Carta a Daniel Pereira Leite
De todas as formas de produção de imagens, a fotografia e o cinema são as mais sujeitas aos acidentes e às contingências. Mesmo para quem – como eu - nunca saiu do mundinho das câmeras amadoras, há muitos parâmetros a serem controlados: luz, nivelamento, distância, preto e branco ou cor, enquadramento; há muitíssimos outros para o profissional. Tudo isso supondo que já sabemos o que queremos fotografar, que já temos o desenho da foto que queremos, que já nos colocamos em posição para efetuar o click – ou os clicks, porque não existe foto única. O fotógrafo fica como mariposa em volta do objeto, tentando uma união impossível com a luz.
O disparo da máquina é o início de outro percurso acidentado: o da produção da imagem que os outros vão ver, quando o negativo for revelado ou quando os bits e bytes forem processados em um software de edição.
A diferença entre o amador e o profissional está na capacidade de lidar com a contingência. O profissional dispõe de capacidade técnica para controlar as variáveis por meio do equipamento adequado e pode, assim, diminuir o papel dos efeitos acidentais no resultado final. Um fotógrafo profissional é alguém que chega muito perto de produzir a foto que imaginou.
Contudo perde-se algo com isso: é o que diz o pequeno Rousseau que há em mim, ou o potencial ludita em revolta permanente contra a máquina. A fotografia profissional é uma elaboração que dá pouca margem para a surpresa e o acidentado encontro entre o homem da câmera e a coisa vista. A fotografia profissional deixa de reproduzir a situação do encontro, como se o profissional fosse um olho absoluto, que pode apagar a si mesmo da fotografia, ao passo que a própria imperícia ou limitação técnica do amador é a exposição da sua situação de indivíduo sujeito a todos os imprevistos. Ele recolhe as migalhas afortunadas do acaso. Para quem ainda é romântico, há o prazer de saber que a fotografia poderá ser reproduzida inúmeras vezes, mas a situação do encontro foi única e irrepetível.
Portanto, o que me encanta na fotografia amadora é a marca da mão humana: a relação intrínseca do ser humano com o mundo. Infelizmente, no campo da fotografia de arquitetura e urbanismo, que me interessa muito, é fortíssima a tendência de apagar os traços humanos presentes na obra arquitetônica e isolá-la do ambiente humano que a circunda. O prédio aparece despojado de todos os elementos que causam “ruído” na informação estética: transeuntes, veículos, árvores, fios, condições atmosféricas, sujeira em suspensão no ar. Nesse tipo de fotografia, as construções aparecem num espaço socialmente vazio, cada prédio se comporta como o famoso indivíduo autônomo do liberalismo clássico. O fotógrafo precisa apenas produzir visualmente esta “autonomia” criando um deserto urbanístico em que todas as outras construções e o mundo humano aparecem minimizados ou meramente circunstanciais. O fotógrafo de arquitetura, como se fosse seguidor da escritora ultraindividualista Ayn Rand (Fountainhead), vê no arquiteto o herói visionário que faz do projeto a manifestação do seu poder soberano.
Essa desconsideração pelo coletivo e pelo social é uma doença profissional dos fotógrafos de arquitetura e dos próprios arquitetos, os quais geralmente desprezam as cidades existentes. A ambição arquitetônica é partir da tabula rasa ou, pelo menos, “reinventar” o espaço. Disso vem a beleza quase onírica das fotos que Marcel Gautherot fez durante a construção de Brasília: um imenso tabuleiro vazio em que as estruturas se elevavam como miragens na poeira do cerrado.
A maior lição do materialismo histórico é a de nunca esquecer o processo pelo qual as coisas são produzidas. A grande arquitetura fotografada por grandes fotógrafos e mostrada para o mundo em grandes revistas depende totalmente do grande capital. A construção de prédios precisa de investimentos maciços, os equipamentos fotográficos precisam ser financiados, as publicações de divulgação de arquitetura tem um custo bem alto. Todo o circuito que vai da aquisição do terreno, a contratação de um escritório de projeto, o trabalho da construtora, o registro fotográfico da obra final e a divulgação pelas revistas especializadas é um circuito irrigado pelo capital. Por isso, a fotografia de arquitetura sofre as injunções do mundo da mercadoria, principalmente pela maneira laudatória e fetichista com que mostra a obra arquitetônica – que por definição é um trabalho coletivo – como produto apenas da mente do arquiteto, como se o projeto tivesse se materializado por si mesmo. A fotografia de arquitetura endossa a utopia capitalista de um mundo de mercadorias em que o trabalho humano desaparece ou é apenas mais um insumo (que eu saiba, nenhum fotógrafo de arquitetura fotografa acidentes de trabalho em obras ou registra a arquitetura das moradias dos empregados na construção). Os andaimes e o esqueleto do prédio servem apenas para belas composições geométricas e jogos de luz e sombras entrelaçadas.
Do ponto de vista estético, na minha modesta escala de amador bem intencionado, aprendi muita coisa observando essas fotografias que transformam o prédio em maravilha. É difícil negar a beleza e o poder hipnótico dessas fotos. A grande tradição da fotografia arquitetônica modernista, representada por Yukio Futagawa e a revista Global Architecture, exalta um mundo ordenado e purificado como um arranjo de ikebana ou um jardim de pedras Zen.
Já o pós-modernismo arquitetônico veio acompanhado de uma multiplicação de “efeitos especiais” (eufemismo para as técnicas de re-encatamento manipulatório e fetichista). Os álbuns fotográficos de arquitetura pós-modernista tem alguma coisa de portfolio de top model. Não se trata apenas de beleza, mas do sex-appeal do prédio. A fotografia arquitetônica modernista oferecia o prédio como escultura; na fotografia pós-modernista, a arquitetura aparece como “nu artístico” com intenções comerciais. Uma pornografia soft de concreto, aço e vidro. É claro que a generalização é injusta, por isso, vou mencionar uma exceção entre outras: Iwan Baan.
Contra essa estética, com a qual tento lutar como amador, eu elejo as fotografias de Atget, cuja qualidade espectral lhe permitia construir, em negativo, imagens de um espaço urbano denso de vida e de concretude histórica; os grandes fotógrafos de rua: Kertész, Doisneau, Brassaï e Cartier-Bresson; e, não menos importante para mim, a fotografia do patrimônio construído, de Cristiano Mascaro.
Passo para as minhas fotos. Os defeitos são todos meus, as possíveis qualidades são todas do feliz - e irrepetível - encontro com certas ruas e construções.
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