sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Sobre a Maturidade




Carta a Losana Hada de Oliveira Prado



Lô,


De todos os clichês literários, o que eu mais desprezo é o que associa cada fase da vida a uma estação do ano: a infância como uma primavera cheia de promessas, a juventude como um verão intenso e solar, a maturidade como um outono cheio de frutos, e a velhice como um inverno coberto de manto branco. 

Essa ladainha enjoativa pode ter algum interesse para os habitantes do Hemisfério Norte, mas essas metáforas e as analogias resultantes são de escasso valor heurístico para os moradores do tórrido Hemisfério Sul, em que as estações não são muito definidas.  A própria ordem das estações ao longo do ano não ajuda muito quando se vive do lado de baixo do Equador. O inverno é o meio do ano, não o final. Nossos anos começam e terminam com calor ou chuva, frequentemente os dois. Enfim, as metáforas sobre a primavera ou o outono da vida não funcionam aqui. Mas não quero perder tempo em brigas com os poetastros, embora eu não acredite que haja licença poética para burrice geográfica.  

O que me incomoda é o “etapismo” (para pegar uma velha palavra dos comunistas) inerente à concepção de uma vida humana dividida em fases. O “etapismo” consistiria em estabelecer faixas etárias nítidas e definir as peculiaridades de cada uma delas, assim como as características da transição de cada etapa à etapa seguinte. Para evitar erros grosseiros, os etapistas costumam definir as etapas com margens generosas. Por exemplo, a puberdade masculina se iniciaria entre os 10 e os 15 anos...

Contudo, nenhum etapista consegue dar limites definidos para a maturidade. Parece que as pessoas são diferentes dos melões: não há um método empírico para ver se estão “no ponto” ou se estarão daqui a dois dias. Essa aparente diferença entre as pessoas e os melões é uma das que mais me surpreende porque, apesar de todos os métodos que os vendedores de frutas já me ensinaram para reconhecer a maturação dos melões, acho muito mais fácil reconhecer sinais de maturidade nos seres humanos. Em outras palavras, quando vejo um freguês apalpando um melão, sei, por exemplo, que não se trata de um jovem. Vivemos num mundo em que jovens não compram melões, de modo que dirigir-se a uma banca de frutas para escolher melões já é um sinal de maturidade. 

Mas quando é que uma pessoa está pronta para comprar melões? Essa é uma pergunta que me faço desde os trinta anos de idade, quando passei a interessar-me decididamente pelo ritual de compra de melões e abacaxis e comecei a usar meus argumentos céticos para desbancar as teorias dogmáticas dos fregueses contumazes e a fenomenologia dos vendedores de frutas. 

Partindo da equação Maturidade = Disposição para comprar melões (M=Dcm), eu, que já disse cobras e lagartos sobre a velhice numa das cartas anteriores, quero agora falar mal da juventude. 

É fácil reconhecer um jovem. Eles são canhestros. Falta-lhes um currículo de fracassos pessoais: eles tem apenas fracassos de empréstimo, testemunhas ou vítimas que foram dos fracassos de pais e professores.

Ainda não moldados pelos fracassos, os jovens vivem no temor das suas incapacidades, as quais tentam esconder de todas as maneiras, fazendo-se de sonsos e desentendidos, jogando charminhos baratos, desprezando as convenções ou empostando a voz de maneira solene, convencidos de que o mundo espera por eles para ser salvo. Nós, os compradores de melões, conhecemos bem o tipo: nós temos filhos, temos alunos e já fomos assim, e essa lembrança é uma vergonha indelével da qual aprendemos a rir  (isso também é requisito para ser um comprador de melões). 

Não sei se Camilo Pessanha pensou nisso, mas acredito que ele colocou em palavras a angústia que vejo nos rostos de meus filhos e de meus alunos:

Tenho sonhos cruéis, n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente... (Clepsidra, Caminho, I)

Sentir o futuro como “aresta” é e sempre será um motivo de angústia na juventude. Para os jovens, o futuro é o armazém de todas as realizações e êxitos, que poderá ser alcançado assim que se ultrapassar a “aresta”: quando eu fizer 18 anos...; quando eu entrar na faculdade...; quando eu terminar a faculdade...; quando eu arranjar trabalho... (só para dar exemplos das “arestas” mais usuais quando se trata de jovens de classe média). Para os compradores de melões, o futuro não é mais uma aresta, mas uma superfície curva que nunca termina de ser ultrapassada. É a topologia do tempo que muda e, com ela, a natureza das expectativas. Do ponto de vista do jovem, o futuro contínuo em que os compradores de melões circum-navegam é rendição ao conformismo e medo das rupturas; do ponto de vista do adulto, o futuro com aresta definida e decisória, de êxito ou de fracasso, é uma miragem ou ilusão juvenil. O tempo futuro juvenil está no modo indicativo das decisões com hora marcada; o tempo futuro adulto está no modo subjuntivo das contingências. Um é todo brusco, o outro é pouco a pouco.

