Carta a Umberto Chacon Malanga
Umberto,
A situação era de fazer rir: a pizzaria vazia por causa de uma pane elétrica, as luzes intermitentes, a maior parte das mesas na escuridão. Robinson e eu logo nos lembramos do Guido, que tem pavor do escuro. Seria muito bom se a antiga confraria dos “amigos do Nelson” estivesse reunida: teríamos gargalhadas maldosas garantidas até depois da meia-noite ou até o Guido tomar a “saideira” – a última de verdade –, sabe-se lá a que horas, com os garçons impacientes arrumando as mesas.
A confraria antiga se desfez, mas não importa quantos sejam os apóstolos: a ceia continua santa, com a vantagem imensa de que nunca aceitaremos um Judas entre nós. Somos bem mais seletivos do que Jesus. E nosso cardápio é mais variado. As pizzas sempre me trazem alegria; a cerveja, a caipirinha ou o vinho elevam a alma dois palmos acima do corpo. Falo por mim, acredito que também pelo Robinson, porque sei que você prefere ir mansamente de Coca-Cola. Eu, que gosto de um bocado de álcool na corrente sanguínea, só perdoo essa desfeita porque você sempre traz novidades boas dos meninos que estão crescendo, do apartamento que está quase pronto, da pensão que vai aumentar.
Confesso que admiro muito quem se dispõe a fazer as coisas, embora não goste nem um pouco de palavras como “empreendedorismo” ou “iniciativa”. O trabalho bem executado por mãos experientes, o sentido de que vale a pena fazer para durar, o gosto de ver a obra ganhar forma, o prazer de ir para o próximo projeto, tudo isso constitui, a meu ver, sinais evidentes de maturidade.
Numa outra carta deste blog, eu tentei mostrar que chegamos à maturidade quando estamos preparados para o fato de que nunca estaremos totalmente preparados. Isso não acontece por alguma culpa ou incapacidade nossa: é que o mundo funciona à revelia de nossos desejos e de nossos projetos. Quando somos jovens, acreditamos que tudo depende de tomar a decisão certa no momento certo: queremos ganhar a partida com xeque-mate no terceiro ou no quarto movimento. Os jovens não se contentam com menos do que vitórias esmagadoras, aliás, altamente improváveis. Chegar à maturidade é saber lidar com a contingência, através da paciência, da astúcia, da busca de caminhos diferentes, sabendo que o resultado da partida é incerto e nunca será plenamente a nosso favor.
Descartes acreditava que, quando estamos perdidos, o melhor é seguir em linha reta. É sinal de que Descartes nunca ficou perdido e, acostumado com planos cartesianos, não entendia que o caminho depende da topologia do terreno e dos obstáculos variados que vamos encontrar. O grande filósofo e matemático pensava de maneira juvenil...
Ser capaz de encontrar o caminho certo não resulta de uma decisão voluntária. A vontade (inclusive a força de vontade) é uma faculdade humana superestimada. A possibilidade de realizar algo depende menos da vontade do que da capacidade de lidar com os imprevistos, com os atrasos, com as decepções, com as negações, enfim, com a resistência dos materiais e das pessoas. Ou seja, é escultor não quem tem vontade de sê-lo, mas quem sabe que a dureza da pedra trabalha contra e a favor do processo de esculpir. Para isso, é preciso treino, experiência, paciência e o reconhecimento de que a possibilidade de fracasso está à espreita a cada momento. A mesma coisa acontece com materiais mais flexíveis. Pode perguntar para o Robinson: quantas lâminas um cuteleiro tem que estragar para fazer uma boa faca? Mesmo o mais experiente vidreiro de Murano perde peças por causa de bolhas ou fissuras que surgem no resfriamento do vidro. Todo artesão ou artista acumula uma série de desastres de oficina, que os clientes e compradores costumam ignorar porque preferem acreditar em objetos que surgem por milagre das mãos de um artífice consumado. E ninguém presta atenção na enorme cesta de lixo com todos os esboços rasurados de cada página de Dom Casmurro.
A relação entre o escultor e a pedra, entre o tecelão e os fios, entre o empreendedor e o empreendimento não é a de uma vontade ativa que impõe a forma a um material passivo e inerte. A relação é mais como uma luta amorosa, em que cada lado cede, mas faz suas exigências. Gilles Deleuze, um filósofo de que gosto muito, chamava este processo de modificação recíproca de “agenciamento”. Para que haja uma obra realizada é preciso que haja um agenciamento do construtor e das condições de construção. Quando um empreendedor observa um terreno, é o tamanho e o recorte do terreno que sugerem o que poderá ser construído ali. O terreno agenciou o empreendedor, que, por sua vez, emprega sua experiência e seus recursos, para usar as características do terreno da melhor forma possível. Aí o empreendedor agencia o terreno.
