domingo, 23 de setembro de 2012

A foto e a cidade





Carta a Daniel Pereira Leite



Daniel,

De todas as formas de produção de imagens, a fotografia e o cinema são as mais sujeitas aos acidentes e às contingências. Mesmo para quem – como eu - nunca saiu do mundinho das câmeras amadoras, há muitos parâmetros a serem controlados: luz, nivelamento, distância, preto e branco ou cor, enquadramento; há muitíssimos outros para o profissional. Tudo isso supondo que já sabemos o que queremos fotografar, que já temos o desenho da foto que queremos, que já nos colocamos em posição para efetuar o click – ou os clicks, porque não existe foto única. O fotógrafo fica como mariposa em volta do objeto, tentando uma união impossível com a luz. 

O disparo da máquina é o início de outro percurso acidentado: o da produção da imagem que os outros vão ver, quando o negativo for revelado ou quando os bits e bytes forem processados em um software de edição. 

A diferença entre o amador e o profissional está na capacidade de lidar com a contingência. O profissional dispõe de capacidade técnica para controlar as variáveis por meio do equipamento adequado e pode, assim, diminuir o papel dos efeitos acidentais no resultado final. Um fotógrafo profissional é alguém que chega muito perto de produzir a foto que imaginou. 

Contudo perde-se algo com isso: é o que diz o pequeno Rousseau que há em mim, ou o potencial ludita em revolta permanente contra a máquina. A fotografia profissional é uma elaboração que dá pouca margem para a surpresa e o acidentado encontro entre o homem da câmera e a coisa vista. A fotografia profissional deixa de reproduzir a situação do encontro, como se o profissional fosse um olho absoluto, que pode apagar a si mesmo da fotografia, ao passo que a própria imperícia ou limitação técnica do amador é a exposição da sua situação de indivíduo sujeito a todos os imprevistos. Ele recolhe as migalhas afortunadas do acaso. Para quem ainda é romântico, há o prazer de saber que a fotografia poderá ser reproduzida inúmeras vezes, mas a situação do encontro foi única e irrepetível. 

Portanto, o que me encanta na fotografia amadora é a marca da mão humana: a relação intrínseca do ser humano com o mundo. Infelizmente, no campo da fotografia de arquitetura e urbanismo, que me interessa muito, é fortíssima a tendência de apagar os traços humanos presentes na obra arquitetônica e isolá-la do ambiente humano que a circunda. O prédio aparece despojado de todos os elementos que causam “ruído” na informação estética: transeuntes, veículos, árvores, fios, condições atmosféricas, sujeira em suspensão no ar. Nesse tipo de fotografia, as construções aparecem num espaço socialmente vazio, cada prédio se comporta como o famoso indivíduo autônomo do liberalismo clássico. O fotógrafo precisa apenas produzir visualmente esta “autonomia” criando um deserto urbanístico em que todas as outras construções e o mundo humano aparecem minimizados ou meramente circunstanciais. O fotógrafo de arquitetura, como se fosse seguidor da escritora ultraindividualista Ayn Rand (Fountainhead), vê no arquiteto o herói visionário que faz do projeto a manifestação do seu poder soberano.

Essa desconsideração pelo coletivo e pelo social é uma doença profissional dos fotógrafos de arquitetura e dos próprios arquitetos, os quais geralmente desprezam as cidades existentes. A ambição arquitetônica é partir da tabula rasa ou, pelo menos, “reinventar” o espaço. Disso vem a beleza quase onírica das fotos que Marcel Gautherot fez durante a construção de Brasília: um imenso tabuleiro vazio em que as estruturas se elevavam como miragens na poeira do cerrado.

A maior lição do materialismo histórico é a de nunca esquecer o processo pelo qual as coisas são produzidas.  A grande arquitetura fotografada por grandes fotógrafos e mostrada para o mundo em grandes revistas depende totalmente do grande capital. A construção de prédios precisa de investimentos maciços, os equipamentos fotográficos precisam ser financiados, as publicações de divulgação de arquitetura tem um custo bem alto. Todo o circuito que vai da aquisição do terreno, a contratação de um escritório de projeto, o trabalho da construtora, o registro fotográfico da obra final e a divulgação pelas revistas especializadas é um circuito irrigado pelo capital. Por isso, a fotografia de arquitetura sofre as injunções do mundo da mercadoria, principalmente pela maneira laudatória e fetichista com que mostra a obra arquitetônica – que por definição é um trabalho coletivo – como produto apenas da mente do arquiteto, como se o projeto tivesse se materializado por si mesmo. A fotografia de arquitetura endossa a utopia capitalista de um mundo de mercadorias em que o trabalho humano desaparece ou é apenas mais um insumo (que eu saiba, nenhum fotógrafo de arquitetura fotografa acidentes de trabalho em obras ou registra a arquitetura das moradias dos empregados na construção).  Os andaimes e o esqueleto do prédio servem apenas para belas composições geométricas e jogos de luz e sombras entrelaçadas.

Do ponto de vista estético, na minha modesta escala de amador bem intencionado, aprendi muita coisa observando essas fotografias que transformam o prédio em maravilha. É difícil negar a beleza e o poder hipnótico dessas fotos. A grande tradição da fotografia arquitetônica modernista, representada por Yukio Futagawa e a revista Global Architecture, exalta um mundo ordenado e purificado como um arranjo de ikebana ou um jardim de pedras Zen.  

Já o pós-modernismo arquitetônico veio acompanhado de uma multiplicação de “efeitos especiais” (eufemismo para as técnicas de re-encatamento manipulatório e fetichista). Os álbuns fotográficos de arquitetura pós-modernista tem alguma coisa de portfolio de top model.  Não se trata apenas de beleza, mas do sex-appeal do prédio. A fotografia arquitetônica modernista oferecia o prédio como escultura; na fotografia pós-modernista, a arquitetura aparece como “nu artístico” com intenções comerciais. Uma pornografia soft de concreto, aço e vidro. É claro que a generalização é injusta, por isso, vou mencionar uma exceção entre outras: Iwan Baan.

Contra essa estética, com a qual tento lutar como amador, eu elejo as fotografias de Atget, cuja qualidade espectral lhe permitia construir, em negativo, imagens de um espaço urbano denso de vida e de concretude histórica; os grandes fotógrafos de rua: Kertész, Doisneau, Brassaï e Cartier-Bresson; e, não menos importante para mim, a fotografia do patrimônio construído, de Cristiano Mascaro.

Passo para as minhas fotos. Os defeitos são todos meus, as possíveis qualidades são todas do feliz - e irrepetível - encontro com certas ruas e construções. 

Bananal 

Bruges
Bruges

Bruges

Diamantina
Diamantina
Angers
Bayeux
Paris
Paris
Paris

Paris
Paris
Paris
Paris
Niterói
Ouro Preto
Ouro Preto
Ouro Preto
Ouro Preto
Porto Alegre
Porto Alegre
Porto Alegre

Porto Alegre

Porto Alegre

Porto Alegre
Rio de Janeiro

Roma

Salvador

Salvador

São Paulo

São Paulo

São Paulo

Verona

Hoje abri solenemente a garrafa de cachaça de Januária. Potabilíssima! Agora falta ver as fotos da viagem off-road até Diamantina. Veja se é possível na próxima sexta-feira.

um grande abraço!





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