domingo, 25 de novembro de 2012

Nada de carta: mon coeur mis à nu






Hoje, nada de carta. 

O autor, notório homem sem qualidades (espero que apenas no sentido de Musil), expõe algumas páginas arrancadas de seu velho caderno de réprobo. 






1985

setembro

Nasci mnemônico como uma erva antiga, capaz de reconduzir um homem a seu berço. Lembrar das felicidades passadas desenerva. Quanta miséria o passado pode suportar?

A lua da noite anterior punha reflexos numa vasta selva-oliva silenciosa. Fleumática desde sempre.

Passa das treze horas, o dia põe em desordem as roupas inundadas de suor.

(Queda livre:  haverá alguma liberdade na queda?)

Bebi em imaginação tonéis de vinho. Estou com Baco e Sileno, todos ébrios. Saímos os três pelo Largo do Café, deslizando por aquelas paredes de granito. Sileno caiu de seu burrico, lamentou-se pelo odre de vinho rasgado sobre o pavimento sujo: "Não se coloca vinho novo em odres velhos". Eu protestei: "ó Sileno! Isto não é mitologia, é o evangelho!", mas ele não deu importância à queixa de plágio.

Na rua São Bento, diante da avenida São João, tombamos aos pés do Martinelli. Um policial atentou para esse comportamento estranho por parte de três figuras mitológicas (pois também eu sou um mito).

— Documentos, camaradas!

Sileno arrotou. Baco brandiu o tirso ao agente da lei.

- Perdão, senhor Baco. Se eu o tivesse reconhecido de chofre, não o incomodaria. Mas não conheço esse aí (olhou para mim).

- Mortal, mortal, este é meu mais novo discípulo.

O burrico de Sileno zurrou uns pensamentos engraçados. Uma folha de parreira caiu da coroa que lhe cingia a cabeça.

Apolo nos localizou ao romper do Sol, marchando alegremente pelo Anhangabaú, e repreendeu os companheiros:

- Ó Baco, se seguires o Anhangabaú nesta direção não vais chegar ao Olimpo para a apoteose de Héracles.

O deus da embriaguez e seu companheiro ascenderam até serem cobertos por uma nuvem de poluentes. 

Não serei beatificado por querer a verdade perambulando perto de mim, ou um pouco mais adiante. Sento-me sobre cinzas — boa é a música que ouço agora— roendo uma cenoura crua.

Dou tapas nos fundilhos para tirar o pó escuro que sujou meu uniforme de punk. Meu cabelo não cresceu desde o início da história e o corte de gilete no peito continua insignificante. 

Lucienne-Marie, por favor, chame um médico, que eu necessito de urgentes cuidados. 

Camarada Ulianov, sofro como um cão velho e sarnento.

Tristeza, essa mancha de cinzas não quer sair da calça!





1992


Agosto

Li Almeida Garrett.  Ludmila, Marina e eu assistimos às apresentações do Bolshói e do Kirov. Passeei pela rua 13 de maio. Comprei um Dom Quixote. Consegui aulas de Sociologia numa outra escola. Gostei do livro da Scarlett Marton sobre Nietzsche. Comprei muitos livros em sebo. Adriana veio passar uma temporada conosco. Estudei grego. Li Borges, Machado de Assis e Shakespeare. Fui convocado a trabalhar nas eleições. Passei os olhos nos Pequenos Poemas em Prosa, de Baudelaire. Matriculei-me no curso de estética sobre Diderot, Voltaire e Sade. Tomei gosto pela Semiótica. Refleti sobre os protestos estudantis contra o Presidente Collor. Estudei o estoicismo. Conheci o Professor Bento Prado Jr. Com o Renato, assisti Wild at Heart no Sesc Carmo. Coloquei para correr um patife que assediava a Adriana. Nasceu meu sobrinho Lucas. Tentei entender a natureza das coisas.