A obra final não é a que tínhamos projetado em nossa “vontade”, mas sim o resultado de todas as concessões necessárias para vencer a resistência dos materiais e das pessoas. Por isso, toda obra na sua forma final – mesmo a mais perfeita – ainda não é aquela que tínhamos sonhado. Nunca realizamos um sonho, realizamos apenas a própria realidade. Querer realizar sonhos é para os jovens; realizar a realidade é coisa de gente madura. Isso não significa que uma pessoa madura não queira realizar sonhos. O fato é que nunca amadurecemos totalmente. Mesmo o empreendedor mais pragmático continua querendo realizar sonhos quixotescos.
Os filósofos sabem disso há muito tempo. O ser humano não está todo contido naquilo que faz. O fazer, mesmo o que mais se aproxima da perfeição, nunca esgota as possibilidades humanas. Na verdade, vivemos mais de possibilidades do que de realizações. Somos complacentes com os sonhos, com as nossas próprias ilusões, com os autoenganos e sempre vamos admirar mais Dom Quixote do que Sancho Pança. Daí que as pessoas também sejam julgadas pela qualidade de seus sonhos e não apenas de suas realizações. We are such stuff as dreams are made on, diz Próspero n’A Tempestade, de Shakespeare.
Tudo isso eu devaneava, com a cabeça na lua, enquanto trinchava com a minha Durindana uma forte fatia de pizza napolitana, e pensava naquele outro agenciamento que reuniu um Malanga, da Campania, um Bucci, da Marche, e um Veronezi, do Vêneto, numa pizzaria que conhecemos por causa de outro grande amigo - o Ítalo -, cujo nome é a própria afirmação da nossa comum condição de oriundi.
Quando eu, pela primeira vez, coloquei meus pés – e não mais as mãos, como faziam meus ancestrais vênetos -, na terra sagrada de Verona (sagrada por causa dos personagens de Shakespeare, não da gente mia campagnola pobrezinha e ignorante), era um dia frio e nevoento.
Acho que já admiti, em alguma conversa, que preciso fazer muita força para vencer meu impulso fantasista, traço juvenil que a maturidade não removeu e que, talvez, seja atávico. Os italianos costumam dizer: veronesi tutti matti. Pois eu sou, e dou prova: enquanto caminhava à frente da Ludmila, do Ivan e da Beatriz, através da neblina densa que não nos permitia ver dez passos à frente, eu pensava que algum de meus antenati iria emergir da névoa a dizer aquelas palavras tão belas e comoventes que Cacciaguida, tetravô de Dante, disse ao poeta quando eles se encontraram no Paraíso:
O fronda mia in che io compiacemmi
Pur aspettando, io fu la tua radice
(Divina Comédia, Paraíso, XXV, 88-89)
Obviamente o ancestral não apareceu, mas o hotel nos recebeu muito bem, assim como a vendedora de frutas de quem comprei algumas maçãs e uvas, e o rapaz da mercearia que me vendeu uma bela garrafa de Valpolicella. Em Verona, até eu era um produto D.O.C., mesmo falando mal o italiano – mas que importa? meu bisavô Battista também não tinha a fineza viril do toscano antigo do tetravô de Dante. Cada um tem os antenati que merece. Ai de mim!
Quanto a você, vá firme nos seus planos, com a mesma habilidade que você tem demonstrado até agora. Como diria Madame Carlota, acredito que as maiores dificuldades já passaram. La strada è ormai sgombra.
Grande abraço para as três gerações dos Malanga e para todo povo de Materdomini.
Auguri a tutti!
Sempre tive a certeza que os seus momentos de silêncio na mesa, ou em qualquer lugar são momentos de análise profunda e altamente criativa da natureza e do comportamento humano. Uma amostra disto é este belo retrato de um momento da nossa confraria, embora desfalcada !
ResponderExcluirA falta de gosto pelo vinho é uma afronta a minha origem....desculpe a desfeita por acompanhá-los com coca-cola zero!
Muito obrigado pelas palavras de apoio e conselhos que vcs me proporcionam!
Vcs estão comigo desde o começo das empreitadas....!
Grande abraço aos Veronezi do Brasil e da Itália!
Umberto Malanga
Umberto,
ExcluirA desfeita está mais do que perdoada.
Pode contar com as palavras de apoio. Quanto aos conselhos, sempre serão apenas palpites de um amador bem intencionado que admira muito a coragem do amigo em assumir empreitadas.
Quanto ao mais, espero ouvir as boas notícias que virão, acompanhadas de muitas pizzas e, quem sabe, de alguma comida japonesa.
Buona domenica!