ao conhecimento. Dizemos que a turma X é antipática e que a turma Y é muito perguntadora, e enunciamos esses juízos com a mesma tranquilidade inconsciente dos ditadores que proclamam que o povo quer isso ou aquilo. Acreditamos entender as turmas como Hitler ou Stálin acreditavam conhecer os povos que dominavam.
Muito mais importante do que essa pseudocompreensão, enunciada em forma de clichês e frases feitas, que vem misturadas com muito ressentimento contra as condições de trabalho e idealizações fantasiosas sobre o professor como sacerdote, como pai, como psicólogo e até como artista – verdadeiras manifestações das defesas narcísicas que erguemos contra as dificuldades da profissão -, muito mais importante do que nossas ilusões sobre nós mesmos e sobre a massa quase anônima de estudantes que temos à frente é o pacto que assumimos com cada turma desde as primeiras aulas. O pacto pelo qual mostramos que nossa intenção de ensinar é séria, de que é firme nosso propósito de ajudar quem quiser aprender. Esse pacto pode até ser formulado explicitamente, mas tem valor apenas quando é endossado em cada aula por comportamentos claros e coerentes do professor.
Acho que seria um erro você deixar de usar palavras como “acirramento” ou “colapso” por causa do letramento insuficiente de alguns alunos. É importante insistir. Há um truque simples, que é repetir a palavra acompanhada de dois ou três sinônimos mais conhecidos. Isso deve ser feito não como quem catequisa uma horda bárbara, mas como quem lisonjeia a inteligência sutil do auditório. Deste modo, a palavra mais “difícil” se integra ao vocabulário passivo do estudante. Aprendi isso com meu amigo Antonio Carlos Biasse, professor de História do Brasil que eu admiro muito. Na época em que trabalhávamos juntos, ele gostava de usar expressões como “condição sine qua non”, sempre acompanhadas de perífrases do tipo “as condições necessárias e imprescindíveis”. Em 1998 ou 1999, uma questão da Fuvest perguntava o que era “condição sine qua non”. Todos os alunos do Biasse sabiam a resposta correta e creio até que muitos passaram a usar a expressão.
O professor é uma das últimas barreiras na vida de um adolescente contra a maré montante da ignorância e da burrice deslavada. As injunções da transposição didática nos impõem lidar com uma versão simplificada e fragmentada do conhecimento, mas – como diria o conselheiro Acácio – as coisas podem ser feita de diferentes maneiras. O feijão-com-arroz pode ser bem preparado e bem servido, ou não.
Já me estendi demais e repeti muitas obviedades: é que chover no molhado é parte do ofício até quando um professor conversa com um colega que respeita. Começa como bate-papo e acaba virando aula.
De volta àquele sorriso de ceticismo de que falei no início, estou convencido de que você não vai repetir os possíveis erros de comunicação ou de transposição didática que aconteceram este ano. Espero que eu também não repita os meus erros, mas uma coisa é querer evitar erros antigos, outra coisa é diminuir a soma total dos erros. Isso não acontece nunca. Há uma espécie de princípio da conservação da falibilidade. Deixamos de errar num ponto e passamos a errar em outro. Continuamos tão imperfeitos quanto antes. Então, não adianta fazer planos napoleônicos para conquistar Moscou.
Não sei se Tolstói exagerou ficcionalmente a situação, mas lendo Guerra e Paz, eu sempre ria quando o general Kutuzov cochilava naquelas reuniões do alto comando em que oficiais brilhantes e dedicados apresentavam planos infalíveis para impedir uma invasão francesa. Kutuzov estava bem ciente da inutilidade das grandes estratégias (fez falta ao criador da linha Maginot ter lido Tolstói com mais atenção).
Meu ceticismo me alinha com os teóricos da guerrilha, como T.E. Lawrence no verbete que escreveu para a Enciclopédia Britannica. Várias de suas lições podem ser perfeitamente adaptadas para nosso combate cotidiano: é preciso ter agilidade e usar como trunfo as próprias dificuldades do terreno. Só não acredito que destruir as comunicações seja uma parte válida da operação.
Bom, espero que você aceite esta carta como sinal de que não fiquei chateado por causa da carona que não aconteceu.
um grande abraço!