Setembro

Assisti às conferências de Jean Pierre Vernant. Conheci Antonio Cândido. Conversei em mau inglês com um professor da Tanzânia. Li Mensagem e pensei em Bataille. Fiz muitos exercícios de grego. Ouvi inúmeras vezes K626 de Mozart. Achei-me amargo e plebeu. Estudei o problema do critério em Sexto Empírico. Fui niilista, esquizóide, curei-me pela música. Quis saber onde estava o centro de gravidade das minhas preocupações. Ludmila e eu vaiamos e xingamos o Presidente da República, o presidente do PMDB e o governador de São Paulo, numa grande manifestação pelo impeachment de Collor. Recebi cartas sentimentais de minhas ex-alunas. Terminamos a greve dos professores. Redigi meu projeto. Renunciei a ser um simples amante da música. Tive uma sexta-feira, 25, das mais azaradas e engraçadas. Amarguei o suspense pela votação do impeachment. Comemorei com a Ode à Alegria aquele grande dia 29. No dia seguinte, de ressaca, me achei incorrigível.




2001


abril

Não dormi bem de sábado para domingo. A crescente excitação de ver a Lapa madrugando me arrancou da cama antes das seis. Beijei as crianças e acordei Ludmila para avisá-la de que iria sair. Desci a Gomes Freire na direção da Riachuelo. Havia prostitutas e tresnoitados na esquina com a Mem de Sá.  Subi com firmeza a antiga Matacavalos, muito agitada por botequins e rapazes que voltavam de bailes. Os prédios de apartamentos pequenos e desgastados quase anularam o antigo casario do século XIX. A composição era convencional, pobre e sem surpresa (o diabo ia dizendo: “paulista”...). Quando passei a rua do Senado, procurei o lugar onde morou o jovem Bento de Albuquerque Santiago. Topei com um posto de gasolina enegrecido pela graxa. Um anticlímax de lei. Era preciso não desistir. Prossegui até a Presidente Vargas, esperando o sol surgir daquela aura rubra que emanava da Candelária. O locutor da Central do Brasil anunciou com voz redonda a partida dos trens para Belford Roxo. Enveredei através da massa que trafegava nas ruas sujas, ensombradas pela falésia do morro da Previdência (se a coragem e as pernas me permitissem iria até a Favela da Pedra Lisa). Fui atraído pelo esplendor fanado dos velhos hotéis convertidos em cabeças de porco, em lupanares fétidos para as putas de mamas despencadas da rua Barão de São Félix. Esgotos abertos, água parada nas sarjetas até a Camerino. Do Valongo, galguei a ladeira do Livramento, cruzando com os populares que, endomingados, iam à missa ou levavam os filhos a passeio. Casinhas de pobreza nostálgica, à parte da cidade, dispostas de portas abertas sobre vielas encalacradas. E sobretudo o sol forte iluminando toda a cidade ao pé do morro. Do alto se enxergava tudo, bem longe. Perdi-me a caminho da Gamboa. Desci ladeiras que eram volutas com o relevo da Lua, velhas como o dilúvio, desmanteladas como as que outrora subiam o morro do Castelo. Voltei a salvo de tombos para a Central e para as cutias do Campo de Santana. Vi um batizado, pouco antes de saudar as esfinges da Loja Grande Oriente na rua do Lavradio.  Armavam uma feira de antiquário, mas resolvi continuar, embora já fosse quase oito da manhã, até o Passeio Público.  No entanto, não havia vivalma naquele banco de pedra em que José Dias caluniou os olhos de Capitu a um Bentinho pasmo. Retornei pela rua das Marrecas, dobrei a esquina da rua dos Barbonos, digo, Evaristo da Veiga, passei pela ruína da rua dos Arcos. Logo estava de volta ao hotel para o café da manhã. 
Somos bem Brasil, os vivos e os mortos que se transformaram no húmus da terra, como aquele marinheiro de Álbion cujo epitáfio li no Cemitério dos Ingleses: He loved the country and wanted to stay... Humor britânico in extremis.