O problema é que, em cada homem e mulher adultos, os dois modos temporais, com suas respectivas topologias, convivem. Nosso decisionismo juvenil, assim como nossas expectativas ou ilusões, não se dissipam repentinamente ao som de algum despertador estridente da maturidade. Os adultos continuam jovens renitentes de muitas maneiras. 

O caráter aberto do processo de amadurecimento, o fato de que nunca somos definitivamente maduros, mas apenas estamos maduros para certas coisas (por exemplo, comprar melões) é resultado do reconhecimento da contingência. Significa que seremos canhestros novamente diante de cada situação imprevista que não se enquadre na experiência anterior. Significa que seremos  sempre modelados por escolhas erradas e suas consequências. Significa que nunca estaremos prontos e nunca chegaremos lá.

Não conheço adulto que não se rebele contra essa situação e que não queira assumir, à maneira dos jovens sonhadores, as rédeas do seu próprio destino. E anseiam pelo momento da “virada”, quando finalmente vão superar a aresta do futuro com alguma espécie de salto à distância existencial.

A persistência de várias ilusões, apesar dos fracassos acumulados no decorrer de trinta, quarenta, cinquenta, sessenta anos de vida (e sessenta anos não é nenhuma data limite nessa enumeração), é um dos componentes que definem as idiossincrasias da maturidade de cada um. 

Os jovens são muito parecidos entre si e, por isso, afirmam agressivamente seu Eu através da identificação com uma coletividade (o bando, a gang, a tribo). As pessoas amadurecidas são muito diferentes entre si, mas querem acreditar que são semelhantes. 

É duro perder a ilusão de pertencimento e reconhecer o fato nu e cru de que somos exemplares únicos e solitários. É duro admitir que os fracassos que tivemos moldaram de forma idiossincrática a nossa maneira de ver o mundo. Gostaríamos ainda de fazer parte de uma roda maior, gostaríamos de encontrar pessoas com quem tivéssemos interesses comuns, mas, assim que começamos a conhecer melhor outro ser humano amadurecido, percebemos logo os abismos da singularidade, começamos a ver inseguranças, medos e angústias de que não compartilhamos e outras que nos envergonham intimamente. E geralmente não temos muita paciência em lidar com outra singularidade além da nossa. As cólicas existenciais alheias, nós as suportamos com uma paciência verdadeiramente desinteressada, bem à maneira do preceito de Brás Cubas (capítulo 119).

A ilusão de pertencimento é uma dessas que persistem na forma de retorno imaginário à sua gente, à sua grei, às suas raízes. Veja o meu caso. Quantas saudades de pátrias imaginárias eu cultivo! Eu que moro a pouco mais de 20 km do lugar onde nasci e a 45 km do lugar onde cresci! E que vontade de produzir, através destas cartas neste blog, uma comunidade de amigos em diálogo vivo! E eu sei que é tudo ilusão! 

O que marca o amadurecimento não é a ausência ou extinção das ilusões, mas uma certa capacidade de mantê-las vivas em certos limites. Em comover-se secretamente com elas e saber enunciá-las de maneira brincalhona. Como ocorre com aqueles guilty pleasures que nos comprazemos em confessar.

A persistência dos sonhos e ilusões ditos juvenis é a marca do nosso fracasso em realizá-los, mas esse fracasso também é a prova de nossa capacidade de lidar com as contingências. Significa que depois de avaliarmos o custo de brigar com moinhos de vento, desistimos de ser Dom Quixotes. No jogo entre o que sonhávamos e o que era factível, optamos pelo que era factível. Engolimos mal cada uma dessas escolhas; o "cálculo mesquinho" que elas supõem nos pesa como alimento mal digerido. Por isso, a desistência de ser um Dom Quixote será sempre provisória e um tanto da boca para fora. Qual a alternativa? Abrir mão até do cripto-quixotismo? Para quê? Mesmo um descrente como Cioran nunca abriu mão da sua luta quixotesca contra as ilusões recalcitrantes da humanidade, escritas num francês que, em si mesmo, é uma pérola quixotesca doutros tempos. 

Um certo grau de imaturidade sonhadora e angustiada faz parte dos direitos da maturidade pragmática, como sabem todos os compradores de melões. Quanto à sabedoria serena da velhice, é bom que seja deixada no depósito mofado de clichês literários, que impressionam apenas alguns pobres juniores inexperientes e iludidos. Sabedoria serena não existe. 

Um grande abraço do seu amigo de juventude e maturidade

PS - A obra que aparece na foto é da Ludmila. Chama-se "Gaiola". Numa das cartas, eu comento essa e outras peças que a Ludmila tem feito. A foto, como as outras deste blog, é minha.




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