2011


Janeiro

Quando o trem passou sobre o Schelde, o país estava sem governo há exatos seis meses. Olhei na direção em que o rio desce para Antuérpia e – para esquecer o vaivém inútil na Gare du Midi, imensa e mal sinalizada - sonhei com caravelas, galeões e urcas abarrotadas de pimenta, tapetes, pau-brasil, peças de prata e peles de pantera. Na planura encharcada e cinzenta, eu vi camponeses de Brueghel arrastando as botas pesadas de lama.  Se viessem falar comigo, já tinha uma desculpa pronta: en français, s'il vous plaît ! ik heb geen Nederlands spreken. À medida que o comboio desacelerava ao entrar na estação Sint Pieters, os camponeses se transformavam nos garotos que iam para as escolas de Gent. Ludmila, Beatriz e eu tivemos que trocar de trem. Em Bruges, saímos do lado errado da estação, debaixo de uma chuvinha irritante. Cada cidade nova que visitamos se torna particular pelo acúmulo de muitas insignificâncias em que buscamos a cidade sonhada. Bruges era a folha de plátano molhada na sarjeta, uns discretos adesivos de venda de sexo, a fumaça que subia de um telhado íngreme. Queria partir logo que cumpríssemos os rituais de turista. Errávamos pelas ruas:  eu tinha medo e vergonha de pedir informações em francês. Já imaginava a fúria dos partidários do Vlaam Belang ou o gorducho Bart de Wever correndo para me chutar a bunda. 

Atrás das cortinas de renda, os habitantes invisíveis haviam sido postos para dormir desde a época do rei Leopoldo. Bruge, la morte. O sino de Sint Salvator anunciou que eram nove horas. A Grote Markt não me encantou e Ludmila não chegou a me convencer da necessidade de galgar os degraus do Belfort. Com aquele mau tempo iríamos enxergar o quê? Muito melhor seria caminhar ao longo dos canais, medindo a cidade. De todos os lados, os ciclistas começaram a aparecer no Spinolarei e no Groenerei. Paramos para as fotos obrigatórias no Rozenhoedkaai. Eu não estava encantado nem feliz. Torcia para que o Ivan tivesse mais sorte em Vancouver.  Bruges me fazia de bobo. Não gosto de ser turista nem gosto de estar perdido. Na livraria na rua Dijver as edições holandesas de Spinoza e de Cees Nooteboom proclamavam minha ignorância do idioma. Milhares de livros que eu não podia ler. 

Desanimado, senti que era melhor não perder mais tempo e irmos logo para o Groeninge visitar a exposição dos “primitivos” flamengos, única razão da nossa presença naquele tédio em forma de cidade.  Não sei se foi a beleza minuciosa de Van Eyck ou o murmúrio babélico que emanava dos connoisseurs; não sei se foi a acolhida gentil na entrada do museu ou uma frase bem brasileira dita por alguém que passou por nós em direção ao banheiro, sei apenas que, quando saímos, um sol úmido coloria os telhados vermelhos e uma ave – nem cisne nem corvo - cantou. 


Veio a vontade de atravessar a ponte de São Bonifácio, de contornar a catedral de Onze Lieve Vrouwe, de contar cada tijolo do Gruuthuse. Já não tinha medo do Vlaam Belang. Olhei com carinho para o alto do Belfort e fiz questão de chamá-lo de ‘beffroi” em voz alta; dei as costas para as lojas de chocolate, ignorei a Basílica do Heilige Bloed: fomos comer stoemp com cerveja Duvel e nos embevecer no Rozenhoedkaai, o lugar mais lindo do mundo. E seguimos pelos becos até o Minnewater, o lugar mais lindo do mundo. E entramos no pátio das beguinas, o lugar mais lindo do mundo. Sint Salvator avisou que eram cinco horas. Que pena! As torres da cidade se dissolviam na névoa luminosa daquele céu imenso que amo em Ruysdael (eu pensei: meu Deus! Essa luz existe! Eu vi essa luz!) Voltamos com os estudantes para a estação. Pedi os bilhetes para Bruxelas num francês sonoro ao qual o bilheteiro da SNCB respondeu num holandês teimoso. Não liguei. Flandres era também o meu país. 






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